Lisboa, Octogésimo Primeiro dia a contar do Treze de
Maio
Caro Doutor Mara,
Enceto esta carta com um veemente
pedido de desculpas pela minha prolongada ausência, desejando que a mesma o
encontre de boa saúde e dentro dos percentis estipulados pela ciência moderna.
De facto, ao se aventurar a redigir bojardas sobre a minha pessoa, o Doutor
Mara tem em parte razão, perdendo-a logo de seguida. Fui efectivamente
alcançado pela máquina demolidora da turistificação. Fui expulso do meu
apartamento em Campo de Ourique, e acabei numa sub-cave desagradável e
residual, onde mal tenho espaço para a minha colecção de insectos embalsamados.
Compreendo também o seu ímpeto provocador ao se referir a uma tal barbearia (que
é apenas uma fantasia da sua cabeça e dos seus amigos intelectuais de trazer
por casa), e começo a pensar que o Doutor Mara sente inveja desta barba bem
lavrada, pois é conhecido o seu desejo de vir a ser aceite pela nossa Confraria
dos Barbudos só para poder usufruir das excursões que organizamos às melhores
casas de pasto nacionais. Relativamente a este assunto, deixe que lhe diga que
a fotografia que há uns dias enviou juntamente com a ficha de inscrição de
sócio, onde envergava nitidamente uma barba postiça foi no mínimo
constrangedor. Quando os meus camaradas me perguntaram se o conhecia, afirmei
“O nome dele não me é estranho…”, mas o Deodato que é cego sentiu a minha voz
um pouco trémula. Este episódio não belisca em nada a nossa já longa amizade,
apesar de não poder dizer com segurança que esta frase seja de uma
autenticidade imaculada.
Posto isto, gostaria de lhe dar uma
vaga noção dos meus tempos recentes, mas nada de relevante me ocorre. Os dias
seguem o seu curso, as árvores preparam-se para caducar, as gentes movem-se em
vagas que se precipitam sobre os areais, e os pombos assumem-se cada vez mais
como espécie reinante, olhando sobranceiros e circunspectos os transeuntes
foto-génios entediados pelo turismo. Recentemente arranjei trabalho numa
biblioteca, e a minha função é limpar o pó dos livros. Tiro um livro, limpo o
pó, meto no lugar. Tiro outro livro, limpo o pó, e meto no lugar. E assim
sucessivamente. Tenho lido excelentes capas e contracapas. Já as lombadas
dispenso, uma vez que me obriga a flectir o pescoço, e o Doutor Mara sabe em
que estado fiquei quando me precipitei para salvar o Bobi de ser atropelado.
Aproveito para lhe comunicar que o cão morreu engasgado na semana passada.
Acabo esta breve carta com uma nota
de encorajamento e motivação, e uma outra de prudência. Sei que está motivado
com o seu mergulho às profundezas do oceano, e que se de lá conseguir sair terá
um ou outro episódio curioso para partilhar. Digo-lhe que tenho a profunda
convicção que dado o seu considerável peso em quilogramas, rapidamente
alcançará o fundo. A nota de prudência prende-se com os Alarvistas. O Doutor
Mara afaste-se dessa gente, se não quer ficar como eles. Se ao invés quiser
ficar como eles, não se afaste. Nesse caso aproxime-se, ou mantenha-se apenas
por perto, caso a aproximação já esteja no limiar da “distância pessoal” tal
como definida pelo Grande Livro da Ergonomia.
Duma
sub-cave Lisboeta, despeço-me com uma Vénia de Milo desnuda.
Janeiro Alves
Caro Janeiro,
ResponderEliminarAdmiro a originalidade dos seus percursos profissionais. O mais recente parece-me um totoloto com prémio milionário. Espero que consiga amealhar o suficiente para poder retirar-se do mercado de trabalho e passar o tempo que lhe resta a limpar o pó aos seus próprios livros em vez de o limpar aos dos outros. Imagino que o seu "Compêndio" "de" "Plantas" "Exóticas" esteja a precisar de atenção...
Quanto ao Bobi, que morreu engasgado, vim a saber recentemente que, afinal, era meu parente afastado.
Os Alarvistas andem aí - e, sem mais que me lembre, nada mais acrescento.