sexta-feira, 2 de agosto de 2019

Resposta Urgente de Janeiro Alves com a Humidade nos 90%

Lisboa, Octogésimo Primeiro dia a contar do Treze de Maio
Caro Doutor Mara,

Enceto esta carta com um veemente pedido de desculpas pela minha prolongada ausência, desejando que a mesma o encontre de boa saúde e dentro dos percentis estipulados pela ciência moderna. De facto, ao se aventurar a redigir bojardas sobre a minha pessoa, o Doutor Mara tem em parte razão, perdendo-a logo de seguida. Fui efectivamente alcançado pela máquina demolidora da turistificação. Fui expulso do meu apartamento em Campo de Ourique, e acabei numa sub-cave desagradável e residual, onde mal tenho espaço para a minha colecção de insectos embalsamados. Compreendo também o seu ímpeto provocador ao se referir a uma tal barbearia (que é apenas uma fantasia da sua cabeça e dos seus amigos intelectuais de trazer por casa), e começo a pensar que o Doutor Mara sente inveja desta barba bem lavrada, pois é conhecido o seu desejo de vir a ser aceite pela nossa Confraria dos Barbudos só para poder usufruir das excursões que organizamos às melhores casas de pasto nacionais. Relativamente a este assunto, deixe que lhe diga que a fotografia que há uns dias enviou juntamente com a ficha de inscrição de sócio, onde envergava nitidamente uma barba postiça foi no mínimo constrangedor. Quando os meus camaradas me perguntaram se o conhecia, afirmei “O nome dele não me é estranho…”, mas o Deodato que é cego sentiu a minha voz um pouco trémula. Este episódio não belisca em nada a nossa já longa amizade, apesar de não poder dizer com segurança que esta frase seja de uma autenticidade imaculada.
Posto isto, gostaria de lhe dar uma vaga noção dos meus tempos recentes, mas nada de relevante me ocorre. Os dias seguem o seu curso, as árvores preparam-se para caducar, as gentes movem-se em vagas que se precipitam sobre os areais, e os pombos assumem-se cada vez mais como espécie reinante, olhando sobranceiros e circunspectos os transeuntes foto-génios entediados pelo turismo. Recentemente arranjei trabalho numa biblioteca, e a minha função é limpar o pó dos livros. Tiro um livro, limpo o pó, meto no lugar. Tiro outro livro, limpo o pó, e meto no lugar. E assim sucessivamente. Tenho lido excelentes capas e contracapas. Já as lombadas dispenso, uma vez que me obriga a flectir o pescoço, e o Doutor Mara sabe em que estado fiquei quando me precipitei para salvar o Bobi de ser atropelado. Aproveito para lhe comunicar que o cão morreu engasgado na semana passada.
Acabo esta breve carta com uma nota de encorajamento e motivação, e uma outra de prudência. Sei que está motivado com o seu mergulho às profundezas do oceano, e que se de lá conseguir sair terá um ou outro episódio curioso para partilhar. Digo-lhe que tenho a profunda convicção que dado o seu considerável peso em quilogramas, rapidamente alcançará o fundo. A nota de prudência prende-se com os Alarvistas. O Doutor Mara afaste-se dessa gente, se não quer ficar como eles. Se ao invés quiser ficar como eles, não se afaste. Nesse caso aproxime-se, ou mantenha-se apenas por perto, caso a aproximação já esteja no limiar da “distância pessoal” tal como definida pelo Grande Livro da Ergonomia.
                                    Duma sub-cave Lisboeta, despeço-me com uma Vénia de Milo desnuda.
Janeiro Alves

1 comentário:

  1. Caro Janeiro,

    Admiro a originalidade dos seus percursos profissionais. O mais recente parece-me um totoloto com prémio milionário. Espero que consiga amealhar o suficiente para poder retirar-se do mercado de trabalho e passar o tempo que lhe resta a limpar o pó aos seus próprios livros em vez de o limpar aos dos outros. Imagino que o seu "Compêndio" "de" "Plantas" "Exóticas" esteja a precisar de atenção...

    Quanto ao Bobi, que morreu engasgado, vim a saber recentemente que, afinal, era meu parente afastado.

    Os Alarvistas andem aí - e, sem mais que me lembre, nada mais acrescento.

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