(Quero agradecer a
todos os herbívoros
que arriscam
diariamente a sua vida e a dos seus
para o bem de
carnívoros,
omnívoros, necrófagos
e talhantes
Nas barbas do
carneiro cornudo
jantam borrego
o saca-rabos e o
texugo)
(Quero agradecer a
todos os herbívoros
que arriscam
diariamente a sua vida e a dos seus
para o bem de
carnívoros,
omnívoros, necrófagos
e talhantes
Nas barbas do
carneiro cornudo
jantam borrego
o saca-rabos e o
texugo)
Um paraísoPequenoAo fim da tardeEstou aqui.Enquanto isto durarE não precisoDe ninguém que me aguardeNoutro lado qualquerAlgum lugarPorque estou aquiSem planos
Pra viver amanhãO que hoje não vivi.
in Música Normal, Companhia das Ilhas, 2021.
o que conduz os navegantes para fora do mar?
em solo firme,
de que firmeza é a zona de que vens
e falas de noite que te lavas os pés
como as mãos que roubam o fruto
e te culpam na confissão que acabarás por fazer
ao morrer
entrega o cálice, a última gota de veneno
que te engasga
como uma delicada pétala de defunto
num divã de psiquiatra
onde a natureza se resume à paisagem morta
de gosto cristão,
das águas, das bilhas, dos milagres
dos pobres e mendigos
que te batem à porta
e espreitam a tua televisão
Ribeira das Tainhas, fim de Abril.
Caro Janeiro Alves,
Folgo em saber que tem um quarto reservado para mim na sua nova mansão, pois tenciono visitá-lo muito em breve. O dia está próximo, julgo que será no Dia Internacional dos Museus, onde pretendo visitar o seu distinto museu caseiro dedicado aos pequenos brinquedos de madeira com que brincávamos na infância. Fico também feliz em saber que já se encontra a preparar os melhores filetes de peixe para nossa degustação, no entanto, dispenso o espumante Raposeira, dado que ultimamente só consigo saborear o Frescobaldi Pomino, oriundo da minha Toscânia querida. Estou, assim, ansioso por pernoitar em seus aposentos e desfrutar dessas duas raspadinhas e da lata de salsichas do tipo Frankfurt com que me presenteará nas boas vindas. No dia seguinte, após a chapa memorial-repetitiva que imortalizará o nosso pequeno almoço para todo o sempre, regressarei a casa num balão de ar quente. Sei há muito que Janeiro Alves é um apreciador da normalidade e, ainda que pudesse permanecer muito mais tempo, é meu desejo entrar em casa antes do anoitecer.
Termino, assim, este postal com um calo vigoroso no dedo do meio e uma dor de costas intolerável, muito porque que escrevo deitado no chão para que as ideias possam fluir. A propósito do regresso de Miriam ao solar não posso estar mais de acordo consigo, já que acabei de saber que Miriam partiu rumo ao deserto em busca duma liberdade juvenil perdida. Felizmente travei a tempo o meu ímpeto primaveril para me enamorar! Ou será que o deserto é o lugar terapêutico necessário para quebrar com todas as ambições e augúrios terrenos?
Ansioso por revê-lo e com elevada estima,
Doutor Mara
Sintra, Abril de 2021
Caro Doutor Mara,
Foi com moderada mas sincera
comoção que recebi a notícia da chegada da sua carta pela minha governanta
Maria da Conceição. Ainda com uma singela lágrima a escorrer-me pelo rosto,
vesti o meu paletó brasileiro e servi-me da melhor reserva de Macieira, ansioso
por notícias suas. Denotei que sucumbiu aos prazeres bucólicos, regredindo às
missivas de cariz poético, algo confusas e pouco esclarecedoras do seu estado
actual. Conheço muita gente ligada ao comércio e indústria, que agora em
cativeiro sofre por se ver impedida de falar da vida alheia. Bastou-me por isso
dois ou três telefonemas para saber ao certo a sua degradante situação. Soube
do seu recente vício em raspadinhas, e como essa circunstância o colocou numa
posição de falência técnica e moral. Presumo
até que os cem euros que lhe emprestei há uns anos para comprar um esquentador
inteligente se tenham transformado em papelitos de raspar. Não admira que não
lhe sobre pilim para a conta da electricidade. O Doutor Mara tem de pedir ajuda
e sair rapidamente dessa situação calamitosa. Infelizmente neste momento não o
posso ajudar, pois já tenho coisas combinadas.
