quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

"Apparição" de Antero de Quental

Um dia meu amor (e talvez cedo,
Que já sinto estalar-me o coração!)
Recordarás com dor e compaixão
As ternas juras que te fiz a medo...

Então, da casta alcova no segredo
Da lamparina no trémulo clarão,
Ante ti surgirei, espectro vão
Lavra fugida ao sepulcral degredo

E tu, meu anjo ao ver-me, entre gemidos
E afflictos ais, estenderás os braços
Tentando segurar-te aos meus vestidos..

-Ouve! espera! - Mas eu, sem te escutar,
Fugirei, como um sonho, aos teus braços
E como fumo sumir-me-hei no ar!

in "Um Feixe de Pennas", Coimbra 1864. 

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

Os Filhos da Madrugada: Carmen Garcia

    "Lembro-me da alegria do meu avô (anos de má higiene oral, não tinha um dente) e do orgulho naquelas loiças de casa de banho. Que nem era dentro de casa, mas no quintal. Ter a casa de banho era a maior conquista da sua vida. Às vezes olho para os meus filhos e tenho medo de não conseguir transmitir a importância do 25 de Abril, o desastre que era a vida antes do 25 de Abril de 1974. Eles não foram confrontados com essa realidade. Fico assustada quando vejo o saudosismo."

in Filhos da Madrugada, de Anabela Mota Ribeiro, Temas e Debates Círculo de Leitores, Novembro de 2021. 

domingo, 23 de janeiro de 2022

"O Pranto de Maria Parda" no Teatro Micaelense

A actriz Cirila Bossuet

      Deve ter mais de vinte anos a representação pela companhia A Escola da Noite de “Pranto”, de Gil Vicente, materializada naquele típico ensejo de modernidade e arrojo da encenação da companhia coimbrã. E, ainda na memória, aquele final em que a personagem caída no estrado é depois transportada para fora do palco acompanhada pelo tema “Atmosphere”, dos Joy Divison.
     Regressamos, pois, novamente a esta peça e texto teatral quinhentista pela mão da encenação de Miguel Fragata e pela representação da actriz Cirila Bossuet. Este "Pranto de Maria Parda" evoca esse ano vicentino de cariz maléfico e devastador, permitindo encarnar a mágoa e desolação existente numa mulher alcoólica, das margens, pautada por uma assombração sanitária (pandemia), à semelhança do período que nos encontramos todos a viver. Maria Parda simbolizava, tal como nos dias de hoje, os excluídos e invisíveis que continuam emudecidos em determinadas franjas sociais. 
   Os espectadores que se sentaram no palco do Teatro Micaelense foram de imediato surpreendidos por aquele cubículo de cortinados brancos, num cenário com maquetes subtis e propensas às propostas de alteração e marcas do tempo histórico. A encenação socorreu-se também de imagens e sons da actualidade para acentuar a transformação social e arquitetónica que agora decorre. É que cinco séculos depois, a Lisboa da gentrificação e turistificação de 2021 quis dizer presente, pressentida e exponenciada nos temas ritmados e combativos de Capicua e de Chullage. O resto e, não foi pouco, coube ao poder vocal, energia representativa e beleza oratória de Cirila Bossuet. Qualquer amante da língua portuguesa contrariou a lei de Mafamede e celebrou embriagado o linguajar solto e delicioso desta Maria Parda que persiste em continuar viva! Bela peça! 

Um Verso de Maira Baldaia

Mulher é onda, mulher é vento, mulher é raiz, mulher é mistério, mulher é tempestade!

sábado, 22 de janeiro de 2022

Os Filhos da Madrugada: Tiago Rodrigues

     "A relação com o 25 de Abril é de profunda admiração. Estar em criança no desfile do 25 de Abril era estar rodeado das pessoas que tinham feito aquela coisa. O Salgueiro Maia era comparável ao Manuel Fernandes, meu herói futebolístico. Era o Manuel Fernandes no Sporting e o Salgueiro Maia na vida. À época, anos 70, princípios dos 80, as crianças iam muito para o trabalho dos pais e depois da escola. Passei muitas tardes em redações de jornal ou nas salas de espera de centros de saúde. O desenho mais antigo que tenho guardado é uma cara do Mário Soares, decalcada da primeira página. Tenho a memória de estar n´O Jornal, na avenida da Liberdade, onde o meu pai trabalhava. A um canto, via aquela gente a reportar a realidade e o mundo de forma emocionante, enquanto desenhava com canetas de feltro a cara do Mário Soares."

in “Os Filhos da Madrugada”, Anabela Mota Ribeiro, edição Temas e Debates e Círculo de Leitores, Novembro de 2021.

