sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Da Memória

"O papel salvou-me sempre.
        Talvez até morra um dia soterrado em arquivos, mas aprendi que os maiores prazeres e as coisas mais fiáveis da vida se dão ao toque. O papel que leio, que manuseio, que tesouro, que guardo, que revisito deu-me memória, inspiração, enquadramento, contraste, futuro. Tenho arquivos sobre temas que amo, mas sobre os quais nunca escrevi (comboios, por exemplo), mas sempre na esperança de um dia vir a fazê-lo. O meu último livro, sobre Amália Rodrigues, não teria sido possível se não tivesse praticado esse "desporto" anos a fio.
     Se fosse padeiro, não guardaria o pão da semana passada. Se fosse médico, não colecionaria receitas. Calhou ser jornalista. Por isso, sou guardador e cuidador de papéis. Para mim, para outros. Os dias que correm estão a pôr-nos a jeito para a falta de memória. E de arquivos. Por este andar, não guardaremos nada para além do dia de ontem. E a memória de ontem é quase uma memória de peixe. No jornalismo, então, é uma doença mortal.”

Miguel Carvalho, Visão. 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Um Verso de Rodrigo Amarante

 Eu sei, sorte é não querer mais que viver

"Balanço do ano literário" por Madalena de Castro Campos

 Alguém, alguém, alguém
se teria dado ao trabalho
de folhear ao menos o seu pobre livro?
Não diria comprá-lo, lê-lo,
arriscar-se a ter por mal empregue 
o dinheiro gasto.
Apenas espreitá-lo, de pé, na livraria,
assegurando-se de que ninguém olhava e
mantendo-o à distância para evitar o fedor.
Percorrer os títulos, avaliar o corpo,
verificar a pontuação.
Lavar as mãos depois. Os olhos, a boca,
a língua com a qual iluminar o mundo?

in A Gun in the Garland, Companhia das Ilhas, 2019. 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Um Verso de Zeca Afonso

 Noite e dia ao romper da aurora 

Sobre os "Filhos da Madrugada", de Anabela Mota Ribeiro

"Público: E o factor família? Há muitos pais que não estudaram, mas dão importância à educação.

Anabela Mota Ribeiro: Sim, são os pais que compreenderam que a educação era uma vantagem, um caminho. Muitas destas pessoas falam abertamente sobre a pobreza. Este olhar para o passado, para a raiz, implica, em muitos casos, um reconhecimento de origens humildes. Uma amiga comentou, já o programa estava no ar, que uma ou duas gerações para trás todos íamos dar ao campo, à pobreza, ao analfabetismo; e que era importante, neste país envergonhado, que se vencesse um silêncio que ainda pesa sobre o lugar de origem, que nos constitui e forma. Muitos de nós sentem ainda desconforto, embaraço, dificuldade em dizer que a mãe foi criada  de servir (como eram chamadas) que a avó era analfabeta, que vimos de um sítio de privação."

in Público, dia 2 de Janeiro de 2022.

"Perfetti Sconosciuti" de Paolo Genovese

       
         Um jantar de amigos romanos, propensos a jogos durante o jantar, desencadeou o móbil para este argumento de "Perfetti Sconosciuti"", de Paolo Genovese. À altura, o filme gerou um debate intenso na sociedade italiana sobre o uso e abuso do "celullare
". Por aqui, à semelhança de tantos outros temas de cariz contemporâneo, o assunto do filme passou ao lado, talvez a quadra festiva não o permitisse, obnubilados ficamos, assim, de qualquer reflexão ou pensamento que o seu visionamento possa ter sugerido. Não que o cinema deva estar ao serviço de bandeiras ou promover temas ou abordagens com fins imediatos, no entanto seria de bom de tom refletir quando as imagens e os diálogos assim o incitam. 
          A premissa inicial do filme é muito simples: muita da   nossa vida contemporânea está focada nesse objecto aparentemente inofensivo - o telemóvel. Esse aparelho que se tornou "valioso" e, que muitos de nós já não prescindem, é usado, maioritariamente, para atender e receber chamadas, sendo cada vez mais se torna a nossa caixa negra em caso de o perdermos, dado que aí se encontram os nossos segredos e mistérios mais profundos! O ponto alto do filme está, portanto, na exposição dos nossos vícios e virtudes em público, sendo que  pouco ou nada há a fazer quando aquilo que não queríamos ver revelado passa a pertencer ao conhecimento e juízos de valor dos outros que nos estão próximos por relações de afecto ou amizade. O que fazer?
         Aquilo que torna "Perfeitos Desconhecidos" muito estimulante é sabermos que, com ou sem telemóvel, ninguém está assim tão seguro e permeável à exposição do olhar e julgamento dos outros, o que deixa, no final do seu visionamento, uma sensação  de estranha normalidade disfarçada de um intrínseco  e profundo mal estar. Afinal, as aparências iludem mesmo! 

