Come
sail your ships around me
segunda-feira, 10 de janeiro de 2022
sábado, 8 de janeiro de 2022
sexta-feira, 7 de janeiro de 2022
Da Memória
Talvez até morra um dia soterrado em arquivos, mas aprendi que os maiores prazeres e as coisas mais fiáveis da vida se dão ao toque. O papel que leio, que manuseio, que tesouro, que guardo, que revisito deu-me memória, inspiração, enquadramento, contraste, futuro. Tenho arquivos sobre temas que amo, mas sobre os quais nunca escrevi (comboios, por exemplo), mas sempre na esperança de um dia vir a fazê-lo. O meu último livro, sobre Amália Rodrigues, não teria sido possível se não tivesse praticado esse "desporto" anos a fio.
Se fosse padeiro, não guardaria o pão da semana passada. Se fosse médico, não colecionaria receitas. Calhou ser jornalista. Por isso, sou guardador e cuidador de papéis. Para mim, para outros. Os dias que correm estão a pôr-nos a jeito para a falta de memória. E de arquivos. Por este andar, não guardaremos nada para além do dia de ontem. E a memória de ontem é quase uma memória de peixe. No jornalismo, então, é uma doença mortal.”
quinta-feira, 6 de janeiro de 2022
"Balanço do ano literário" por Madalena de Castro Campos
se teria dado ao trabalho
de folhear ao menos o seu pobre livro?
Não diria comprá-lo, lê-lo,
arriscar-se a ter por mal empregue
o dinheiro gasto.
Apenas espreitá-lo, de pé, na livraria,
assegurando-se de que ninguém olhava e
mantendo-o à distância para evitar o fedor.
Percorrer os títulos, avaliar o corpo,
verificar a pontuação.
Lavar as mãos depois. Os olhos, a boca,
a língua com a qual iluminar o mundo?
quarta-feira, 5 de janeiro de 2022
Sobre os "Filhos da Madrugada", de Anabela Mota Ribeiro
"Público: E o factor família? Há muitos pais que não estudaram, mas dão importância à educação.
Anabela Mota Ribeiro: Sim, são os pais que compreenderam que a educação era uma vantagem, um caminho. Muitas destas pessoas falam abertamente sobre a pobreza. Este olhar para o passado, para a raiz, implica, em muitos casos, um reconhecimento de origens humildes. Uma amiga comentou, já o programa estava no ar, que uma ou duas gerações para trás todos íamos dar ao campo, à pobreza, ao analfabetismo; e que era importante, neste país envergonhado, que se vencesse um silêncio que ainda pesa sobre o lugar de origem, que nos constitui e forma. Muitos de nós sentem ainda desconforto, embaraço, dificuldade em dizer que a mãe foi criada de servir (como eram chamadas) que a avó era analfabeta, que vimos de um sítio de privação."
in Público, dia 2 de Janeiro de 2022.
"Perfetti Sconosciuti" de Paolo Genovese
Um jantar de amigos romanos, propensos a jogos durante o jantar, desencadeou o móbil para este argumento de "Perfetti Sconosciuti"", de Paolo Genovese. À altura, o filme gerou um debate intenso na sociedade italiana sobre o uso e abuso do "celullare". Por aqui, à semelhança de tantos outros temas de cariz contemporâneo, o assunto do filme passou ao lado, talvez a quadra festiva não o permitisse, obnubilados ficamos, assim, de qualquer reflexão ou pensamento que o seu visionamento possa ter sugerido. Não que o cinema deva estar ao serviço de bandeiras ou promover temas ou abordagens com fins imediatos, no entanto seria de bom de tom refletir quando as imagens e os diálogos assim o incitam.
Tiago Pitta e Cunha, Prémio Pessoa
" O desenvolvimento económico ainda de mãos dadas com a deterioração ambiental, e o nosso vem dos anos 80. Toda a construção em torno das grandes cidades, em solos agrícolas riquíssimos, que poderiam ter sido preservados para outras utilizações económicas; a construção nas falésias do Algarve; a questão dos incêndios, que foi altamente lesiva da biodiversidade e dos interesses económicos portugueses. Hoje temos muito poucas áreas a que possamos chamar floresta, o que temos são plantações de árvores. Se isto continuar, deixaremos de ter a tal biodiversidade, tão crítica para o futuro, nomeadamente até para a biotecnologia."
in Revista Expresso, 30 de Dezembro de 2021.
"Pink Floyd" de Sebastião Belfort Cerqueira
sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
Carta de Janeiro Alves nos confins de 2021
Sintra, 31 de Dezembro
Benemérito Doutor Mara,
Antes de mais, agradeço o facto de me ter comunicado que estamos no fim de mais um ano. Como sabe sou propenso a distracções. Já tenho duas garrafas de Raposeira no frigorífico e o meu paletó hondurenho está neste momento a ser escovado a quatro mãos. Adivinha-se uma noite de arromba, Doutor.