"Habitação Temporária" de Paulo Ramalho

 Desocupar as mãos 
e alojar-me nos teus braços
Depois alugar o resto da noite às estrelas

in Manual de Sobrevivência para Náufragos, Douda Correria, Dezembro de 2020.

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

PDL 2027: Notícias da Cultura Cara!

         O título do Açoriano Oriental é sinal e sintoma da mensagem que se pretende fazer passar: “Candidatura Azores 2027 já custou 360 mil euros à autarquia”. O que podemos pensar sem ler o conteúdo da notícia? Que a cultura é muito cara e, segundo a Câmara Municipal, caso esta autarquia “avance para a segunda fase do concurso, tenha de investir mais um milhão de euros só em 2022”. Ora muito bem, num matutino isto pode ficar bem enquanto título, mas não ajuda muito a perceber e agir perante a realidade, tão pouco sobre aquilo a que chamamos cultura, a não ser que se despende sempre muito dinheiro!
       Quem de seguida lê o teor da notícia fica, pois, a pensar de imediato que a cultura é simplesmente uma despesa exagerada, uma soma avultada que se movimenta para empresas e seus funcionários, acréscimos do IVA e que os gastos devem ser tidos em conta pelos “consumidores/eleitores”, para que estes possam pensar na verba milionária que se gastou em todo este processo, duvidar dos salários dos promotores da candidatura e que temamos pela verba do erário público que pode ainda vir a ser gasta. O leitor fica assim atónito, quase boquiaberto e a entrar mosca, perante tal exagero financeiro deitado ao ar. E, convenhamos, se ainda fosse alguma coisa que desse para se mostrar ou cortar uma fita - um parque de diversões, um arranha céus, um aquário com espécies nunca vistas, um aldeamento turístico à beira-mar, sabe-se lá que mais!?
      Por esse motivo fez-se saber que a Câmara de Ponta Delgada cessou, a um mês da apresentação da candidatura Azores 2027, o contrato com a equipa promotora da candidatura Azores 2027, Ponta Delgada Capital da Cultura. Durante este último ano fomos ouvindo, lendo e observando o levantamento e mapeamento das artes e da cultura existente no arquipélago. Agora, quando falta tão pouco tempo, os seus promotores serão substituídos na apresentação da candidatura por dez personalidades associadas ao projecto que poderão, assim, defender um projecto que, mesmo que se digam próximos, não o conhecem certamente por dentro. A dita notícia, convenhamos que a jornalista apenas ouviu uma das partes, omitindo assim os titulares desta candidatura, isto é, as pessoas que deram a cara por este, não dando assim a conhecer  qualquer afirmação, comentário ou resposta da mesma equipa. Porquê? Não temos o direito de saber o que está por detrás da não renovação do contrato?  Por que é que não  deixaram a equipa apresentar o projecto no mês de Março e depois, sim, cessar funções? O que pensa a equipa da candidatura desta tomada de posição pública camarária?
        Por fim, uma coisa é certa, após lermos o artigo do jornal, pouco ou nada ficamos a saber sobre o conteúdo desta mesma candidatura. É que só o dinheiro que foi e vai ser gasto é que interessa? E o que é um facto é que muito pouco ou nada ficamos a saber sobre a qualidade do trabalho efetuado por essa mesma equipa da candidatura ou até mesmo a avaliação dos conteúdos do projecto que irá ser apresentado e que fomos tendo uma ideia ao longo de todo este tempo todo. 
Sim, é verdade, todos ficamos a saber o que já sabíamos: a cultura custa muito dinheiro! E...a incultura?