Apesar de toda a situação,
acredito na utilidade desta carta no sentido poder vir a ser inspiradora. Andei efectivamente em Foz Côa a passear.
Porém foi uma visita fugaz. Nessa época estava ali perto, instalado num hotel
termal de grande gabarito nacional, onde fiz tratamentos de rejuvenescimento
com resultados visíveis na pele e no couro cabeludo. Imagine o Doutor Mara, que
tenho andado a viver de rendimentos. A eleição da minha obra “Compêndio Geral
de Plantas Exóticas” como a pior do ano deu-me alguma exposição e nos meses subsequentes
vendi milhares de exemplares. Foi uma espécie de “Engano no banco a seu favor,
receba dois contos”. Comprei a antiga mansão dos Manaias em Sintra, e tratei de
contratar alguns subalternos referenciados pelas melhores casas de tradição
pequeno-burguesa: um motorista, um jardineiro, uma governanta, uma cozinheira,
uma sopeira (adoro uma boa sopa), uma camareira e uma equipa para as limpezas. Tenho
já um quarto reservado para si, Doutor Mara. Caso me queira visitar em breve,
tratarei de providenciar para o nosso jantar os melhores filetes acompanhados
de uma magnífica Raposeira. Os seus aposentos serão preparados com todo o
rigor, e terá como recepção de boas vindas um pequeno cabaz com duas
raspadinhas, uma lata de salsichas do tipo Frankfurt, um kit das unhas e um
saco para vomitar. No dia seguinte, após o pequeno almoço tiraremos a habitual
fotografia de despedida, onde apertaremos a mão enquanto sorrimos
simbolicamente para a objectiva. Por fim, o meu motorista o conduzirá para fora
da propriedade, enquanto eu permaneço estático, acenando com um lenço de
cornucópias à medida que o carro se afasta. Logo após, tudo voltará à
normalidade. Aguardo resposta positiva a este convite, Doutor Mara.
Acabo esta carta com um
trejeito apreensivo no rosto, e uma das sobrancelhas ligeiramente levantada. É
que esse regresso de Miriam ao solar cheira-me a esturro, a mata queimada, a
uma indigestão emocional, enfim, a uma primavera de destroços que alastra no
seu coração. Não se deixe enganar, Doutor Mara! Ela só quer fazer raspadinhas
consigo.
Com sobranceira amizade,
Janeiro Alves
"Se examinarmos apenas os animais que vivem sobre o próprio solo destas ilhas, descobrimos que os mamíferos, os répteis e os peixes são aqui de uma pobreza extrema; os pássaros, mais numerosos e variados, mas dotados de órgãos particulares de locomoção que favorecem grandemente a sua propagação, apresentam também um grau superior de interesse. Os moluscos terrestres ou pulmonados, estudados de uma forma mais aprofundada, é certo, do que as outras classes, são, de todos, salvaguardadas as devidas proporções. os animais mais abundantes e mais marcantes do arquipélago; apenas no seio desta classe é que aparece uma série de tipos especiais, aborígenes e dotados de uma fisionomia particular. Os insectos, os aracnídeos, os crustáceos, os anelídeos, terão de ser submetidos a uma observação mais aprofundada para que seja possível fazer-se a seu respeito um julgamento equitativo, o mesmo se aplica aos equinodermes, aos briozoários e aos polipeiros, que talvez sejam, juntamente com os moluscos terrestres, os pássaros e os peixes marinhos, as classes animais mais dignas da atenção do naturalista nestas paragens."
Henry Drouët in "Èléments de la
Faune Açoriénne", 1861, retirado do livro "Viajantes nos Açores",
de Maria das Mercês Pacheco, edição Artes e Letras, 2021.
A aurora principia às 04h, e 17m.O Sol nasce às 07h. e 23m. De 1 a 30, os dias crescem 1h. e 12 minutos.
