sexta-feira, 31 de outubro de 2014

O espanto é não querer avançar.

        O espanto é naturalmente zetético. E viver espantado pode não significar avançar. Adiantar um passo que seja é diligenciar reboliço, convidar à inquietação, ao seu próprio alvoroço, atrair o individual temor perante qualquer movimento em falso. O espanto é este tumulto imóvel, desejar somente contemplar, e assim não determinar a finalidade de um gesto repetido quotidianamente. Olhar e unicamente experienciar a vida pelo interior de nós a deslizar.
       Não querer avançar pode ser também um ato de erudição. Pura sapiência. Evocar os seletos sábios ou o que fomos lendo deles. Permanecer prostrado perante tão delicada planta no corredor da existência serôdia. E de tão alta, tão esguia, tão bela e discreta que o seu nome é só aquilo que a natureza guarda. De gáudio fascinante. Enquanto me curvo é-me concedido um sorriso, o avistar do semblante, o despertar daquela presença concreta e cheia de graça. E de forma vegetal flui a seiva no apelido, já o sabemos. Queremos, por instantes, admirá-la. Essa exibição fresca de movimentos, o fausto e prazenteiro deleite do perfil diariamente visível. E que secretamente escapa, foge, regressando por vagas. É a fina delicadeza em figura, quase sem expressão, como num sonho muito antigo, concedendo apenas aqui e ali um esgar, um minúsculo devaneio de luz e deslumbramento. E a frágil certeza de que o digno de espanto é não querer avançar.

quinta-feira, 30 de outubro de 2014

No meu país

No meu país
dardejado de sol e da caca dos gaios
só há estâncias
(de veraneio) na poesia.
Nossos lábios
a um metro e sessenta e tal
do chão amarelecido
dos símbolos
abrem para fora
por dois gomos de frio.
Nossos lábios outonais, digo,
outonais doze meses.
No entanto
à flor da possível
geografia
um frémito cinde
as estações do ano.

 Sebastião Alba, in 'O Ritmo do Presságio'

domingo, 26 de outubro de 2014

Queria que me acompanhasses

Queria que me acompanhasses
vida fora
como uma vela
que me descobrisse o mundo
mas situo-me no lado incerto
onde bate o vento
e só te posso ensinar
nomes de árvores
cujo fruto se colhe numa próxima estação
por onde os comboios estendem
silvos aflitos.

Ana Paula Inácio, in Vago Pressentimento Azul por Cima, Ilhas, 2000.

A Estação

Fotografia de Tiago Rodrigues.
(Ilha das Flores)

Ontem escrito numa parede da cidade.

"Quando a hora mudar, prometes não falar mais do último verão?"

sábado, 25 de outubro de 2014

Lucas e Medeiros esta noite no Music Box

       A reunião da dupla no concerto do Experimentar Na M´Incomoda, Junho de 2011, que esta pequena imagem dá conta, anunciava já que aquele encontro em palco não poderia ter ficado por ali. E a verdade é que não ficou. Todos os que assistiram ao momento único e celebrativo sabiam que a dita "partilha" era já sinónimo de algo  novo por vir e da absoluta rendição em curso. São, portanto, eles que anunciam esta noite a mudança da hora no Music Box e, não há que ter medo de dizê-lo, que se trata do disco e das canções mais aguardadas deste estação incaracterísitca e avariada. Por sinal, concluído nesta semana de temperaturas elevadas. Aguardemos.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Música d´Outono

Sharon Van Etten - Are we there (Maio 2014)
Faixa: "Afraid of Nothing"
"I can't wait
Til we're afraid
Of nothing
I can't wait
Til we hide
From nothing
Nothing
And you decide
You throw me a lame "wait shit out"
You're a little late
I need you
To be afraid of nothing"

