segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

A Estirpe do Sal

Domicílio de madeira coroada de sal
juntam-se cordas e homens-anzóis a levitar
profetas de sismos e trovões  
pancada espúria em dolente batida
humanos acordes vociferam clarões 
do mendaz grito no desenho de baía  
a fagulha eléctrica na voadora guitarra
dedos de sangue no círculo forjado 
fiéis apóstolos do musical magma
a negação do elo e da tradição
amanhã não mais celebraremos
ou cagarros da invernia inventados

Diários de Angra

        Ainda sob o efeito de "O Menino Mija", tradição que se prolongará até meados de Janeiro, passa-se à noite pelo Teatro Angrense e é de pasmar perante a beleza deste edifício considerado património de utilidade pública. Data do século XIX a sua construção, remetendo de imediato para o imaginário dos tempos áureos  da ópera italiana e do teatro romântico. Hoje a necessitar de obras urgentes de remodelação e recuperação, fala-se de uma verba de oitenta mil euros mas ainda sem data marcada para a sua execução. Imagine-se, portanto, as noites em que a população terceirense invade esta rua (Esperança de nome) e diminui a ventania nocturna que aqui se vive, insuflando vida e animação a este distinto lugar citadino, tão próximo da baixa e dos seus cafés. E quem já viu este teatro aberto, em forma de ferradura, exemplar único em Angra do Heroísmo e uma referência em todo o arquipélago, sabe como é necessária a sua abertura e actividade regular deste espaço para a vivência cultural da Ilha Terceira. É mais que sabido que a diversidade cultural irá diminuir em 2013 perante os cenários negros que se nos apresentam diariamente, basta verificar que os  Açores foram a região que mais reduziu o seu investimento na cultura (-23,6%), daí que este velhinho Teatro Angrense, belo e renovado, poderia ser um espaço de resistência e afirmação da cultura e identidade terceirense e açoriana.   

sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Os Flanilhas

Ilustração de Pedro Valim

Cultivavam esse amor antigo pela história ensinada nos bancos de escola que falavam do continente e das ilhas adjacentes. Sabiam desde sempre que o que tinham aprendido era importante mas não era certamente tudo aquilo que precisariam na medida certa para viver. Havia dentro deles um espírito marinheiro, errante, para além de serem amantes do oceano e das profundezas dos mares que rodeavam as ilhas atlânticas. Navegavam com inquietude pelos mistérios das ilhas como os antigos exploradores, absorvendo  o espectáculo e a simplicidade da vida  insular, absorvendo o rito e a passagem humana por esses antigos montes, vulcões e vales de solidão. No interior das ilhas era comum avistarem-se Flanihas em pleno acção, a flanar, muitas vezes a caminhar pelos seus próprios meios, longe de recusarem a rapidez das máquinas e dos avanços tecnológicos,  preferindo, no entanto, o movimento das solas e dos sapatos, das rodas das bicicletas, ainda o vagar lento dos transportes públicos, quando os havia. Há muito que sabiam que a espécie humana nem sempre era bondosa, sendo por vezes ressentida, fechada, dada a visões curtas e circunstanciais, mesquinhices, dependendo muito dos estímulos e cultura em redor e, talvez por isso, os Flanilhas despojaram-se de bens materiais, adquirindo apenas o que a terra e o mar lhes davam, afastando-se o mais que podiam dos bens materiais, ou pelo menos tentavam fazer por isso, retirando máscaras e fingimentos ao quotidiano. Os Flanilhas quiseram ser pele, osso e  tráfico desse dom humano que era o corpo aberto ao movimento, à experiência do vento e do sol, da vida ao ar livre, exposta ao coração da mãe natureza. Veneravam dessa forma os traços e os gestos das obras terrenas da vida e da passagem do Homem nas ilhas, os seus sinais de um desejo insaciável e vontade inquieta que se concentravam nas casas, edifícios, arquitectura e jardins. Amavam também as músicas celestiais que das suas vilas e freguesias ecoavam em dias de festa, romaria ou religiosidade. Os Flanilhas ficaram conhecidos por lançar garrafas ao mar carregadas de mensagens secretas que nunca ninguém seria capaz de decifrar, dado que eles há muito diziam desconfiar do valor das palavras. Preferiam a poesia do movimento, do corpo em fuga e sentido ambulante dada pelo  nomadismo dos primeiros viajantes. De ilha em ilha, o gosto, o prazer, o amor pela viagem. 

