quarta-feira, 15 de novembro de 2017

Uma Missiva Extraordinária de Janeiro com Selo e sem Dinheiro

Magnífico Doutor,

               A presente carta reveste-se de um carácter extraordinário e premente, e resulta da minha indisfarçável preocupação com o modelo adoptado para as Conferências da Fajã deste ano. Por este andar, qualquer dia seremos uma espécie de web summit regional, um folclore mediatizado de pseudo-hypster-trendy-dandys engalanados, preocupados com os seus egos, e pouco interessados no pensamento de vanguarda e no bem comum. Qualquer dia, as Conferências da Fajã são patrocinadas pela vodafone ou pela margarina vaqueiro! Como pudemos aqui chegar, Doutor Mara?! Como podemos deitar por terra todo o manancial de reflexão crítica e construtiva para a construção do Séc. XXII futurista e expressionista?! Para que tenha noção do meu estado, tenho o sobrolho a palpitar, de nervoso. Há pouco, tomei um calmante e um copo de Macieira, para ver se não descambo. Perante isto, temos de tomar uma atitude, Doutor Mara! Eis portanto a razão desta carta.
Em primeiro lugar, e porque nem tudo é mau, queria dar-lhe (pessoalmente) os parabéns pela escolha do Champagne. É realmente uma selecção cuja dignidade e sofisticação se coaduna com a elevação do evento. Eu juntaria apenas o famoso Boerl & Kroff Brut, bastante apreciado quando bebido em cenário natural ou florestal, combinado com leves odores a maresia. Infelizmente, não posso dar-lhe os parabéns pessoalmente como desejaria, dada a impossibilidade física e psicológica de me deslocar, pelo que deixo aqui os meus parabéns por escrito. Apesar de não ser um acto tão efusivo como seria pessoalmente, onde seria selado com um aperto de bacalhau e algumas palmadas nas costas, tem a vantagem de ficar registado para a posteridade ou pelo menos até que estas folhas voem dos seus bolsos para a beleza do desconhecido.
Sem causar prejuízo na congratulação antecedente, avanço com a minha severa crítica à escolha dos chefes Gomes de Sá e Bulhão Pato para conferencistas, pois como é do conhecimento geral, estão presos ao passado, são conservadores, botas-de-elástico, e contribuem sempre com a mesma receita para pensar o país, aquela que já apresentaram no passado, e que já enjoa de tanto enjoar. Relativamente aos restantes conferencistas, por muita categoria que tenham, vejo muita gente ligada à temática do turismo. E a consciência Futurista, Doutor Mara? O turismo é apenas um fenómeno passageiro do nosso tempo. É preciso ver mais além! É preciso gente das ciências ocultas, da sociologia, da meteorologia, das artes e letras, da indústria têxtil!
Por outro lado, reconheço no Doutor Mara qualidades para a organização de um evento deste gabarito, mas não vislumbro em si dotes de “curassário”, esse vocábulo espalhafatoso e sobredimensionado. Julgo que a Comissão Geral se precipitou ao depositar em si toda esta responsabilidade. O Doutor Mara precisa de ser assessorado por quem saiba da matéria. Infelizmente não vou poder ajudá-lo nesta fase, pois estou a tratar da minha dentição de forma a vir a revelar um sorriso irrepreensível nas sessões fotográficas das Conferências. Ainda assim, é meu dever dar uma mão a um amigo de longa data, sobretudo quando mais precisa. É por isso que a seu tempo enviarei algumas sugestões ao Dr. Costa Martins, da comissão organizadora. Quero no entanto, e previamente, recolher a sua opinião sobre a ideia que tive esta manhã, a aplicar já na próxima edição: Proponho que os conferencistas vistam roupas tradicionais dos seus países, para que os restantes colegas possam fazer um reconhecimento imediato da sua proveniência, podendo assim preparar antecipadamente uma abordagem para conversa casual nos coffee breaks, evitando-se desta formas constrangimentos linguísticos desnecessários. Estou certo que também considerará esta ideia genial. Fazemos o que podemos, com altruísmo, e por amor à causa.
Por fim, despeço-me do meu caro amigo com uma triste notícia. Por imposição das elevadíssimas e doutas autoridades sanitárias desta cidade, deu-se ordem para a extinção imediata do fabrico de filetes de peixe, com ou sem espinhas, pelo facto de este produto gastronómico não obedecer à normativa nº 121 do código de qualidade e segurança 3001 da União Europeia, com efeitos retroactivos e devolução imediata dos produtos adquiridos nas últimas 3 semanas. Assim, e por ordem daquela autoridade, solicito-lhe que me devolva os filetes de peixe da última remessa.
Com apreço e consideração
Janeiro Alves