Tiago Pitta e Cunha, Prémio Pessoa

    " O desenvolvimento económico ainda de mãos dadas com a deterioração ambiental, e o nosso vem dos anos 80. Toda a construção em torno das grandes cidades, em solos agrícolas riquíssimos, que poderiam ter sido preservados para outras utilizações económicas; a construção nas falésias do Algarve; a questão dos incêndios, que foi altamente lesiva da biodiversidade e dos interesses económicos portugueses. Hoje temos muito poucas áreas a que possamos chamar floresta, o que temos são plantações de árvores. Se isto continuar, deixaremos de ter a tal biodiversidade, tão crítica para o futuro, nomeadamente até para a biotecnologia."

in Revista Expresso, 30 de Dezembro de 2021.

"Pink Floyd" de Sebastião Belfort Cerqueira

O mar desapareceu
É o mesmo mundo

Como a manhã 
Viemos pra casa casar o sol na pele
E os mistérios do fundo 

Sabemos dos naufrágios 
De invernos só nossos
Que agora poderíamos 
Confessar aos muros 

Mas sabermos sentir 
O frio nos ossos
Com o sol na pele 
E nos óculos escuros 
E o vento na casa
E o sal nos dedos 

O mar desapareceu 
O mar voltou 
E apesar dos nossos piores medos 

in Música Normal , edição Companhia das Ilhas, Janeiro de 2021.

sexta-feira, 31 de dezembro de 2021

Carta de Janeiro Alves nos confins de 2021

Sintra, 31 de Dezembro

Benemérito Doutor Mara,

Antes de mais, agradeço o facto de me ter comunicado que estamos no fim de mais um ano. Como sabe sou propenso a distracções. Já tenho duas garrafas de Raposeira no frigorífico e o meu paletó hondurenho está neste momento a ser escovado a quatro mãos. Adivinha-se uma noite de arromba, Doutor.

Apesar de ter ficado com uma clara ideia de que o meu amigo se encontra no domínio total das suas capacidades físicas ao ponto de ostentar diariamente essa carcaça velha no pesqueiro de Ponta Delgada, fico por outro lado apreensivo com os dilemas que enfrenta relativamente à maquia que está prestes a receber. Neste momento tenho disponibilidade para o ajudar, e até já desmarquei coisas que tinha combinado para lhe oferecer todo o auxílio necessário. Os amigos são para estas coisas. Envio-lhe em folha anexa o meu nib para que possa transferir essa pequena fortuna que irá receber, livrando-se assim de transtornos relacionados com assuntos financeiros que não são do seu domínio. Doutor Mara, vá descansado para a casa do Burgau, e sente-se comodamente a beber o seu vinho enquanto eu lhe multiplico a fortuna! Verá que estará em boas mãos. Peço-lhe apenas que ainda este fim de semana me faça um adiantamento de alguns milhares de euros, para que eu possa já começar a montar um escritório de investimento, que será composto por uma secretária, uma cadeira, um computador, um candeeiro de pé desprovido de ornamentos, um poster da Sabrina em fato de banho molhado, e um mini-bar. Os dias estão frios aqui por Sintra, mas tratarei de levar o meu termo ventilador de casa para evitar mais gastos desnecessários nesta fase. Aguardarei impacientemente a transferência enquanto esfrego as mãos até a pele se gastar.