quinta-feira, 20 de janeiro de 2022

Os Filhos da Madrugada: Djaimilia Pereira de Almeida

    "Nas três - raça, classe e género - há cambiantes e nuances extremamente complexas para quem possa ter sentido. Em relação à discriminação de classe. só me apercebi na universidade. Manifestou-se em formas de intimidação. Há um aspeto do meu temperamento que o condiciona o modo, como, ao longo do tempo, fui sentindo vários tipos de discriminação: viro a seta para mim. Numa situação em que seja recusada alguma coisa, pergunto: será que o problema está em mim? Será que não sei o suficiente? Será que não li o suficiente? Será que não sou suficientemente inteligente? Não acho que seja uma coisa boa, pelo contrário, é um mau sintoma. Em relação à discriminação racial, não imaginava logo que isso que estava em causa. Levei muito e muitos anos a reconfigurar esse passado. Todas estas formas de discriminação podem ser conduzidas a um termo: intimidação. Modos de intimidação que escondem na verdade outro tipo de preconceitos, intelectual, social." 

in "Os Filhos da Madrugada", Anabela Mota Ribeiro, Temas e Debates, Novembro de 2021.

sábado, 15 de janeiro de 2022

Da Invernia

            "Os únicos seres vivos que parecem gozar com a tempestade são as gaivotas. Nem admira, porque o seu elemento é a água e o seu motor é o vento!"

in "O Inverno e as Gaivotas", palestra do Tenente José Agostinho, Rádio Angra, 1960.

"Chorinho Feliz" no Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas

    
 
Neste momento o Arquipélago – Centro de Artes Contemporâneas convida-nos a visitar uma nova exposição no espaço central intitulada de “Chorinho Feliz”, uma mostra de vários artistas contemporâneos afeitos à ideia de festa e exaltação de convívios e comunhão de memórias recentes. No momento de percorrer esta colectiva é também possível ver e ouvir um vídeo realizado pelo rapper açoriano, Grafeno, artista que esteve em residência, em que se destaca o seu clamor certeiro: “Se eu fosse de fora também queria cá morar.”
    Estas obras pertencentes à coleção do Arquipélago estarão patentes até meados de Abril e é uma oportunidade de ver obras de vários artistas: Amália Pica, Ana Vieira, Barrão, Catarina Botelho, Catarina Branco, Christian Holstad, Grafeno, Joachim Schmid, João Ferreira, João Pedro Vale, Rubén Monfort, Rui Moreira e Sofia de Medeiros.  A organização e curadoria deste projecto esteve a cargo de Beatriz Brum, Diogo Aguiar, João Mourão e Sofia Carolina Botelho.

sexta-feira, 7 de janeiro de 2022

Da Memória

"O papel salvou-me sempre.
        Talvez até morra um dia soterrado em arquivos, mas aprendi que os maiores prazeres e as coisas mais fiáveis da vida se dão ao toque. O papel que leio, que manuseio, que tesouro, que guardo, que revisito deu-me memória, inspiração, enquadramento, contraste, futuro. Tenho arquivos sobre temas que amo, mas sobre os quais nunca escrevi (comboios, por exemplo), mas sempre na esperança de um dia vir a fazê-lo. O meu último livro, sobre Amália Rodrigues, não teria sido possível se não tivesse praticado esse "desporto" anos a fio.
     Se fosse padeiro, não guardaria o pão da semana passada. Se fosse médico, não colecionaria receitas. Calhou ser jornalista. Por isso, sou guardador e cuidador de papéis. Para mim, para outros. Os dias que correm estão a pôr-nos a jeito para a falta de memória. E de arquivos. Por este andar, não guardaremos nada para além do dia de ontem. E a memória de ontem é quase uma memória de peixe. No jornalismo, então, é uma doença mortal.”

Miguel Carvalho, Visão. 

quinta-feira, 6 de janeiro de 2022

Um Verso de Rodrigo Amarante

 Eu sei, sorte é não querer mais que viver

"Balanço do ano literário" por Madalena de Castro Campos

 Alguém, alguém, alguém
se teria dado ao trabalho
de folhear ao menos o seu pobre livro?
Não diria comprá-lo, lê-lo,
arriscar-se a ter por mal empregue 
o dinheiro gasto.
Apenas espreitá-lo, de pé, na livraria,
assegurando-se de que ninguém olhava e
mantendo-o à distância para evitar o fedor.
Percorrer os títulos, avaliar o corpo,
verificar a pontuação.
Lavar as mãos depois. Os olhos, a boca,
a língua com a qual iluminar o mundo?
in A Gun in the Garland, Companhia das Ilhas, 2019. 

quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

Um Verso de Zeca Afonso

 Noite e dia ao romper da aurora 

Sobre os "Filhos da Madrugada", de Anabela Mota Ribeiro

"Público: E o factor família? Há muitos pais que não estudaram, mas dão importância à educação.

