sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Cantador(a)

        O álbum "Torna-Viagem" de Zeca Medeiros completará dez anos em 2014 desde a sua edição e foi prémio José Afonso em 2005.Ontem, ao serão, para além do repertório habitual, ouviu-se o “Cantador” na Travessa dos Artistas: “O cantador/ chegou de madrugada/ venceu a noite/ pelas praias do mar/ na sua voz/ teceu uma balada /amanhecer/ que havemos de cantar/ O cantador/ rasgou as nossas penas/ num canto moço/ que havemos d'acender/ na sua voz/ ergueu vilas morenas/ Maio maduro/ que havemos de colher/ Ergueu cidades/ sem muros nem ameias/ lançou sementes/ na terra de ninguém/ cantou o sol/ rompeu nossas cadeias/ trouxe consigo/ outro amigo também/”. E não é que "irrompeu um amigo" no feminino que transportava consigo a luz e o fogo na voz? O seu nome: Vânia Dilac e vive no arquipélago há mais de três décadas, após ter nascido em Moçambique. O seu português misturado, modelado e mélico encantou e entoou pelas ruas do centro da cidade, com pingos de chuva e lançando a semente de um próximo concerto que se aguarda, para já, com a maior das expectativas e curiosidade.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2014

Cortar o Tempo




      "Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias, a que se deu o nome de ano, foi um indivíduo genial. Industrializou a esperança, fazendo-a funcionar no limite da exaustão. Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos. Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez, com outro número e outra vontade de acreditar que daqui p´ra diante vai ser diferente"



Carlos Drummond de Andrade

terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Última Troca Epistolar com Janeiro Alves (até para o ano em Fevereiro)

Ilustração de Pedro Valim
Solar dos Manaias, PDL, 31 de Dezembro de 2013

Caro Amigo Janeiro,

                  Respondo-lhe de imediato pois perdi mais uma sebenta onde vou apontado tudo o que me acontece durante estes dias em que estou adunado a Miriam Manaia. Estou certo que ela se encontra a viver um bom momento da sua existência, assisto ao seu dinamismo e vejo-a muita atenta a todos os movimentos em redor. Suspeito, no entanto, que não é só à minha pessoa que Miriam disponibiliza os seus sorrisos e esgares, já que ultimamente só lhe ponho a vista em cima nos jantares de fim de semana ou quando há algum evento literário em que necessita da minha companhia. Já lá vão os tempos em que subia a rua do Colégio ao fim da tarde com o  braço dado a Miriam Manaia, a mais bela e inteligente dos Manos Manaia.
      Tento, por isso, não me tornar muito ocioso com este tempo livre facultado pelo recente desapego de Miriam ou  de ficar muito obcecado com a ausência desta misteriosa mulher, continuando desta maneira a escrever nos meus canhenhos bem como observando a natureza e geografia em redor, que como bem sabe, é rica em diversidade e tonalidades de verde. O meu amigo sabe certamente que o ócio era o nome que os gregos davam à escola, ao tempo de reflexão e aprendizagem, e que era o oposto de negócio. Tenho, portanto, no período em que estou com a minha anfitriã, aprendido a olhar para o mundo de diferentes perspectivas e procurar respostas certeiras para o tempo em que vivemos, ao mesmo tempo que faço um esforço para compreender a realidade circundante e ver tal e qual ela é. Aproveito desta feita para falar com o máximo de gente possível.
                   Com a Miriam, nos últimos tempos, temos entregue o  tempo das manhãs de sábado a longos passeios junto do mar e onde falamos de trivialidades e demais banalidades, conversas onde debatemos  como o nosso corpo é essencialmente composto por 70% de água ou ainda o anúncio para breve da privatização da água por este Agregado Nacional de Sábios da Numerologia vulgo Comissão de Extinção de um País. Tal como ela, nasci bem perto do mar, junto de paisagens marítimas e foram, de facto, muitas as noites de festa da juventude em que nos perdemos junto da areia do mar. Evito evocar neste instante o nome de Eros mas seria uma irresponsabilidade não identificar o mar com uma mulher, o que me permite expandir o meu olhar e em que só muito mais tarde regresso a mim independentemente de quem me espera.  A nossa alegria tem sido muita ao podermos partilhar esta memória líquida e origem ancestral com toda a humanidade e por isso assusto-me só de pensar que Miriam possa estar enamorada por alguém que não eu. Nos próximos tempos Miriam terá que se ausentar durante algum tempo e julgo que esse tempo será para mim esclarecedor. Há dias, juntamente com o livro “A Condição Humana” da filósofa  Hanna Arendt, deixou-me um bilhete enigmático e misterioso que declarava o seguinte: “ Espero que continues a sentir acolhido e que nada te falte por aqui”. Nutri uma enorme alegria nas palavras de Miriam, enobrecido pela hospitalidade mas também pressenti algum afastamento que espero não corresponder à realidade.
                 Termino esta missiva augurando ao meu amigo Janeiro umas boas entradas no seu próprio mês e que seja um ano repleto de muita saúde e muito dinheiro (os sábios agora dizem que já não há…onde é que foi parar?) e por isso, meu bom amigo Janeiro faz mais falta que no início do mês do ano anterior.
Abraço-lhe com doze passas no bolso,
seu servo, Doutor Mara