Resta-me agradecer-lhe toda a confiança depositada em mim neste assunto financeiro, e desejar-lhe uma passagem de ano condigna com a classe colossal da sua pessoa. Doutor Mara, você é um génio, e o melhor amigo que se pode ter. Não se engasgue com as passas que amanhã tem de ir ao banco. Um abraço acompanhado de uma lágrima de comoção. Se nos encontrarmos em Fevereiro, ver-nos-emos concerteza.

     p.s. Envio-lhe, à parte, os habituais filetes de peixe para a ceia de ano novo, agradecendo-lhe que posteriormente me devolva o respectivo recipiente já lavado.

 Do seu novo estratega financeiro e amigo em estado de permanência,

Janeiro Alves

Missiva para Janeiro Alves já com a Taça de Espumante na Mão

 Caro janeiro Alves,

 Escrevo para comunicar-lhe que estamos no fim de mais um ano. E que ano!  É mais um ano que passa e daqui a pouco lá contaremos as passas, não as do Algarve, mas aquelas que abrilhantarão o nosso futuro próximo. 2022 será um ano deveras glorioso, pleno de feitos esplendorosos e repleto de brilhantina para a nossa humanidade. Acabo de receber a novidade de que teremos a melhor safra de vinho das últimas décadas.

Não posso terminar o ano de 2021 sem deixar de lhe transmitir que recebi uma fortuna incalculável de dinheiro proveniente de uma parente que não vejo há anos, mas que se lembrava de termos ido várias vezes à Galiza, seis pessoas num FIAT127, comprar caramelos e bacalhau seco, durante a minha meninice. Descobri, assim, que esta familiar mantém-se viva e alegre, muito embora a sua longeva idade. Disse-me também que actualmente se encontra autossuficiente e que não tem a quem ofertar a herança acumulada de anos. Imagine, amigo Janeiro, que não se trata apenas dum verdadeiro saco de notas em dinheiro vivo dado que também me falou em conceder a chave da sua casa de férias em Burgau, no barlavento algarvio, onde diz ter passado os últimos invernos. Conta-me, assim, que já não possui paciência para descer até à praia e que pretende conservar-se pela sua Idanha-a-Velha querida, muito embora o frio acachapante das Beiras nesta estação. 

Deste modo, foram dias intensos nesta quadra passados ao telefone a relembrar memórias de tempos pueris não obstante permaneça demasiado reticente em aceitar tanto dinheiro, ainda por cima vindo de alguém que aparenta ter pouco juízo. Esta fez questão de assegurar que receberei o dinheiro nos próximos dias e que, caso decida não o aceitar, poderei doá-lo ou oferecê-lo a uma instituição ou até mesmo dá-lo de mão beijada a um amigo ou conhecido. A ausência de herdeiros a isso justifica e permite.

Por isso, pretendo que me diga onde posso realizar os melhores investimentos, as melhoras apostas nos anos vindouros que se seguirão ou até mesmo perguntar-lhe se o meu caro amigo continua com dívidas de grande estrondo ou necessita de comprar um novo esquentador.

Despeço-me e aguardo a sua resposta ainda no decorrer do ano em curso. Acredito que o mês de Janeiro se repita e que o meu amigo não reforce no mês homónimo os trabalhos do carteiro.

                     Aperto de falanges bem robusta

 Doutor Mara

"O Mesmo Número" de Paulo Ramalho

1. 
Antes do naufrágio eu vivia numa ilha
escondida entre os dedos do tempo
-oráculo de pedra ou chão recortado a sal
sem amarras no passado ou âncora de xisto 
mistério de lava com dias ímpares 
para escutar o rumor do sangue
e dias pares para ouvir melhor o clamor do mar
casa em forma de vela
onde o vento era uma janela aberta
com ondas a dançar ao longe 


2.
Depois o barco adornou
como uma profecia demasiado rápida
e eu agarrei-me ao possível: um casco 
com um vinho de trinta e cinco anos.

in Manual de Sobrevivência para Náufragos, Douda Correria,2020. 

quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Dos debates

            As pessoas que debatem insistentemente sobre temas que lhes interessam...só pode dar bom resultado. 
                                                                                                                Rui Horta, RTP3.