Como eu amei as raparigas lá de
casa
discretas fabricantes da penumbra
guardavam o meu sono como se
guardassem
o meu sonho
repetiam comigo as primeiras
palavras
como se repetissem os meus versos
povoavam o silêncio da casa
anulando o chão os pés as portas
por onde
saíam
deixando sempre um rastro de
hortelã
traziam a manhã
cada manhã
o cheiro do pão fresco da humidade
da terra
do leite acabado de ordenhar
(se voltassem a passar todas juntas
agora
veríeis como ficava no ar o odor
doce e materno
das manadas quando passam)
aproximavam-se as raparigas lá de
casa
e eu escutava a inquieta maresia
dos seus corpos
umas vezes duros e frios como
seixos
outras vezes tépidos como o
interior dos frutos
no outono
penteavam-me
e as suas mãos eram leves e frescas
como as folhas
na primavera
não me lembro da cor dos olhos
quando olhava
os olhos das raparigas lá de casa
mas sei que era neles que se
acendia
o sol
ou se agitava a superfície dos
lagos
do jardim com lagos a que me
levavam de mãos dadas
as raparigas lá de casa
que tinham namorados e com eles
traíam
a nossa indefinível cumplicidade
eu perdoava sempre e ainda agora
perdoo
às raparigas lá de casa
porque sabia e sei que apenas o
faziam
por ser esse o lado mau de sua
inexplicável bondade
o vício da virtude da sua imensa
ternura
da ternura inefável do meu primeiro
amor
do meu amor pelas raparigas lá de
casa
Emanuel Félix in “Habitação das
Chuvas” (1997)
(24 de Outubro de 1936-14 de Fevereiro de 2004-Angra do Heroísmo)
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