quinta-feira, 27 de dezembro de 2012

Estrela

O artista estava ali a equilibrar o jogo
corre o vício em acesa disputa 
sai valete e entra a dama 
no plasma de Hollywood 
-Quem quer ver?
paga a mini com o desenrolar da fita 
vai com murro 
o passado é a doer
iões de prata é a chave do presente
na partida só com lousa sobre a mesa
a colecção tem vitrine como afago
matraquilho sentimental em reunião
rico desassossego após labuta
ninguém é nada neste encontro 
líquida nave em desassombro
maré de sorte 
estrelinha ao fundo.

Diários de Angra

Os cafés de Angra do Heroísmo são uma seguríssima porta de entrada nesta cidade património da humanidade. Os cafés formam a personalidade da Angra convivial, tolerante, conversadora, aberta ao discurso do outro e da boémia, evidentemente. O sítio  mais badalado culturalmente é a "Pastelaria Portugália", antigo poiso de jornalistas, músicos, poetas e gente das mais diversas linhas e cruzamentos. Há também uma rua viva e com a preguiça típica das  esplanadas, que é certamente a Rua da Palha, sempre movimentada. Ali é só comprar o jornal e  seguir o caminho e o cheiro que exala dos cafés até às mesas expostas na rua com o mar ao fundo, com muito comércio e lojas de roupa e artesanato para apreciar. Quem resiste à Menina de Canela ("Cinnamon Roles") feitos com receita pessoal, cartão de visita do "Marquês", confeccionados por quem já esteve e regressou das Américas? Angra é certamente terra de doçaria e  com variedade de petiscos para o almoço, lanche ou mesmo jantar, fácil de comprová-lo  no Petiskaky, porto de abrigo de estudantes e demais clientes oriundos da escola secundária, tribunal e direcção regional da cultura, edifícios citadinos que ali gravitam. Na baixa, há também o "Marcelinos" que anima um centro há muito despovoado e com pouca ou quase nenhuma animação nocturna, sobretudo aos dias da semana. Aos fins de semana é difícil não dar conta da animação do Dona Amélia, no Alto das Covas, muito bem servido de jornais e livros e sempre com música a condizer, à escolha do freguês ou cliente com gosto ecléctico e aberto às diferentes andanças musicais. E como faz falta uma sala de espectáculos em pleno de actividades e que possa servir de alimento e oxigénio à respiração nocturna destes cafés que à noite estão mais que desertos ou então inundados e entupidos de imagens televisivas de jogos da bola repetidos ad nauseam...

Poema da Adivinhação

Quando os sábios da numerologia
supositório da vida em gabinete
puserem cobro à intrusa travessia 
que restará da insigne e devastada nau
e da sua sobressaltada tripulação?
Que canções, émulos  e bandeiras?
retrato enviesado das suas veias 
presente apropriado à burla e à rapina 
rotas algibeiras de insatisfação
melancólico destino assim ultrajado 
em mácula dor assim exposta 
com letargia e sem convulsão. 

quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

Metereopatia

DM: Caro Doutor Mara,  fale-nos aos estudos que tem vindo a desenvolver, pois temo-lo visto a passar pelo centro da cidade com muitos livros e, pouco agasalhado, o que não é normal para esta altura do ano.
Doutor Mara: Neste momento, fruto de uma pausa laboral imposta por este governo de sábios da numerologia, dedico-me ao estudo da Metereopatia.
DM: Doutor Mara, estamos atónitos, sinceramente, diga-nos, em primeiro lugar, em que consiste a Metereopatia?
Doutor Mara: Como a própria palavra indica refere-se à alteração que o estado do tempo provoca no comportamento humano - visível e invisível. As mudanças e variações que o estado do tempo provoca no eu individual e colectivo dos povos. Nós, portugueses, somos completamente dominados pelo estado do tempo e raramente temos consciência disso. Os suecos ganharam consciência desse facto e arranjaram formas de lidar com esse  problema. É impressionante o número de bandas suecas pop da actualidade  que cantam os verões do sul, por exemplo. Há, inclusive, uma banda intitulada "El Perro de Barcelona", já para não ir lá atrás buscar os ABBA. É uma forma de aliviar a pressão de muitos meses de inverno, passados dentro de casa ou fechados no quarto junto de computadores. A social-democracia sueca, por exemplo, foi muito longe porque na Suécia, não só devido à cultura e ética protestante, mas também devido a invernos longos e prolongados, pois as pessoas vivem muito isoladas e desenvolvem formas de autonomia, sobrevivência e independência muito maiores que no sul. A falta de luz no exterior faz com que se procure a luz no interior da comunidade.
DM: Por que é que decidiu dedicar uma boa parte do seu tempo a um estudo, uma parcela do conhecimento, com tão pouca cientificidade no nosso país?
Doutor Mara: Bom, há quem se dedique a estudar a influência da Vitamina B12, uma das componentes da sardinha, na dita melancolia e saudade portuguesa. Mas, foi sobretudo em dia de grande tempestade. Eu encontrava-me  no norte do país a mostrar uma cidade do litoral a um encenador lisboeta, chovia imenso, e era impossível caminhar pelas ruas da cidade, quando este me disse  que aquele dia de chuva intensa era propício à leitura de romances russos...um dia assim seria para ler na cama os romancistas russos, com Dostoievsky e Tolstoi à cabeça. Foi aí que pensei: "Há aqui uma mina de estudo para desenvolver". A partir daquele momento, revi os meus conhecimentos básicos da psicologia moderna e atirei-me de galochas para o estudo da Metereopatia. 
DM: E que dados concretos foi descobrindo?
Doutor Mara: O sério desta questão é que o estado do tempo tem uma influência de forma acentuada no eu, individual e colectivo. Vivemos numa sociedade com um elevado número de metereopáticos. Há pessoas que funcionam muito com a presença ou não da luz do sol nas suas vidas, pessoas que gostariam de não ter que se confrontar com nuvens durante algum tempo ou pessoas que se modificam, se reinventam, com a chegada dos raios de sol. Veja-se, por exemplo, o caso das nossas ilhas e a quantidade de escritores que estas já forneceram ao nosso país. Herberto Helder é o escritor  que é,  um escritor em tom maior, devido ao sol da Madeira, os Açores  tem uma bruma na literatura que não se vê em mais nenhum outro sítio. Ou então, ouçam-se os coros e os corais alentejanos para perceber que são tudo expressões e influência do estado do tempo, em que depois  a cultura e a música logo se encarrega de expressar. A Metereopatia devia ser tida em conta na economia e a verdade é que não é. Os povos do norte trabalham e produzem muito mais por uma questão de temperatura e depois bebem mais cerveja para compensar essa dedicação ao trabalho. Os invernos rigorosos e a impossibilidade de andar na rua no Inverno casa obriga a uma outra estratégia para lidar com a natureza e a sobrevivência. 
DM: Dizem inclusive que os povos mais felizes são os latino americanos, será que é por não estarem sujeitos à metereopatia?
Doutor Mara: Sim, completamente. Ali combina-se a temperatura e a lentidão do progresso económico e tecnológico. Tudo tem o seu tempo e depois há a música em tons maiores que faz com que qualquer sueco seja o melhor dançarino após a ingestão de uma cuba livre ou dois goles de tequila. 
DM: Doutor, uma pergunta muito pessoal:  considera-se um metereopata contemporâneo?
Doutor Mara: Sim, dentro do possível e de um quadro clínico ainda por desvendar. Em manhãs de nevoeiro, por exemplo, como sempre uma anona e, por vezes, uma barra de chocolate para aumentar os níveis de serotonina  no cérebro. 