Uma Missiva no Final de Dezembro de Janeiro Alves


Beira Litoral, 31 de Dezembro de 2013
Caro Doutor Mara,
  
                  Escrevo-lhe especialmente hoje pois não tenho por hábito escrever em Janeiro. Mas também para lhe desejar um ano realmente novo. O novo é a mudança que se opera dentro de nós e que faz avançar o mundo, e é por aqui que temos de começar. Um ano novo com ideias antigas é o mesmo que uma casa limpa com lixo debaixo do tapete, se é que me percebe.
                   Fiz uma incursão pelo campo ao longo destes dias de ausência. Encontro-me na província, essa bela palavra que provém do latim pro+vincere, ou seja, um pequeno território sob domínio de outro maior, para nós curiosamente, tudo o que excede os limites da grande capital. Mas esta província que percorro é mais profunda e inóspita. É um lugar de uma só estrada sem movimento aparente, uma república utópica independente, num vale esquecido que acolhe por natureza espontânea alguma forma de vida. Todos os dias acordo cedo, e ponho-me a andar pela pequena aldeia. Cheira a lenha queimada e a luz é algo de belo, mas a geada parece encontrar todos os subterfúgios do meu casaco para me poder castigar a pele. Esta punição matinal é um acordo firmado com a natureza, conheço bem as dicotomias da vida.
                  O ambiente bucólico não me arrasta minimamente para recordações de infância, dá-me ao invés, uma perspectiva de presente. Como o doutor Mara bem sabe, não sou de saudosismos, nem a minha memória me permite tais luxos. Mas apesar disso, este sítio traz-me à lembrança algo que preciso e não tenho. A luz atravessa os pinheiros, e nos seus feixes podemos observar pequenas partículas de vida, de oxigénio, de energia, coisas que há muito me faltavam. Os pássaros acordam e começam a voar. Não têm de fazer a cama, lavar os dentes, ouvir as notícias, vestir e calçar. Simplesmente abrem os olhos, assobiam para chamar os amigos e começam a voar. Tão mais fácil. Eu se fizesse isso, mesmo sabendo voar, acabaria no chão atordoado. Preciso sempre do meu café.    
É caso para se dizer, caro Doutor Mara, que bem se está no campo! E é no mais agreste dos lugares, onde a natureza foi deixada à solta e os habitantes são como paragens onde o autocarro já não passa, que desencadeei uma sequência de ideias que deram lugar a um pensamento que por sua vez se ramificou em várias reflexões paralelas e complementares, tendo originado uma convicção consolidada, ainda que aberta a correcções de índole formal, com vista a me desassossegar esta mente já por si perturbada. Acerca da nossa relação com a natureza. Destruímo-la para construirmos coisas, que também são natureza. Tudo é natureza, e o que fazemos é apenas transformá-la. Portanto, Doutor Mara, é importante que se diga que não estamos a destruir a natureza, como dizem os panfletos. Estamos a alterá-la, à nossa imagem, para nosso conforto, e pela nossa criatividade. Usamos a matéria prima para dar asas à fantasia humana, seja ela bela ou horrenda. Tudo sai da nossa cabeça, faz parte da nossa natureza. Se o escultor pudesse, esculpiria toda a pedra do mundo. Talvez deixasse intacta uma ravina, para no fim se atirar. Talvez o saudosismo de que falava, exprima bem isso. Ninguém tem saudades da natureza. A não ser que nela se tenha passado alguma coisa de humano.
                  Todas estas considerações, Doutor Mara, que se revestem de uma futilidade aparente, têm contribuído para uma mudança na minha pessoa. Estou a ser alvo de um golpe de estado no meu interior, e uma rebelião de ideias revolucionárias estão a tomar conta do meu sistema central. O ano que amanhã começa, será inigualável, pois foi neste ano que agora falece, que começámos ainda que timidamente, a despejar caixotes de lixo à porta dos que sofrem da impotência de criar. De amar. E de sonhar. É o ultimato futurista a ganhar forma, Doutor Mara.
                Agora me despeço, já a caminho do reveillon, mas não sem antes lhe dizer que aguardo ansiosamente por notícias suas, dos novos desenvolvimentos do enlace com Miriam Manaia, do famigerado plano de Vivaldo, e das suas considerações sempre doutas sobre o ano que hoje finda. Até Fevereiro!
Um natural abraço de
Janeiro Alves