Um Poema de Daniel Gonçalves

Dá-me o mar, o meu rio, minha calçada, dá-me
todas essas coisas, que embrulhei nas cartas, e
aqueci nos beijos, dá-me tudo de volta, mesmo
riscado e subtraído, sem pilhas nem escamas,
apenas o pó do silêncio, e o bolso fundo do
futuro, faz-me falta o musgo da sombra, que
levaste no presépio da alegria, dá-me o tempo
das searas, e o pão que devíamos ter amassado,
na poesia da nossa cama, dá-me a coleira dos
nossos gatos, para eu prender a tristeza, e voltar a
rezar, se não levaste também, o deus que sempre
nos perdoou, as horas no sofá, a esquecer que
tudo isto, como tudo o resto, passa e acaba.

Inédito com a Márcia 

Joana Gama apresenta "Viagens na Minha Terra" no Teatro Micaelense


               No ano passado, Joana Gama trouxe-nos Satie.150, mais a narrativa biográfica do músico francês e o seu quotidiano místico e fantasioso em que a vida deste se confundia com a sua própria obra. É que agora que cai tanta chuva por estas bandas que nos servia tanto aquele legado de guarda-chuvas que Satie deixou no seu apartamento da periferia de Paris.
Desta vez, Joana Gama apresenta-nos “Viagens na Minha Terra”, um reportório composto por obras de Fernando Lopes Graça e Amílcar Vasques-Dias. O recital é na próxima sexta-feira, dia 17 de Novembro, às 21h30, no Teatro Micaelense. O preço dos bilhetes ronda os 7,5 euros.

168 anos depois...

"Preservado em conhaque, o coração de Chopin revela causa da sua morte."
in Atlântico Expresso, 13 de Novembro de 2017

segunda-feira, 13 de novembro de 2017

Novembro entrou e o Telegrama para Janeiro quase voou

Caro Janeiro Alves,

                  Estamos de novo nas primeiras páginas dos jornais e nas bocas do mundo e não se fala de mais nada a não ser nos preparos e organização das Conferências da Fajã. Apesar das divergências que temos tido nas nossas mais recentes trocas epistolares, espero, muito sinceramente, poder contar consigo e com a sua inteligência para mais uma intervenção de alcance futurista.
    Sobre a sua última missiva, apraz-me registar que o meu caro amigo abordou de forma subtil a minha vida folgada, afirmando mesmo que esta é sustentada com um bom pé-de-meia que recebi de espólio familiar. Quais são as suas fontes? Já agora, o que é que tem a ver com isso? Quer arranjar o seu fato preto? E quer comprar um ventilador de ideias em segunda mão? E se mexesse esse seu rico corpinho? Espalhe a sua sapiência e teorias futuristas por novos contextos sociais e mercados… é que já não me chegava a sua mania recente de me enviar filetes de peixe sem espinhas!? No sentido de sossegá-lo, afianço-lhe também que me encontro seguro e que não fui transportado por nenhuma onda. 
              Certo, certo é que este é um dos momentos mais aguardados do ano. Caso possa, agarre-se à cadeira de Luis XIII em que está sentado, dê lustro ao carvalho francês maciço do Séc. XIX, pois tenho a comunicar-lhe que fui nomeado o principal e eterno Curassário (uma mistura de Curador com Comissário) das Conferências da Fajã. Surpresa??? De súbito, comecei a receber todo o tipo de propostas para prelecções irreais, discursos anómalos, intervenções atípicas e manifestos utópicos. Sei também que tem trabalhado noite e dia, medido e pesado o teor e conteúdo da sua intervenção, muito embora a atenção dada ao seu cágado de estimação. Conto, por isso, nos próximos dias enviar-lhe o magnífico programa em papel couché "brilho" pelos correios com textos e fotografias de todos os palestrantes, conferencistas, manifestos e pausas para champanhe que temos agendadas.
 Despeço-me com um abraço líquido a condizer com a estação, bem como os augúrios de bom trabalho, 
                                 seu amigo eterno,
                                                                                                                                Doutor Mara

domingo, 12 de novembro de 2017

De Raul Brandão

       "O que eu procuro, pela primeira vez na minha vida, não é o panorama - é a exaltação da vida livre."

terça-feira, 7 de novembro de 2017

Señoritas: Canções Dolentes ou Fábulas Urbanas?

“Disse-lhe que Portugal ainda tinha muitos comunistas
mas o que ele queria saber era onde havia señoritas
que o levassem a dar uma volta.”

in A Naifa, disco “3 minutos antes da maré encher”, poema de Tiago Gomes.