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Belas Artes

Ergue-se à solidão um obelisco 
no alto do casulo desarrumado
a fada subtilmente estende a lã
como nuvem distraída sem descanso
implacável é o rumor da ventania
tecer a forma eleger figura
hora a hora o tempo clama
as mãos dão azo ao prumo à fantasia
inquietude sem clemência a perfeição
no decantado algodão se aprimora
triunfantes em leito de caos levitam
em nada em concreto se alimentam
apaziguados do jeito e da formosura.

Diários de Angra

Visita ao Pico das Cruzinhas no Monte Brasil, paisagem protegida, para  obter assim uma panorâmica geral da cidade. Há oitenta anos ergueu-se aqui um padrão para assinalar os quinhentos anos da descoberta da Ilha Terceira. E daqui é possível ver a imponência arquitectónica da cidade e absorver Angra do Heroísmo sob a forma nebulosa e melancólica, há muito considerada monumento regional.Passaram trinta e dois anos sobre o enorme terramoto que arrasou com Angra do Herosímo, tendo este  destruído a baixa da cidade e uma das suas mais emblemáticas igrejas, a Catedral da Sé  (séculos XV e XVI), que teria novo episódio alguns meses mais tarde com a ocorrência de um incêndio que destruiu a talha dourada. A cidade seria reconstruída na sua forma original  e reconhecida pela UNESCO como Património da Humanidade. Pela manhã houve também visita ao Mercado do Duque de Bragança, na Rua do Rego, para adquirir bens essenciais e participar no festival de cores ali disponível: anonas, castanhas, laranjas, bananas, ervas aromáticas, peixes vários e legumes com fartura. Longe do frenesim automobilístico das vetustas e admiráveis ruas da baixa, aqui ainda é possível conversar, discutir os preços, os cortes e os impostos, bem como caminhar como quem participa num espectáculo policromático com a banda sonora de palavras amigas e discretas. 

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Do Medo

"É natural que quem quer "elevar-se" sempre mais, um dia, acaba por ter vertigens? Medo de cair? Mas então porque é que temos vertigens num miradouro protegido com um parapeito? As vertigens não são o medo de cair. É a voz do vazio por debaixo de nós que nos enfeitiça e atrai, o desejo de cair do qual, logo a seguir nos protegemos com pavor (…) Poderia dizer que ter vertigens é embriagarmo-nos com a nossa própria fraqueza, mas em vez de resistir-lhe, queremos abandonar-nos a ela (…) Embriagamo-nos com a nossa própria fraqueza, queremos ficar ainda mais fracos, cair por terra em plena rua à frente de toda a gente, ficar por terra, ainda mais abaixo que a terra."                                                                                               


                                                                                   in A Insustentável Leveza do Ser, Milan Kundera  

sábado, 15 de dezembro de 2012

Cinema

Axial compromisso adiado
acre da maresia na respiração
nuvens brancas em movimento
imaginação em câmara lenta
fragmento pobre, gesto imperfeito
líquida atmosfera envolvente
vento acelerado da degradação
exaustiva repetição em desalinho
ferve agora o passado no presente
corre a lava no interior do vulcão
espreita-se o fotograma escorreito
apagam-se luzes de insatisfação.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Diários de Angra