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Aguardar a Ocidente

Fotografia: Tiago Rodrigues

A Imperfeição da Filosofia

         “Há uma grande diferença entre aprender, emagrecer, curar-se, edificar, caminhar e ver, ajuizar, compreender, viver, ser feliz. Há alguma coisa nessa actividade, que é o filosofar, que tem alguma afinidade com caminhar, aprender, curar-se, no sentido em que, efectivamente, é mais pela indeterminação do lugar onde se quer chegar, mais pela impossibilidade de traçar um limite preciso do que pela clara realização da actividade enquanto fim, que aceitamos que filosofar seja como viver ou ser feliz. E isso vê-se no nome Filosofia: amor, uma dedicação e cuidar do que é justo, do que é bom e verdadeiro, da sabedoria, aparecendo o fim da Filosofia aos olhos de Platão como nunca detido: o filósofo não é sábio, está a dois pontos afastado da sabedoria.
          Pois aquele que ama está num embaraço, não sabe o que faz, anda à procura. Não é esta a maneira menos decisiva de justificar a natureza incompleta da Filosofia – termo cujo significado nunca se fixou definitivamente - tarefa intrigante, que leva de cada vez a cabo uma inquirição de identidade, desde sempre grande motivo de escárnio de escândalo. Com efeito, só se pode amar aquilo que não se possui. A imoderação própria da actividade filosófica tem que ver com a natureza do amor.”

in  A Imperfeição da Filosofia, Maria Filomena Molder, Lisboa, Relógio d´Água, 2003.

Poema

Preferia não saber das ruas
onde posso desfazer-me do desejo.
Ir ao encontro das estátuas
para me refazer do medo.

A noite é pequena e cabe
num gesto atirado ao ar
quando se parte sem olhar para trás,
nem necessidade de confirmar amor algum.

 Tirei tudo dos bolsos.
Toquei o rosto para sentir a temperatura.
Não estou morta nem vou morrer.

 De regresso a casa, a única certeza:
que a manhã virá para reflectir a palidez,
a habitual dificuldade em existir cedo.

 
in Pedra de Lume,  Marta Chaves, Lisboa: Paralelo W, 2013, p. 27

Ontem escrito numa parede da cidade

"No Fulanal só podemos ser fulaninhos e fulanões."

domingo, 5 de outubro de 2014

Mar de Outubro

Outubro é o mês da limpa saudade. As raparigas e os rapazes deixam de falar do insondável verão. Os telemóveis suspiram, descansam mais um pouco, sucumbem até aos próximos fins-de-semana. Sosseguemos. Fumam-se mais cigarros no intervalo da vida. E das vagas certezas quotidianas arrefecemos antigos entusiasmos e outros devaneios futuros. Por instantes, não queremos ouvir falar de promessas elencadas no calor das areias. Os dias, subtis, escondem mágoas e às oscilações dos travesseiros contornamos com o azul desbotado das camisas pois julgamos ainda que o Outono ainda não nos venceu completamente. Olhamos em redor e vemos que há paredes que ficaram eternamente por pintar. Prometemos que será no próximo verão de calendário. Até que pode haver dias em que contrariarmos tudo isso. Pode ser hoje, já este domingo? Claro que sim. Levantar com os galos, bem cedo pela manhã, querer muito rever os animais que habitam neste meio do oceano, o atlântico, como sempre na parceria daquele lobo do mar, generoso e sábio, mesmo que os motores possam hesitar nas horas do regresso e, que, contrariamente a tudo o que possam dizer, persistamos no riso e na alegria, ainda que outros continuem frios e distantes sem saber o valor destas horas de contentamento e sem programa. Lembrar que no início da viagem aquela visita dos cagarros que caem a pique, suspendendo a trajectória para impressionar o nosso esgar e lhe seguirmos indefinidamente o rasto no redemoinho das vagas, até depois avistarmos os alvos garajaus nos preparativos da partida até outros lugares de canícula e do sereno do céu. Assim, sem plano traçado, apenas o céu de chumbo e de chuva, ora azul ora cinzento, não prevendo um dia inteirinho no mar na sua cor de cobalto, com a companhia de cachalotes, tão tímidos e exuberantes no seu bufar ou ainda de dinâmicos golfinhos em velocidades leves e estonteantes, de tão exibicionistas naquele brio de performances colectivas. Eis-nos, assim, de volta ao oceano e ao mar. Ao mar de Outubro.  

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Esta Manhã

Esta manhã
vi prédios
beijarem nuvens
e vi nuvens
abraçando prédios.
Esta manhã
soube que
nem só de prédios
vive o céu.

Henrique Manuel Bento Fialhoin Entre o dia e a noite há sempre um sol que se põeEdição do autor, Rio Maior, 2000.