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Rita e a Classe Dominante

Não terás sido tu, Rita, a orquestradora
de semelhante cilada
naquele estio distante ao sopé do mar
o impedimento familiar da corte masculina
até ao calor das areias

Acautelariam tantos anos depois
ímpetos e associações
a natureza de classe e o indevido  
revisionismo tardio

Três poemas na deriva de PDL

Anjos Cantam Cerejas

Arde ao largo o único navio visível
a  perda consumada
rogar para aguentar o vento
talvez  escorraçar o temor
herdar cadernos com visões de ausências
estudos visuais e vetustos torpores
anunciam desgovernadas tormentas
ao presente
e os anjos bebem ao telemóvel  
o canto tardio das cerejas

 Relutante Silêncio
Olhas-me da janela da antiga habitação
uma árvore-casa  imagino
veias, vasos, extensos corredores,
ou naturalmente o inicial desenho
a colocação das mãos sobre a parreira
e o Inverno

Olhas-me debruçada sobre o alpendre
duvidas da hodierna construção
resistente da enfermidade infame
antena atenta desligados andamos
razão fecunda do ser
e o Inverno

Olhas-me com os braços na sacada segura
temor do que resta da recordação
espectros enviados de tempos idos
só acalmados pela queda dos troncos
teimoso e inconveniente silêncio
e o Inverno

 A Melancia no Feno da Páscoa

 Zappa visitou-me uma noite
num quarto de cigarros e madeiras
quebradas as convenções e um fósforo
o alumbrar de velhas rapsódias
trazia melancia no feno da Páscoa
idolatria e caixas de guitarras com cordas afinadas
esboroava trovas entre solos e cadeiras
boémia melodia do coro rendida
a líquida carroça amplificada  e
o foco de devaneios num apinhado
de artistas

domingo, 29 de dezembro de 2013

Caboverdeanar

Germano de Almeida (Foto Rui Maio)
"-Qual foi a reacção da sociedade cabo-verdiana à sátira implícita no "Testamento do Senhor Napumoceno"?
Germano de Almeida: Muito boa. As edições cabo-verdianas naquela altura rondavam os trezentos exemplares. Nós decidimos fazer uma edição de setecentos e cinquenta exemplares, não porque achássemos que iria vender, mas porque ficava praticamente pelo mesmo preço. Esgotou-se em três meses, o livro foi muito bem aceite. Foi um recorde, um best-seller de setecentos e cinquenta exemplares. Depois as pessoas começaram a insistir e fizemos novas edições, tendo sido feitas nove, das quais foram vendidos nove, dez mil exemplares em Cabo Verde.
-Este livro deu origem a um filme realizado por Francisco Manso que viria a vencer, em Agosto de 1997, o prémio de Cinema de Gramado. Como é que viu a transposição do romance para o ecrã?
G.A: Eu distingo sempre duas coisas: uma é a obra literária e outra é a obra cinematográfica. Isto é, eu não aceito a ideia de impor ao realizador fazer o meu filme. Porquê? Porque quando eu leio um livro faço um filme, do mesmo modo que outras pessoas fazem o seu filme. De maneira que quando ele vai realizar é o seu filme e não o meu filme. Daí que eu diga que há coisas no "Testamento..." que eu gostaria de ver tratadas de outra maneira eventualmente, mas não me permito sequer criticá-las porque é a minha forma de ver que não pode ser igual à forma do Manso e não posso obrigá-lo a fazer o filme que eu gostaria de fazer."
 Entrevista a Germano de Almeida, Fevereiro de 2003.