O signo que domina de 22 deste mês até 21 de Maio é o Taurus e o Planeta Vénus. Promove ventos centrais secos e melancólicos. No crescente, semeia pevides de melão, melancia, cabaça, pepino, alface, milho, feijão, couve-flor, rabanetes, abóboras e tomates; planta em terra fraca e bem adubada, batata doce; enxerta; planta morangueiros, evitando o estrume de besta; sacha e pulveriza os batatais e deita-lhes bastante cinza para teres boa batata; tosquia o gado lanígero.
in Almanaque
do Camponez, Repertório Crítico, Cómico e Prognóstico,104º ano de
Publicação para 2021, fundado por Manuel Joaquim de Andrade.
"Regressada a paz aos oceanos, Knud sente a necessidade de voltar a velejar para recolher material para a sua escrita e traça um objetivo: Açores. Finalmente chegara a hora de visitar as “ilhas abençoadas e temíveis”. Sonda marinheiros que vai encontrando para saber mais sobre o arquipélago, mas não consegue mais do que histórias ouvidas e recontadas. Toda a viagem é preparada a partir das informações que recolhe nas bibliotecas e enciclopédias. Toma notas sobre tudo o que lê: história, cultura, clima, geografia e geologia. Procura um veleiro e a escolha recai sobre o Sejleren, mais uma vez um velho pesqueiro sueco de onze metros. Os planos revelam-se difíceis, o núcleo familiar alargara-se e a guerra consumira recursos. Os preparativos e os custos da equipagem exigem agilidades financeiras, mas não terá sido difícil convencer a família Andersen, toda ela contagiada pela folia do mar e cansada das insanidades e provações da guerra. Um revés de última hora ameaça a viagem, as autoridades consulares portuguesas negam os vistos de entrada e, perante a insistência de Knud, ameaçam mesmo com a detenção ao primeiro desembarque em porto nacional. O escritor não se deixa abalar, embarca a família no Sejleren juntamente com livros, instrumentos musicais e jogos. Escreve a primeira entrada no diário de bordo: “Para os Açores ou para o Inferno! Dia 16 de abril de 1947, 12:00 horas”. Está dado o mote de partida. Knud tinha então 57 anos e esta seria a sua última grande viagem oceânica."
in "A Folia do Mar" de
Elísio Marques e ilustração de André Chiote, in Revista FALTA nº2.
Doutor Mara: Uma pergunta para
um milhão de euros: a arte tenta imitar a vida?
Peter Casper: Eu diria que
a arte tenta perceber a vida.
DM: Nós, portugueses, somos os
responsáveis pela invenção do Nónio, a Geringonça, o Pastel de Belém, a Caixa
Multibanco e a Via Verde. O que é que ainda é possível inventar?
PC: Tendo em conta que a
maioria das invenções que o Doutor Mara refere são praticamente contemporâneas,
podemos deduzir que o espírito criativo do português não cessará com tal
fugacidade.
DM: Sei que Peter Casper não
considera a atitude estética uma disposição, mas sim um ato, porquê?
PC: Eu diria que é um acto
que temos à nossa disposição. Uma atitude estética não é necessariamente uma
acção criativa. Poderá ser contemplativa ou reflexiva, e poderá (ou não) vir a
resultar num produto final palpável.
DM: Peter Casper disse um dia:
"a satisfação de desejos e necessidades está sempre presente em quem cria,
escreve, pinta, toca, assim como em quem observa, lê, escuta". Isto
significa que não existe arte desinteressada?
PC: Sim. Em primeira
instância, o processo criativo propõe-nos problemas para os quais devemos
arranjar soluções. Antes de desafiarmos o olhar do público, temos de desafiar o
nosso. Cada vez é mais urgente essa auto-provocação para estarmos mais cientes
do nosso lugar na sociedade.
DM: O que é uma experiência
estética real, concreta e verdadeira, para Peter Casper?
PC: Não há experiência
estética mais concreta e verdadeira do que a pura contemplação da natureza.
DM: Peter Casper, tal como
dizia Segismundo Freud e António Lobo Antunes, a arte é a infância fermentada.