Apesar de ter ficado com uma clara ideia de que o meu amigo se encontra no domínio total das suas capacidades físicas ao ponto de ostentar diariamente essa carcaça velha no pesqueiro de Ponta Delgada, fico por outro lado apreensivo com os dilemas que enfrenta relativamente à maquia que está prestes a receber. Neste momento tenho disponibilidade para o ajudar, e até já desmarquei coisas que tinha combinado para lhe oferecer todo o auxílio necessário. Os amigos são para estas coisas. Envio-lhe em folha anexa o meu nib para que possa transferir essa pequena fortuna que irá receber, livrando-se assim de transtornos relacionados com assuntos financeiros que não são do seu domínio. Doutor Mara, vá descansado para a casa do Burgau, e sente-se comodamente a beber o seu vinho enquanto eu lhe multiplico a fortuna! Verá que estará em boas mãos. Peço-lhe apenas que ainda este fim de semana me faça um adiantamento de alguns milhares de euros, para que eu possa já começar a montar um escritório de investimento, que será composto por uma secretária, uma cadeira, um computador, um candeeiro de pé desprovido de ornamentos, um poster da Sabrina em fato de banho molhado, e um mini-bar. Os dias estão frios aqui por Sintra, mas tratarei de levar o meu termo ventilador de casa para evitar mais gastos desnecessários nesta fase. Aguardarei impacientemente a transferência enquanto esfrego as mãos até a pele se gastar.
Resta-me
agradecer-lhe toda a confiança depositada em mim neste assunto financeiro, e
desejar-lhe uma passagem de ano condigna com a classe colossal da sua pessoa.
Doutor Mara, você é um génio, e o melhor amigo que se pode ter. Não se engasgue
com as passas que amanhã tem de ir ao banco. Um abraço acompanhado de uma
lágrima de comoção. Se nos encontrarmos em Fevereiro, ver-nos-emos concerteza.
Janeiro
Alves
Missiva para Janeiro Alves já com a Taça de Espumante na Mão
Caro janeiro Alves,
Não
posso terminar o ano de 2021 sem deixar de lhe transmitir que recebi uma
fortuna incalculável de dinheiro proveniente de uma parente que não vejo há
anos, mas que se lembrava de termos ido várias vezes à Galiza, seis pessoas num FIAT127, comprar caramelos e bacalhau seco, durante a minha meninice. Descobri, assim, que esta familiar mantém-se viva e alegre, muito
embora a sua longeva idade. Disse-me também que actualmente se encontra
autossuficiente e que não tem a quem ofertar a herança acumulada de anos.
Imagine, amigo Janeiro, que não se trata apenas dum verdadeiro saco de notas em dinheiro vivo dado que também me falou em conceder a chave da sua casa de férias em
Burgau, no barlavento algarvio, onde diz ter passado os últimos invernos.
Conta-me, assim, que já não possui paciência para descer até à praia e que pretende conservar-se pela sua Idanha-a-Velha querida, muito embora o frio acachapante das Beiras
nesta estação.
Deste
modo, foram dias intensos nesta quadra passados ao telefone a relembrar memórias
de tempos pueris não obstante permaneça demasiado reticente em aceitar tanto dinheiro,
ainda por cima vindo de alguém que aparenta ter pouco juízo. Esta fez questão de assegurar que receberei
o dinheiro nos próximos dias e que, caso decida não o aceitar, poderei doá-lo ou
oferecê-lo a uma instituição ou até mesmo dá-lo de mão beijada a um amigo ou conhecido. A ausência de herdeiros a isso justifica e permite.
Por
isso, pretendo que me diga onde posso realizar os melhores investimentos, as melhoras apostas nos anos vindouros que se seguirão ou até mesmo perguntar-lhe se o meu caro amigo continua com dívidas de grande estrondo ou necessita de comprar um novo esquentador.
Despeço-me e aguardo a sua resposta ainda no decorrer do ano em curso. Acredito que o mês de Janeiro se repita e que o meu amigo não reforce no mês homónimo os trabalhos do carteiro.
Aperto de falanges
bem robusta
"O Mesmo Número" de Paulo Ramalho
Antes do naufrágio eu vivia numa ilha
escondida entre os dedos do tempo
-oráculo de pedra ou chão recortado a sal
sem amarras no passado ou âncora de xisto
mistério de lava com dias ímpares
para escutar o rumor do sangue
e dias pares para ouvir melhor o clamor do mar
casa em forma de vela
onde o vento era uma janela aberta
com ondas a dançar ao longe
Depois o barco adornou
como uma profecia demasiado rápida
e eu agarrei-me ao possível: um casco
com um vinho de trinta e cinco anos.
in Manual de Sobrevivência para Náufragos, Douda Correria,2020.