Filme, Cachupa, Mornas e Coladeiras na Galeria Arco 8

      Corre a história que nos idos anos oitenta que uma das músicas mais tocadas e escutadas na telefonia nacional era um tema dos cabo-verdianos “Tubarões” – “Avenida Marginal”. Os ouvidos portugueses começavam assim a receber o património imaterial de um arquipélago pouco ou nada aventurado pela queda de água nas suas ilhas, ou riqueza de outros recursos naturais, mas com uma cultura e sabedoria ancestral, símbolo da abnegação e persistência face às contrariedades inerentes às condições de vida em ilhas tão secas.
        Organizado pela CRESAÇOR e pela AGECTA decorreu ontem uma festa/actividade que teve por objectivo celebrar a cultura cabo-verdiana e manter viva a coesão entre uma pequena comunidade com mais de três centenas de habitantes e que há muito por aqui tem ofícios ligados ao mar, à construção, aos serviços ou ao comércio. O palco deste encontro foi a Galeria Arco 8 e o filme exibido foi “O Testamento do Senhor Napumoceno de Araújo”, rodado e realizado por Francisco Manso em  1996 nas Ilhas de São Vicente e Boavista, apresentado publicamente em sala em 1997 e  é baseado no romance homónimo do escritor oriundo da Ilha da Boavista: Germano de Almeida. Seguiu-se a cachupa da Senhora Arminda – "de comer e chorar por mais" – e outras iguarias confeccionadas para este momento até depois à audição e bailar de mornas, coladaderas e funaná sempre bem preenchidas pelos participantes com o ritmo desenvolvido aos pares e com coreografia bem ritmada e distâncias bem definidas. Cabo Verde é, portanto, nome de arquipélago mas também sinónimo de alma e de oferendas, o que resulta assim em acolhimento e agradecimento.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

“Corre, Emanuel, Corre”: Foi Tão Bom que Não me vou Esquecer!


“Corre, Emanuel, Corre” é, em primeiro lugar, um filme de alguém que se expõe não do ponto de vista biográfico mas sim a partir de uma perspectiva artística comprometida e vigilante face ao desenrolar da vida individual, social e das cidades. E que para isso são necessários sentidos sintonizados com a natureza circundante, antenas atentas que estão no centro da existência onde é essencial ver, ouvir, tocar, sentir, gostar e em que nada, nada mesmo nos é passivo ou indiferente. Aqui, Maria Emanuel Albergaria, cidadã e antropóloga, permite que a câmara capte o seu mundo e aí instale uma visão muito pessoal e criativa do seu ideário estético. A partir de várias fotografias obtidas na ilha de São Jorge, constrói-se um programa de registar esse processo interno de bloqueio/libertação vivencial e onde está presente a floresta/natureza como elemento de inquietação/pacificação e do qual este trabalho é processo ou resultado final.
Fotograma de "Corre, Emanuel, Corre"
Inspirado na exposição/instalação "Uma Casa na Floresta”, o projecto documental nasce dessa pulsão de registar o que foi a superação desses bloqueios interiores, acompanhando esse desejo adulto e fermentado de regressar a um olhar pueril e inocente, ultrapassando as barreiras exteriores convertidas em muros, cancelas, troncos de árvores em forma de metáfora. Daí o regressar às nossas porosidades e sensações mais íntimas e primárias, às memórias mais longevas e fecundas num universo poluído de simulacros e proliferação abundante de imagens, carregado que está de confusão e ruído e onde é já quase impossível pensar e sentir. A realização da exposição/instalação numa casa bem citadina, por sinal desabitada, coloca também uma interpelação ao nosso desapego pelo que ficou de vida e memória nesses centros desabitados, inquirindo até que ponto ganhamos com prédios incaracterísticos na periferia das nossas cidades quando a arquitectura por ali carece de ser (re) construída. 
Por fim, destaque-se ainda a fulgurante entrada musical deste documentário, sendo o som um elemento primordial ao longo destes quinze minutos, muito devido ao contrabaixo de Gianna de Toni e da viola de Arco de Ernesto Rodrigues, anunciando deste modo que estamos perante um trabalho colectivo de invulgar empatia entre os envolvidos, resolvida que ficou a partilha de autoria entre Emanuel Macedo e Bruno Correia, num trabalho bastante cuidado e justo face ao enquadramento dos sons com os diferentes registos de imagens, para além do movimentado vídeo de João Pedro Plácido e André Laranjinha. Este filme foi produzido pela "Tripolar" com o 9500 Cineclube, a Cresaçor e a RTP-Açores como Produtores Associados e recebeu o Prémio do Público no Faial Fim Fest 2011.