   Caminhar pelas ruas antigas de Angra do Heroísmo é descobrir-lhe o peso e as virtudes arquitectónicas do passado, passear e ver cada canto e espaço iluminado, ainda que à noite estes passeios estejam desertos e as estradas ocupadas por carros estacionados.  Mesmo assim, com o passado espelhado nas fachadas, varandas e janelas, nem um único sinal que seja, um rasto possível ou imaginário da vivência da família ou da vida  de José Júlio de Souza Pinto, pintor naturalista, angrense de nascimento, de quem José Augusto França disse ser "o mais brilhante dos paisagistas". Leio também que começou a desenhar aos quatro anos de idade, por influência da mãe Anna de Souza Loureiro, também ela pintora, e que este ficava com o coração despedaçado sempre que lhe tiravam a lousa com os seus desenhos. É destas árvores com troncos que continuam a folha da vida por gerações a fio que impressionam e nos querem fazer acreditar na transmissão do "gene das artes". E, entretanto,  em deambulações pelo jardim do Duque no centro da cidade -   recentemente em livro de imagens com "humor e ternura" pelo fotógrafo Paulo Garrão - que imagino essa mesma continuação da tradição de pintores e artesãos da palavra ao longo dos tempos. O mesmo espanto sentido ao saber que o poeta angrense Rui Duarte Rodrigues (autor do livro com o título dos títulos - "Os Meninos Morrem dentro dos Homens", 1970) deixou descendência literária em Tiago Prenda Rodrigues, autor de um promissor  livro de poemas com o singelo nome de  "1"(2001, edições teatrinho, espaço de criação), estando este acessível em estantes de cafés da vida angrense, como é o caso do Dona Amélia.  Em suma, as mãos percorrem esse trabalho de asa que é a transmissão dessa correia do passado até ao presente e a partir dali vivenciá-lo, irradiá-lo de energia e amplitude, mantendo a chama da vida  acesa e contagiante. 

sábado, 8 de dezembro de 2012

Social-Democracia

Foto: FN



     "Nunca seremos vítimas desamparadas de forças anómicas. Nunca deixaremos de confiar  totalmente as decisões a profissionais e a especialistas. A política é susceptível de ser pensada e julgada por cada um de nós. Isto porque dependem em último caso de ideais e de ideias."
                                                                                                                                           Olof Palme

Diários de Angra

"A Volta dos Barcos" (1891)
de José Júlio de Souza Pinto  
      Como se fosse a primeira vez, aliás, é sempre a primeira vez quando quando voltamos aos lugares onde apenas estivemos de passagem. Regresso assim a Angra do Heroísmo com uma antiga missão: encontrar "vestígios de vida" do pintor naturalista, José Júlio de Souza Pinto. Há três anos deu-se um caso insólito na Ilha do Faial, fui surpreendido com um postal à entrada do Museu Municipal da Horta e, mais tarde, pela respectiva obra na sala de exposições. A pintura intitula-se "A Volta dos Barcos", consta também a indicação (Póvoa, 1891), um ano antes da ocorrência da maior tragédia marítima naquela cidade. A partir de 28 de Fevereiro de 1892, as mulheres e os pescadores poveiros deixaram de poder usar cores garridas e passaram a trajar de preto. O quadro é elucidativo da angústia, o desespero contido de quem espera indefinidamente por alguém que lhe é próximo e não sabe se volta. O pintor José Júlio de Souza Pinto nasceu antes da invenção do cinema, mas é através dele que eu imagino, visualizo, recrio a vida dos meus antepassados naquele tempo. Adriano de Souza Lopes diz mesmo que foi nesta cidade nortenha que este pintou os melhores quadros de composição. Por isso, decidi "procurá-lo" na terra onde nasceu e viveu até aos três anos de idade, pois logo a seguir o seu pai mudar-se-ia para a Ilha de Santa Maria, para aí exercer as funções de Juiz de Direito.

sexta-feira, 7 de dezembro de 2012

Açores

                                                         I
  "Entretanto, tudo em Portugal se detiorou, sobretudo o verão. Ou pelo menos assim pensava, até que a Fátima e os Açores surgiram como hipótese de fugir à grunhificação do nosso litoral e caminhar para zonas líquidas de outra intensidade. Descobri nos Açores o Portugal que julgava perdido e nunca mais abandonei essa pacificação de viver."

