segunda-feira, 10 de junho de 2013

Girassóis

Fotografia de Tiago Rodrigues

São horas dolentes à janela retendo
A luz da tensa espera em prumo claro
Jangadas de esperança em fina ardência
Que da torrente se anunciam fulgurantes
Acelerada combustão

Trazem com elas sal à memória
Luminosos dias que se apagaram
O vento que soprava a favor, amainou,
A carga dos cargueiros ao cair da tarde
E o baloiço infantil em pleno porto
Baloiçando

Tantas vezes denunciam as horas
A infinita tristeza dos girassóis
Daqueles que se inclinam à noite
Ou dos que raramente se escondem
Expondo-se de forma desdenhosa
À claridade

sexta-feira, 7 de junho de 2013

Banana do Pico no “Amostram´isse” de Angra do Heroísmo


Banana do Pico é um documento fílmico iniciático, porventura um trabalho cinematográfico de fim de curso, mas nem por isso deixa de ser um objecto valioso, confirmando-se assim o reconhecimento e os prémios obtidos pelos festivais por onde tem passado. Desta forma, só há que louvar esta belíssima mostra de cinema açoriano intitulada “Amostram´isse”, prenúncio de dinamismo e alavanca exibicional há muito necessária desta pequena mas vital cinematografia produzida em solo açoriano e que merece uma divulgação condizente. Angra do Heroísmo foi, já que termina hoje à noite, a primeira a abrir as “hostilidades”…seguem-se Horta, Ponta Delgada e Lisboa.   
O que fazer depois do curso de cinema terminado? Deve ter sido esta a pergunta que o realizador de cinema Luís Bicudo, natural da Ilha do Faial, deve ter feito num país em que ser cineasta pode bem ser uma miragem, um sonho adiado ou uma batalha infinita pela obtenção de boas condições (financeiras, e não só!) para filmar e seguir adiante nessa profissão e labor da sétima arte. Daí este retorno às origens para filmar a casa dos avós, a ilha das suas férias estivais, as lembranças e memórias de infância e adolescência ali passadas ou ainda o reencontro com o bananal que serviu de espaço para brincadeiras e peripécias. “Banana do Pico” é, portanto, um objecto nostálgico mas tem a vitalidade de fazer perguntas certeiras e acutilantes num momento preciso, agora que já passaram três anos (o documentário é de 2010). O que Luís Bicudo nos mostra neste documentário até à exaustão é que pode existir um regresso doce às raízes, à infância e aos afectos vividos em Santa Cruz das Ribeiras, Ilha do Pico. O que depois fazer com a permanência parece ser a grande dificuldade dos que voltam aos lugares aonde foram felizes, já dizia Cesare Pavese, escritor italiano. Será que devemos continuar aquilo que outros começaram? Este documento levanta, portanto, questões muito sérias sobre os jovens açorianos que partem com o fito de melhorar a sua formação e um dia “decidem” voltar àquilo a que muitos apelidam de “terrinha”. Poderão eles trabalhar naquilo em que mais gostam nestas suas ilhas de nascimento? Poderão trabalhar a terra e produzir filmes numa ilha no meio do atlântico? O jovem cineasta empreendeu assim uma viagem às raízes para atestar a sua posição enquanto cidadão açoriano e atestar também a validade da sua cidadania num mundo que se globalizou pela negativa e em que o consumo e a distribuição de bananas à escala planetária não é alheia. Estes vinte e seis minutos são um importante documento de reflexão sobre o que são ou poderão vir a ser as Ilhas dos Açores muito em breve, isto é, serão lugares de esperança e estímulos para os que regressam ou o abandono e desespero total para os que ficam? O mesmo acontece com Santa Cruz das Ribeiras, a freguesia picarota que agora já não é o mesmo lugar, pois foi filmada com alma e coração de ilhéu, deixando de ser só o ponto de onde partem bananas para todo o arquipélago açoriano e antigo poiso de baleeiros mas também o sítio escolhido para filmar uma memória, uma passagem, uma vida e habitat açoriano a que muita gente quis ver, assistir e…sentir.