Corrobora?
PC: Concordo. Sou uma
pessoa muito infantil. Gugu Dada.
DM: Depois de observar a sua pintura, parece que há um fascínio particular pelo primeiro gesto, a pulsão
inicial dos criadores, o toque vibrante dos debutantes. É isso que procura, o
gesto primacial ou fundacional?
PC: Sim. Tudo o resto é excedência, como um manto de nevoeiro que se adensa à medida que nos afastamos do nosso objecto de desejo.
Algures a meio do Atlântico, Abril de 2021
Caro Janeiro Alves,
A última notícia que tive sua, fiquei atónito! Uma pessoa credível contou-me que o meu amigo tinha ido passar o ano a Foz Côa numa autocaravana e que aí tinha permanecido. Fiquei, assim, a saber que dormitou junto das gravuras rupestres, que bebeu água pura e fresca, que perambulou e pintou ao pôr do sol, para além de ter passado as noites acompanhado pelas castas Touriga Franca, Tinta Roriz e Touriga Nacional. Deve ter sido um banho de cultura adâmica. Imagino, pois, o meu amigo a respirar todo o esplendor da arte ancestral na tentativa de encontrar inspiração para esse vanguardismo primitivo, que agora nos apresenta em retrospectiva na ilha azul.
Curiosamente, roda neste momento no meu gira-discos, um álbum novo - “Voz de Veludo”, da cantora italiana “Áugure”, a adivinhadora, uma homenagem aos que ditavam presságios. A capa tem um V maiúsculo sobre um desenho de uma escala de índole económica. Enquanto o disco vai tocando, fixo-me no seu tema mais romântico e pungente – Apartar – “Estou afastada e solitária/ Não é desespero ou calvário/ Lento voo, fogo fátuo/ Vou daqui rumo ao espaço/”. Penso, por instantes, em todos os momentos vividos, nas dores consumidas e extintas, agora que vamos lentamente abrindo os olhos, espreitando os corpos que se movimentam em redor, perdidos que estivemos nesse labirinto de memórias e afastamento.
Outra novidade é o facto de Miriam ter voltado a viver na cave do solar, pedindo-me muitas vezes para controlar a minha intensidade vocal evidenciada na excitação matinal, sobretudo desde que me retiraram a saudável esbórnia de outrora. Miriam está linda e contou-me, entretanto, querer voltar a passear comigo junto destes campos ornados de margaridas. É bonito, não é?
Com superlativa estima,
" Nascemos, crescemos e morremos sozinhos. O amor e a amizade dão-nos a ilusão do contrário." Orson Welles
Com
o tempo
Tornámo-nos
bons a ser roubados
Enganados
A
ver cair no chão as nossas coisas
Vê-las
desaparecer entre a caruma
Pega
na tua flor
E
vai mostrá-la ao mundo
Não
esperes receber porra nenhuma
Sebastião Belfort Cerqueira, in "Música Normal", Companhia das Ilhas, 2021.
"O
Arquipélago dos Açores constitui actualmente uma das mais prósperas províncias
do reino de Portugal. Um grande número de factores contribui para o crescimento
incessante de uma riqueza generalizada. Um clima ameno, um solo fértil, uma
situação geográfica eminentemente favorável ao desenvolvimento de relações
comerciais, uma população inteligente e laboriosa, uma administração liberal e
benevolente são elementos de prosperidade – uma dependendo da acção do homem,
outros inerentes à própria Região. A estas vantagens juntam-se as maravilhosas
belezas naturais de que os Açores disfrutam."
Vamos ser normais
Amor
Para quê querer mais
Amor?
Vamos ser normais no dia-a-dia
No
quotidiano
Amor
E ao longo do ano
Amor
Ser
tradicionais
Amor
E
ser mais normais que a tua tia
Vamos ler jornais
Amor
Ser
como os teus pais
Amor
Fazer
como o pai dos pais fazia
Para quê tanto ardor
Amor?
Amor
E até no amor
Amor
Abracemos
a monotonia.
Sebastião Belfort Cerqueira, in “Música Normal”, edição Companhia das Ilhas, 2021.