É
com enorme satisfação que recebo a sua carta, apresentando desde já as minhas
desculpas pelo atraso na resposta. Devo dizer-lhe que os últimos dias têm sido
conturbados, devido a determinados acontecimentos que se sucederam
inapelavelmente e à vista do meu olhar incrédulo. Pois imagine o Doutor que fui
convidado para o Certame das Piores Obras Literárias Europeias, que este ano
aconteceu em Saint Tropez. O Doutor Mara sabe como aqueles porcos chauvinistas
gostam do freak show, mas eu não me
importei nada. Hotel pago, pensão completa, passagens de pullman incluídas,
champanhe no quarto, banhos na Côte D’Azur, oh la la… Foi caso para voltar a
escovar o meu fato asas de grilo e reafirmar a categoria dos meus sapatos
italianos de cetim afivelados. Para banhos reservei a minha melhor tanga,
monocromática, robusta e confortável. Saímos de Lisboa rumo a França, com
algumas paragens. A última seria em Perpignan, uma simpática localidade no
litoral Sul. Tínhamos cerca de meia hora, e acabei por me perder. De repente
dei por falta da carteira, e tentei sem sucesso voltar aos sítios por onde
tinha passado. Corri para a praça central, e o autocarro já tinha partido sem
mim. Vi-me assim sem dinheiro, sem mala, sem nada. Lembrei-me então que Victor
Klaus estava a viver em Rivesaltes, uma zona de vinhas perto dali, e pus-me à
boleia. Lá chegado, não demorei a encontrá-lo. O Doutor Mara não imagina a fama
que Klaus tem em Rivesaltes! Mas concluirei rapidamente. Fiquei então uns dias
por cá, em casa de Klaus, e tenho estado a trabalhar na apanha do tomate. O
objectivo inicial era conseguir algum dinheiro para regressar a Lisboa, mas
neste momento o local já me é aprazível. O meu caro amigo sabe como gosto de
andar a pé, e Lisboa está um inferno com os trotineteiros e ciclistas. Cada vez
mais o peão é um alvo a abater, e isso deixa-me furioso! Comecei a atirar-lhes
com pedras da calçada, mas o Doutor imaginará a dificuldade em acertar em alvos
em movimento…
Relativamente
a Felício, compreendo a sua angústia, é efectivamente uma péssima ideia querer
interrogá-lo. A última vez que o vi foi há uns quinze anos. Passei pela sua
rua, e vi uma silhueta por detrás das cortinas da sua sala de jantar. Imagino
que fosse ele, tendo em conta que não tem por hábito receber visitas, à
excepção do contador do gás. Imagino portanto que, como abrilhantador de
entrevistas e perguntador de alto gabarito, o Doutor Mara encare este como o
maior desafio da sua já longa (porém curta) carreira. É caso para lhe desejar
sorte, e lhe dizer que, dado o meu paradeiro, assistirei ao longe áquilo que
poderá ser a sua consagração ou quem sabe, o seu categórico declínio.
Com elevada
expectativa e a ancestral admiração,
Janeiro Alves
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