Anabela Mota Ribeiro: Sim, são os pais que compreenderam que a educação era uma vantagem, um caminho. Muitas destas pessoas falam abertamente sobre a pobreza. Este olhar para o passado, para a raiz, implica, em muitos casos, um reconhecimento de origens humildes. Uma amiga comentou, já o programa estava no ar, que uma ou duas gerações para trás todos íamos dar ao campo, à pobreza, ao analfabetismo; e que era importante, neste país envergonhado, que se vencesse um silêncio que ainda pesa sobre o lugar de origem, que nos constitui e forma. Muitos de nós sentem ainda desconforto, embaraço, dificuldade em dizer que a mãe foi criada  de servir (como eram chamadas) que a avó era analfabeta, que vimos de um sítio de privação."

in Público, dia 2 de Janeiro de 2022.

"Perfetti Sconosciuti" de Paolo Genovese

       
         Um jantar de amigos romanos, propensos a jogos durante o jantar, desencadeou o móbil para este argumento de "Perfetti Sconosciuti"", de Paolo Genovese. À altura, o filme gerou um debate intenso na sociedade italiana sobre o uso e abuso do "celullare
". Por aqui, à semelhança de tantos outros temas de cariz contemporâneo, o assunto do filme passou ao lado, talvez a quadra festiva não o permitisse, obnubilados ficamos, assim, de qualquer reflexão ou pensamento que o seu visionamento possa ter sugerido. Não que o cinema deva estar ao serviço de bandeiras ou promover temas ou abordagens com fins imediatos, no entanto seria de bom de tom refletir quando as imagens e os diálogos assim o incitam. 
          A premissa inicial do filme é muito simples: muita da   nossa vida contemporânea está focada nesse objecto aparentemente inofensivo - o telemóvel. Esse aparelho que se tornou "valioso" e, que muitos de nós já não prescindem, é usado, maioritariamente, para atender e receber chamadas, sendo cada vez mais se torna a nossa caixa negra em caso de o perdermos, dado que aí se encontram os nossos segredos e mistérios mais profundos! O ponto alto do filme está, portanto, na exposição dos nossos vícios e virtudes em público, sendo que  pouco ou nada há a fazer quando aquilo que não queríamos ver revelado passa a pertencer ao conhecimento e juízos de valor dos outros que nos estão próximos por relações de afecto ou amizade. O que fazer?
         Aquilo que torna "Perfeitos Desconhecidos" muito estimulante é sabermos que, com ou sem telemóvel, ninguém está assim tão seguro e permeável à exposição do olhar e julgamento dos outros, o que deixa, no final do seu visionamento, uma sensação  de estranha normalidade disfarçada de um intrínseco  e profundo mal estar. Afinal, as aparências iludem mesmo! 

Tiago Pitta e Cunha, Prémio Pessoa

    " O desenvolvimento económico ainda de mãos dadas com a deterioração ambiental, e o nosso vem dos anos 80. Toda a construção em torno das grandes cidades, em solos agrícolas riquíssimos, que poderiam ter sido preservados para outras utilizações económicas; a construção nas falésias do Algarve; a questão dos incêndios, que foi altamente lesiva da biodiversidade e dos interesses económicos portugueses. Hoje temos muito poucas áreas a que possamos chamar floresta, o que temos são plantações de árvores. Se isto continuar, deixaremos de ter a tal biodiversidade, tão crítica para o futuro, nomeadamente até para a biotecnologia."

in Revista Expresso, 30 de Dezembro de 2021.

"Pink Floyd" de Sebastião Belfort Cerqueira

O mar desapareceu
É o mesmo mundo

Como a manhã 
Viemos pra casa casar o sol na pele
E os mistérios do fundo 

Sabemos dos naufrágios 
De invernos só nossos
Que agora poderíamos 
Confessar aos muros 

Mas sabermos sentir 
O frio nos ossos
Com o sol na pele 
E nos óculos escuros 
E o vento na casa
E o sal nos dedos 

O mar desapareceu 
O mar voltou 
E apesar dos nossos piores medos 

in Música Normal , edição Companhia das Ilhas, Janeiro de 2021.