terça-feira, 30 de abril de 2019

Durutti Column: Música Ondulante


Desconfio que o meu conhecimento da existência dos Durutti Column possa ter sido adquirido após uma leitura do jornal Blitz nos idos anos oitenta. Porventura, no meio da enxurrada de que faziam parte os Joy Divison, The Gist, Young Marble Giants, The Clash, U2, The Smiths, ou ainda uma catrefada de bandas ouvidas naquela altura até à exaustão, isto é, até ao desgaste das agulhas, julgo ter chegado assim à guitarra maravilhosa e ondulante do fantástico magriço Vini Reilly e dos seus Durutti Column, muito por graças daquele semanário musical. 
            Sei, actualmente, o que não abona nada a meu favor, o facto de nunca na vida ter assistido a qualquer concerto dos Joy Divison, U2, Echo and Bunnymen, ou mesmo dos The Smiths, bandas que circulavam abundantemente em cassetes e vinis pelos diferentes aparelhos sonoros lá de casa, no entanto é também verdade que raramente faltei aos concertos dos Durutti Column nas suas aparições em Portugal. E…como  é viva e intensa a memória desses concertos. No final, permanecia à porta dos camarins à espera da saída dos músicos e assim estender-lhe o bilhete para que estes autografassem, tendo chegado a oferecer as páginas do livro “Escrítica Pop”, do Miguel Esteves Cardoso, onde este assinava crónicas de puro deleite e encantamento sobre as bandas de Manchester nos idos anos oitenta. Ele, Vini Reilly, sempre com a maior das delicadezas e bonomia, agradecia e, com a devida humildade, despedia-se, prometendo voltar. Lembro-me agora que, já naquela altura, a imagem do próprio Vini Reilly ser de uma enorme fragilidade física, tal como era delicada a forma como dedilhava a sua guitarra e se colocava em palco perante o público. A suportá-lo em palco, estava constantemente um homem bojudo e sorridente, o baterista, Bruce Mitchel, que sorria enquanto baloiçava com as suas baquetas.
Recordo ainda o final de um concerto no Teatro Rivoli, na cidade do Porto, ter subido ao palco e, enquanto ele recolhia os cabos das suas guitarras, eu lhe ter dito – “Robert Fripp afirmou que és o melhor guitarrista do mundo”. Ele, na plenitude da sua humildade, respondeu: “Fripp is crazy!”. Outro momento memorável, foi em Torre de Moncorvo, numa das edições iniciais do Carviçais Rock, em que lhe desejei boa sorte para o concerto que ia começar, o que redarguiu  de imediato com um sorridente - “It´s just one gig!”. A economia de palavras foi sempre uma particularidade sua, bastava por isso assistir aos seus temas cantados na sua voz sussurrante, demasidado comedida e dolente, ao longo de mais de trinta discos editados. Num dos seus últimos concertos no Porto, outra vez no Rivoli, a que estranhamente não pude assistir, pedi para que lhe entregassem uma colecção de postais e uma edição do livro “Construções na Areia”. Nunca soube se alguém lhe terá feito chegar esse material em jeito de presente, aquilo que pretendia ser um agradecimento pelas três décadas de músicas que ofereceu e acompanhou os seus admiradores. O que, por instantes, ficou por dizer: “Muito Obrigado!”

Um Verso de Mike Scott

Close your eyes breathe slow and we will begin

domingo, 28 de abril de 2019

Do Absurdo

        "O peixe estava fresquíssimo. Repeti duas vezes. Não, três vezes. Fiquei até com dor de barriga."
A Smith, in "A Cantora Careca " de Eugène Ionesco, Colecção Teatro de Bolso.

sábado, 27 de abril de 2019

Cinco Poemas a Fechar Abril

Desta Nebulosa Promessa

Aconteceu numa viagem em falta
tal cometa a aproximar-se
os fios estirados na estrutura
alimento lento em comunhão
houve leveza e brevidade
comoção e expansão da luz
a fusão ao sublinhar da chama
prometia ser simples a distância
laços linhas anéis círculos
até nada mais se saber do plano
o sol incitado a recuar

Aquário sob Fogo

Desveladas quimeras na liquidez
raiz de nuvem a despontar
acresce o princípio da causalidade natural
potência e energia 
abalo num estado de atração
poder e rosto na matéria do universo
inclinação e tenacidade
invisibilidade remanescente das unhas.