                               II
"Tudo cansa menos que na Horta, mais húmida, aparentemente mais cheia e, contudo, menos dotada de abundância, os iates trazem consigo uma gente mais boçal, há um café de ademanes turísticos por junto de  armazéns  dos Bensaúde onde estes labregos das ondas se juntam, um espaço desagradável com um comércio de osso, fotografia e isqueiro, um pouco para o porto como as loja bentas para o santuário de Fátima."
                                               
                                                                                       III
"(...) O Corvo de Raul Brandão, como os Açores de Raul Brandão, há muito que deixou de existir. Com a chuva, a luz da água que tombava nas encostas, na cercania do porto ficava mais nítida do que com o sol. Comecei a despedir-me dos palheiros, ao cimo, à direita, pelo alto de Vila Nova, e no porto, quase rente às hélices, as crianças nadavam e gritavam e viam partir lanchas como a nossa para a pesca, para a vida sem Deus. Não era um éden; era uma terra que queria viver  e o tentava fazer bem. Talvez um pouco monótona, talvez com enraizados pré-conceitos, mas com rádio local, com vídeos, como na Amadora ou em Rio Tinto ou em Torre de Dona Chama- sem a agressão de uma sociedade do anonimato, com as agressões de uma sociedade de vizinhos. Sobretudo, com as mesmas formas de morrer."
                      Joaquim Manuel Magalhães, Do Corvo a Santa Maria, Relógio de Água, 1993

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Teatro

O jogo não é fácil
há um aviso logo à entrada
no seio da farândola noctívaga
até à canada deserta de acesso interdito
fogo ébrio em angra de mar
o porta estandarte do gerúndio
de volta ao palácio no alto da luz iluminada
não adormeças cedo em letargia dominante
navegar à flutuante ilha em alto mar
ateador esforçado de litanias sem cardápio existencial
velha e incessante transumância
redobras atenção ao ouvido
na primazia do homem com a tez de salitre a perorar:
-queres polvos, leãozinho?

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Tempo de Experimentar

"2: Sagrado, Profano"

        O Experimentar Na M'Incomoda tem novo disco, desta feita intitulado "2: Sagrado, Profano" e que teve a sua apresentação pública no teatro faialense, Ilha do Faial, no passado dia 9 do mês de Novembro. O segundo disco volta a juntar Aurora Ribeiro, Zeca Medeiros, Pedro Gaspar, "Pietá" Pedro Machete, Jácome Armas e, agora a voz de Mi, cantora sueca. É mais um capítulo da reinvenção da  tradição e acrescenta à música dos avós as tecnologias deste tempo acelerado. Adiciona deste modo vários pontos de vista  à  paleta sonora musical existente, refaz os temas com muitas camadas, samplers e maquinaria envolvente. Retoma, inclusive, de forma arriscada e intuitiva o trabalho efectuado por músicos como Carlinhos Medeiros e José da Lata. Quem ouve à primeira vez não escapa à ínclita descoberta, ao trabalho de divergência e mistura da música insular bem como se expõe à enérgica investida da invenção e cumplicidade com estes "novos temas tradicionais". Desde os temas "sagrados" "São José a Caminhar" e "Interlúdio: Cantar ao Divino" às profanas "Lira" e "Sol" - com a voz de Pietá - tudo serve para Pedro Lucas revirar a batida e voltar a dar... com respeito (ou falta dele?) e intensidade. Em Novembro houve apresentações do disco ao vivo (15, Music Box), em Lisboa e (17, Passos Manuel) no Porto. É, sem dúvida, tempo de experimentar...