Et in Arcadia Ego

Jeremy Irons
         "Here, at the age of 39, I began to be old. As I lay in that dark hour I was aghast to realise that something within me, long sickening, had quietly died."
in Bridshead Revisited

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Filosofia versus Poesia

"A filosofia e a poesia estão, naquilo que têm a dizer, demasiado próximas uma da outra. Ambas se referem ao mesmo, mas de uma forma radicalmente distinta. São duas formas de sabedoria...intuitiva, digamos assim. Mas enquanto que o filósofo parte da formulação de uma pergunta, sistematizando depois a sua resposta, o poeta apenas fala. Uma é verdade revelada (ou desvelada), a outra é pura antecipação; uma é discurso racional, apolíneo, conceitual; a outra é um discurso que, sem fidelidade ao espaço nem ao tempo, atravessa as masmorras e os lugares de sombra do ser."
Rui Machado

Dois Poemas sobre o Natal de Joaquim Castro Caldas

NATAL

já não sei o que é mais miserável,
se o esqueleto infantil da Etiópia
na TV sem acesso à água,
se um porco fascista de smoking
em Bruxelas a sortear putos.
já não sei o que é mais triste,
se procurar o menino jesus da UE
num palheiro, se ir ao hipermercado
enfardar uma virgem  maria made in China.
já não sei o que é mais obsceno,
se um jogador de futebol pago
pela NASA a chutar a lua contra o céu,
se uma intoxicação alimentar
em plena consoada no coração universal.
já não sei o que é mais pobre,
se a multinacional do Vaticano
recolher esmolas em camiões TIR,
se uma criança morrer ao colo
do nosso remorso a sorrir.
já não sei o que é mais feio,
se o sol ser içado por uma grua,
se uma pomba branca ter lá dentro uma bomba


REDACÇÃO


O natal é um lugar muito bonito para se passar o tempo a mudar
o ano. há sempre uma história lá em cima, confortável, ao colo
de uma árvore, a largar palavras. o regaço aberto da terra está
quente, as renas são fadas, os trenós aviões de neve e o rosto é
uma folha de papel, à lareira os olhos das pessoas vêem tudo
com toda a força, disciplinam a fúria do fogo, o coração ama a
natureza e arde tão devagar com a memória do último gesto,
como uma maneira de estar. amo o natal, vai só sorrateiro,
mesmo que faça frio, à alma do lado soltar a língua a um cão,
auxiliar uma gata a parir, abrir a liberdade a um passarinho. No
natal as casas deixam-se cair com uma lágrima a semear o
tudo bom, a carícia que faz de uma asa de tulipa a pétala de
uma borboleta. no natal o sopro do teu ar a passar à esquina  do
meu sorriso, mesmo que seja hipócrita, faz-me pensar: nem mais
uma criança no mundo com fome. empresta-me a tua música,
eu escrevo um poema.  de passagem pela felicidade.

Joaquim Castro Caldas, "Só Cá Vim Ver o Sol", Março 2004, Quasi Edições.

Lulu Monde: Diletantes e Libertários.