À Margem da Arquitectura

Da solene arquitectura pressentida
surpresa na luz à saída
casa-ilha desenhada de perfil
encobre linhas dessa herança
ruína por si só já garantida
destino e pilastras erigidas
cada qual no seu casulo
impedem ponte ou rumo 
hibernação 
até do traço e do desenho.


Janelas Fechadas à Passagem

É dia de celebração com janelas
cerradas, silenciosas à passagem
nada se inventa para lá do esperado
mesa sobejamente minúscula 
apta a carregar rotinas
enuncia a cor da vida de enfiada
uma conceção do labor que embala
regras rigor tramas desafios
abala o propósito de chegar longe
isto de ser alegre e de ser livre

Algures da Tristeza: a Tua Ausência

A gravura no café airosamente ensina
imaginar indigências na tua ausência
cavo um fundo desapego ao silêncio
dor e queda em teu rochedo
sento naquele banco o desalento
desatino súbito a desbobinar:
-Amar é rir sem saber de quê?

Paragem de Autocarro

Auguro-te uma estrepitosa espera
enquanto lembras mulheres que abandonaram
sem horário nem calendário
ponteiros de relógios desligados à partida
nuvens sem destino o sol tímido
à promessa do calor um afago
lenga lenga da felicidade repetida
dado que ninguém chega ou parte
aborrecido da hora em movimento 

O Mar em Campo Aberto

Escutas o mar em campo aberto
Fuga elegíaca de Castelnuovo Tedesco
Comoção lúdica na porosa espera
Valsa servida em modo ligeiro
Ou o fácil vínculo dos guitarristas
É de desalento o recital ao fundo
Nessa casa-barco-ilha que flutua
O Atlântico herda o sono dos músicos
Distribuindo flores à fantasia
Fresca e perpétua escritura

Um Verso de Sharon Van Etten

Turn me into something great, you know that that's the only way

Dos Actores

        "Sim, os grandes actores, aqueles que amamos, são aqueles que têm uma ferida, uma mágoa lá dentro, Montgomery Clift para sempre, Lalande e Augusto de Figueiredo aqui; que eu os vi, sim."
Jorge Silva Melo, in "A Mesa Está Posta", Cotovia, 2019. 

terça-feira, 23 de abril de 2019

Tremor: Houve Festa na Ilha!

A festa do Tremor já passou, uma desbunda musical como vem sendo hábito. Durante uma semana a ilha de São Miguel, pois este não ano não foi possível repetir Santa Maria, foi palco de múltiplas e variadas propostas musicais oriundas de vários cantos do globo. Assim, surpreendente continua a ser o Tremor na Estufa, uma invenção que prima pela combinação dos espaços naturais ou monumentais da ilha com os diferentes géneros musicais que o festival abarca. Foi assim que ouvimos o David Bruno, curioso "hip-hoper" de Gaia, na Ribeira dos Caldeirões (Nordeste) ou as Despensas de Rabo de Peixe no exterior da Casa do Divino Espírito Santo da Bandeira da Beneficência, entre outros. Ainda a belíssima memória de João Peste no palco do Ateneu Comercial, com o braço direito na horizontal e o lamento repetido do seu verso: “La nostra feroce volontà d´amore”.Os mais que merecidos parabéns à organização!

segunda-feira, 22 de abril de 2019

Um Verso de João Peste

La nostra feroce volontà d'amore

A Uma Criança que Dança no Vento

Dança aí junto do mar,
Que te importa
O rugido da água, o rugido do vento?
Sacode a tua cabeleira
Molhada de gotas de sal;
Tu que és tão jovem ignoras
O triunfo do néscio, não sabes
Que o amor mal se ganha e logo se perde,
Nem viste morrer o melhor operário
E todos os feixes por atar.
Por que hás-de temer
O terrível clamor dos ventos?