          A Galeria Arco 8 há muito tinha anunciado para o início de Novembro o concerto das Señoritas. Cumpriu-se a vontade e o motivo foi a apresentação do álbum "Acho que é meu dever não gostar", o mais recente projecto de Mitó Mendes e Sandra Baptista, cujo disco já tinha sido estreado em Setembro do ano passado. Conviria recordar que o projecto “A Naifa”, banda anterior do duo em questão e com impressão de Luís Varatojo, foi presença assídua em vários palcos do arquipélago, tendo existido mesmo um concerto mítico, à semelhança daquele dado no Teatro Faialense, em Maio de 2012, à altura carregado de  grande simbolismo, pois tratar-se-ia do primeiro concerto sem a presença do malogrado João Aguardela.
Na noite de sábado, o público no Arco 8 foi maioritariamente feminino. As Señoritas despontaram em palco com a força e a segurança de quem gosta muito daquilo que faz pois, segundo elas, continuam a ser livres de gostar ou não. Mitó Mendes canta e toca guitarra, Sandra Batista toca acordeão e baixo eléctrico e ambas socorrem-se dum 'leque' de programações que permite intensificar e preencher as 12 canções do seu álbum debutante.
 As letras de Sandra Baptista são directas, com versos simples e crus, a roçar emoções ferozes e com refrões disparados em revolta constante. Depois da abertura com a canção que dá título ao álbum, o foco recai em “7 Pragas” e remete a audiência para um ambiente peculiar. Há, sem qualquer dúvida, uma sensação de estranheza perante o arrojo minimal e que é traduzido neste casamento entre um olhar português do século XXI com aquilo que se pode chamar de pensamento urbano-feminista. A descontracção das duas em palco é bem visível nas canções como “Mão Armada”, um tema sobre a tensão pós-menstrual, ou “Nova”, que reflecte sobre quem recusa o envelhecimento, chegando mesmo a ouvir-se um coro de gente a cantar em uníssono: “viver bem/ sempre nova/ com os pés prá cova”. Pelo meio escutam-se outras variações ou fábulas urbanas e eis que intuímos a religião impregnada de culpa e de pecado em “Confesso” e “Confissão” - onde escutamos vozes gravadas em oração. Há também um lado sombrio em marcha fúnebre quando se repete até à exaustão - "Os funerais são os casamentos dos mortos", com uma letra a remeter para uma existência dolorosa. Menos sombrias e com cadências ligeiras e soltas ouvimos a abordagem ao torpor dos órgãos em “Ciática” ou o regresso à  infância com "Alice". A ousada proposta musical parecia ter chegado ao fim mas a dupla, entusiasmada, sentia-se em casa. 
    Por último, as senõritas regressaram ao palco para tocar os dois últimos temas, despedindo-se com uma versão por elas tão bem conhecida – “Amanhã”- dos Sitiados, canção que nos elucida sobre uma vida sem conflito a que não podemos deixar de fazer frente: “Alguém morre nos braços do mar/ alguém morre sem acreditar”. A verdade é que ainda havia muito para dançar e desfrutar com o anunciado DJ Fellini, certamente não o extraordinário realizador italiano, ainda que por instantes pensássemos ter estado na cidade das mulheres. 

segunda-feira, 6 de novembro de 2017

...

Naquele porto os metalómanos barcos
esmagam a paisagem
de energia brutal, parada.

Num barco soviético

o marinheiro põe o punho a meio gás
como o comunismo enjeitado na sua terra.

Disse-lhe que Portugal ainda tinha muitos comunistas

mas o que ele queria saber era onde havia señoritas
que o levassem a dar uma volta.

Tiago Gomes

domingo, 5 de novembro de 2017

Os Domingos de Lisboa

Os domingos de Lisboa são domingos
Terríveis de passar — e eu que o diga!
De manhã vais à missa a S. Domingos
E à tarde apanhamos alguns pingos
De chuva ou coçamos a barriga.

As palavras cruzadas, o cinema ou a apa,
E o dia fecha-se com um último arroto.
Mais uma hora ou duas e a noite está
Passada, e agarrada a mim como uma lapa,
Tu levas-me p′ra a cama, onde chego já morto.

E então começam as tuas exigências, as piores!
Quer′s por força que eu siga os teus caprichos!
Que diabo! Nem de nós mesmos seremos já senhores?
Estaremos como o ouro nas casas de penhores
Ou no Jardim Zoológico, irracionais, os bichos?

Mas serás tu a minha «querida esposa»,
Aquela que se me ofereceu menina?
Oh! Guarda os teus beijos de aranha venenosa!
Fecha-me esse olho branco que me goza
E deixa-me sonhar como um prédio em ruína!... 

Alexandre O´Neill, in Poesias Completas, 1981.