        Lulu Monde é uma banda natural de Ponta Delgada e que conta já com catorze anos de existência e de presenças constantes em palcos e concertos. A Galeria Arco 8 tem servido de palco para muitas das suas apresentações públicas e é um porto de abrigo para estas divagações e itinerários musicais em poiso tão próximo do mar e do oceano atlântico. Os Lulu Munde contém dentro de si uma pulsão libertária muito próxima do Jazz e em que os instrumentos como o sintetizador e a guitarra tem uma preponderância singular em cada composição e diálogo sonoro deste quarteto, por vezes quinteto ou sexteto, mantendo sempre a fasquia bem alta para cada elemento que a integra. Os teclados estão bem presentes enquanto denominador comum às deambulações sonoras encetadas pelo grupo, onde se salienta uma guitarra etérea e ondulante, procurando assim a consistência de melodias airosas numa cobertura rítmica enérgica a partir de uma bateria afirmativa e sincopada. A banda conta com Ricardo Reis na bateria, Ricardo Silva nos pianos e teclados, Paulo Bettencourt na guitarra e Luís Silva no baixo.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Adormecido: Poesia na Terra Nova

         O Vulcão dos Capelinhos está há mais de meio século adormecido, acalmou após um ano de erupções strombolianas entre 27 de Setembro de 1957 e 24 de Outubro de 1958 do século vinte. Desde então e, não terá sido coisa de pouca monta, mais nada aconteceu naqueles dois quilómetros e meio de terra para lá dos garajaus que nidificam no dealbar do verão e se depõem no final da canícula, para lá da erosão. Aquela quietude vulcânica é apenas perturbada pela corveia diária de turistas que visita o seu Centro de Interpretação ou outros visitantes mais afoitos que se aventuram por entre a paisagem de cinza e silêncio em dias de bonança. Em termos artísticos, o fotógrafo Duarte Belo documentou este cenário de cinza em 2008 para o livro “Fogo Frio”, extraordinário objecto onde sobressai a venustidade do vulcão, ainda que hostil, mas profundamente bela. Outro acontecimento de fina estranheza e de poesia imagética deu-se com a criação da curta-metragem denominada de “Adormecido”, realizado há três anos pelo cineasta Paulo Abreu e produzido pelo 9500-Cineclube de Ponta Delgada, num azo sonoro e poético em torno desta força natural. “Adormecido” é, pois, m filme experimental marcado essencialmente por planos de síntese do Vulcão dos Capelinhos, arrumado essencialmente pelos sons captados do exterior e da paleta imaginária de sons provenientes do interior do vulcão, sendo exaltante a pletora sonora que aí acolhe.

Paulo Abreu quis muito, num plano oposto ao de Duarte Belo, registar em filme a descoberta dessa manifestação interior, enigmática e exteriormente silente, a meio do oceano atlântico. Constituído por planos de fuga em Super 8, aproveita para dar corpo e conta do vento, do céu e das nuvens que despontam em tão invulgar local, supondo assim o rumor interno daquele báratro em manifestação invisível, nessa possível congeminação de lava e outros materiais em combustão, o borbulhar dos gases e partículas quentes no interior do seu magma. É nessa dialéctica interior-exterior que este “Adormecido” é tão quente e poeticamente esclarecedor.
            Com a presença de diferentes câmaras espalhadas pela área do vulcão há no decorrer do filme a imagem de uma ossada de um cagarro em plano único e contido sobre a morte e a destruição a que este sítio é propenso, resultando tantos anos depois no seu esquecimento, permitindo aqui a prova de que o que importa é dar conta da actualidade e presente desse “deserto” possível e passível de pertença, após tantos anos passados da devastação inicial. Daí a interrogação: quantos filmes já pediu este vulcão? E, por isso, só um poeta da imagem é capaz de espalhar câmaras pela terra nova e captar a sua poesia visual e sonora para depois devolver-nos em jorro o que de mais profundo e alienígena assoma desta atmosfera carregada de detritos e escombros. É que podemos rebentar no ar esse conjunto de hipóteses de morte e de cinza que um lugar como Vulcão dos Capelinhos materializa mas, posteriormente, deveremos percepcionar e interrogar que aquilo que se encontra aparentemente adormecido e esquecido baste um curto, mas precioso filme, para despontar em nós a ideia de que  há sempre tanta coisa a bulir e a agitar-se por dentro.  Do vulcão e no interior de nós.

Um homem Sente-se Feliz nos Pleonasmos

Um homem sente-se feliz nos pleonasmos
comete excessos à exacta verdade dizer
sobe para cima da felicidade e exclama
era um fartote o querer contradizer-me
por vezes desce às catacumbas da dor
guarda um travo seco do amargo sabor a fel
espreita a noite escura sem saber

Confia devotamente nos pleonasmos
das escadas do pesadelo torna a subir
e do confronto com o ódio mais vil desiste
já que da morte nada sabemos
e é preferível pleonasticamente 
viver