W.B.Yeats (1865-1939)

sábado, 20 de abril de 2019

Ontem, escrito numa parede da cidade

Uma simples avaliação do mundo implica a nossa participação política

Verso de Julia Jacklin

Now that I know you so well

Presságio de Fernando Pessoa

O amor, quando se revela,
 Não se sabe revelar.
 Sabe bem olhar p'ra ela,
Mas não lhe sabe falar.

 Quem quer dizer o que sente
 Não sabe o que há de dizer.
 Fala: parece que mente...
 Cala: parece esquecer...

 Ah, mas se ela adivinhasse,
 Se pudesse ouvir o olhar,
 E se um olhar lhe bastasse
 P'ra saber que a estão a amar!

 Mas quem sente muito, cala;
 Quem quer dizer quanto sente
 Fica sem alma nem fala,
 Fica só, inteiramente!

 Mas se isto puder contar-lhe
 O que não lhe ouso contar,
 Já não terei que falar-lhe
 Porque lhe estou a falar...

Compêndio da Folia (A)

Fotografia de Jorge Fontes 
(DOP - Departamento de Oceanografia e Pescas)

“Pode haver momentos em que um abecedário nos parece poético.”

Frederico Lopoldo de Hardenberg dito Novalis in “Fragmentos” – Tradução de Mário Cesariny.



Anthias anthias - Nome de peixe presente no mar dos Açores, também conhecido por folião ou canário do mar, bastante colorido por sinal. Habita nas águas atlânticas e, segundo os biólogos, avista-se a 20 metros de profundidade. É, pela sua constituição, parente do mero e sustenta-se à noite comendo caranguejos e outros tantos peixes pequenos. Desconfia-se, assim, e dado o seu perfil e coloração, que deve ser bom para a festa.

sexta-feira, 19 de abril de 2019

Sobre a Cultura nos Açores

CP: Como vai a cultura nos Açores?

Alexandre Pascoal: A cultura nos Açores precisa sair das ilhas. Este é um desafio de futuro, no qual o TM (Teatro Micaelense) tenta, modestamente, cumprir com o seu papel. Importa muita coisa mas, sobretudo, garantir meios e condições à criação e ao funcionamento (regular) das instituições culturais do arquipélago (que apenas em 2018 tiveram acesso aos apoios nacionais da DGArtes) e de circulação das suas peças (obras). Isto é válido tanto para as artes performativas, como para as artes plásticas (incluindo a fotografia e o cinema). Os condicionalismos inerentes à dispersão geográfica são um constrangimento que urge ultrapassar, por forma a quebrar com o isolamento e o confronto com outras plateias. O caminho é rumo à profissionalização. Estamos, é certo, a dar, ainda, os primeiros passos neste sentido.

Alexandre Pascoal in COFFEPASTE, 15 de Abril de 2019

quarta-feira, 10 de abril de 2019

Do Bardo de Stratford-upon-Avon

Não tenhas medo; a ilha está cheia de ruídos,
Sons, doces melodias, que deleitam sem ferir.
Por vezes sons agudos de mil instrumentos
Zumbem aos meus ouvidos; outras vezes são vozes
Que me fazem adormecer mesmo quando desperto
Após um prolongado sono. E então, em sonhos,
Parece-me que as nuvens se abrem mostrando riquezas
Prestes a cair sobre mim, e, quando acordo,
Desespero por adormecer de novo.

William Shakespeare, in A Tempestade

sábado, 6 de abril de 2019

Abril: o TREMOR Voltou!

          Abril chegou e com ele regressa também o Tremor. Há por isso muita música para fruir ou ainda provocar a curiosidade, a maior parte dos sons pertencem a músicos que habitam na periferia das grandes produtoras musicais, gente que faz música em cidades como Ponta Delgada, Lisboa, Porto, Londres, Manchester, Maastricht, Barcelona, São Paulo, São Francisco, e outras tantas sonoridades oriundas de ilhas de antigos impérios.
A partir da próxima semana é música para ouvir sentado com uma chávena de chã ou um copo de tinto na mão, o Tremor é música para fundir a paisagem com o universo sonoro de cada banda ou intérprete, sempre sob o signo da água e do Atlântico, um festival que habituou os frequentadores a não ouvir a mesma banda duas vezes, já que se trata de uma montra alargada que todas os anos prima pela experiência e descoberta. Altura, por isso, para ouvirmos os WE SEA, esse grupo com nome de um trocadilho bem açoriano, apenas com quatro anos de idade, apareceram numa noite de celebração histórica da revolução dos cravos no espaço do Solar da Graça e ali despontaram com o seu teclado sobre uma tábua de passar a ferro e um vocalista pleno de garra e intensidade. Será muito interessante apreciar a prolixidade de Rui Rofino, que canta com alma e entrega na língua de Antero de Quental as suas letras de muito labor e apuro, ao mesmo tempo que teremos a oportunidade de ouvir a voz plástica e eclética de João Peste dos Pop Dell´Arte.  Quem tem acompanhado o Tremor, sabe muito bem que o certame é imprevisível, trazendo algo muito livre e arejado a cada edição, o que só  pode augurar uma semana musical deveras promissora.

FALTA nº2...a caminho!

(O nº 0 e 1 da FALTA)
Fotografia de Carlos Olyveira 

terça-feira, 2 de abril de 2019

Teatro Medional: O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão

Actor Miguel Seabra do Teatro Meridional

A presença da peça “O Senhor Ibrahim e as Flores do Corão” na sala do Teatro Micaelense, na noite de 23 de Março, figurará, certamente, como um momento singular e marcante no ano teatral a decorrer por estas bandas açorianas. Com encenação e interpretação de Miguel Seabra, música de Rui Rebelo, o texto pertença do escritor/dramaturgo Eric-Emannuel Schmidt trata-se de um libelo no que toca à amizade e à tolerância entre duas pessoas. O monólogo retrata bem a diferença de culturas, religiões e os caminhos trilhados ao longo da vida, no fundo, a humanidade. A narrativa evoca a Paris dos anos 60, as aventuras de um jovem judeu e um merceeiro na rua bleu, que afinal não é azul. A fala do actor começa pela afirmação do pequeno judeu: “Quando fiz onze anos parti o mealheiro”, sendo que é a partir daqui que este será presença assídua na loja do velho merceeiro árabe e que, após múltiplas peripécias existenciais e dores de  crescimento, se tornará também ele próprio herdeiro e transmissor do seu legado. 
Numa peça que prima pela simplicidade de meios em palco, apenas um actor, este vai explicitando as vicissitudes e os diálogos ocorridos entre os dois personagens, acompanhado pela presença dum músico e de um cenário escuro e surpreendente que vai mudando, com várias invocações de luas, marés, livros bíblicos, entre tantas outras coisas. E a vida continua, parece ser o lema deste monólogo repleto de pormenores deliciosos no que toca à compreensão/incompreensão entre os seres humanos ou o significado profundo de quem verdadeiramente nos influencia e nos toca para nos tornarmos naquilo que somos na idade adulta. Uma interpretação rica e profunda, uma entrega irrepreensível do actor fundador de uma companhia - o Teatro Meridional - que visitou São Miguel pela primeira vez em 27 anos de existência teatral. 

Ontem, escrito numa parede da cidade

O Ai estava mesmo desesperado!