Por fim, lembre-se a abertura do filme quando o avó do realizador, Francisco Soares da Silva, disfere um rude golpe de asa à juventude actual: “Se eles não quiserem trabalhar hão-de comer amoras, de silvado.” Há nestas palavras um pessimismo quanto ao futuro, um lado lunar que se nos cola ao corpo lusitano e à fatalidade do destino, como se alguém com muita, muita experiência, nos viesse dizer que tanto as bananas bem como o cinema necessitam de toda a nossa dedicação, empenho e, porque não expressá-la, da nossa infinita devoção. 

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Crescimento Económico

"O crescimento económico pode um dia transformar-se numa maldição em vez de um bem"
Hannah Arendt
(1906-1975)

terça-feira, 4 de junho de 2013

J.P. Simões apresentou “ROMA” no Alpendre

Capa de João Lázaro
Há quase dez anos foi ao som da valsa que os “Quinteto Tati” na voz de J.P.Simões anunciavam uma Primavera, malgrado o laço e o verso, bem deprimida:“Dança comigo a primeira valsa da Primavera/dança sem sonhos/ esquece as promessas/ ninguém nos espera/ Já enchi os dias de lutas vazias/ estou gasto, cansado, dormente./ E um pouco de sexo ou muita poesia/ ainda não fico indiferente.” O álbum “1970” trouxe um J.P. Simões na demanda da sua geração, um trovador mimético dos cantores que ama e venera, repleto de fisgas certeiras a expurgar melancolia aos molhos, a espremer os pontos negros da tristeza que lhe tolhia os gestos e movimentos, ao mesmo tempo que procurava a bússola de velhos náufragos sem rumo nem navegação à vista. Os anos passaram, e, se é um facto que a estação primaveril continua em exílio profundo por estas bandas, ainda que pedindo algum conforto ao amor e à poesia para organizar esta terapia profunda e morosa em que nos encontramos, olhamos à nossa volta e gostaríamos tanto que alguma coisa tivesse mudado. Havia, no entanto, a convicção de que era necessário menear os remos e lançar jangadas ao mar. Entretanto surgiu um dueto com Márcia e a canção “A Pele que Há em Mim (Quando o Dia Entardeceu)” elevou-se em estrondosa popularidade e fazendo com que o antigo cantor dos "Belle Chase Hotel" permanecesse no patamar dos cantores românticos com nódoas no coração. Nada de grave, sem retirar qualidade ao duo, apenas alguma exposição prolongada em vitrines de fancaria. Por conseguinte, a fama não retirou a seiva nem sangue na guelra e ei-lo de volta como se tivesse limpo o nevoeiro sebastiânico do momento, deslocando o ponteiro das emoções e libertando o jorro da velha fonte. J.P. Simões encheu-se assim de alegria e decidiu brotar energia e flechas coloridas com pontaria bem afinada, num novo disco intitulado ROMA para lembrar que o amor também  tem o seu contrário. Retome-se então o florido encontro com J.P.Simões com tantos músicos de origem brasileira, escutemos o deslizar da sua mão direita em modo babelia, cantando e bebendo em línguas diferentes, clamando atenção para os coros de Luanda Cozetti, confirmando o pleno de tantas emoções primaveris em catadupa, nunca deixando de provocar e inquietar: “Gosto de me drogar/de beber como um louco/acho sempre que é pouco/quero engolir o mar/só assim me suporto/e então não me importo/de ouvir cantar o fado/e ficar deslumbrado com.../sei lá o quê”. Quem assistiu ao concerto no auditório do Alpendre, no passado dia 1 de Junho, logo na abertura cedeu perante a ousadia do cantautor: “Desliguem os vossos pacemakers!” e, assim pôde assistir ao desfilar de um conjunto de canções que espalha perfume, desencanta pérolas e remete o nosso universo de símbolos gastos para outra realidade que não aquela em que estamos submersos com as palavras do costume. Era tão bom que mais ouvidos se virem do avesso, fiquem retorcidos e entoem este ROMA, aquecendo os seus empedernidos corações e se deixem ir por “La Strada”. A determinada altura, J.P. Simões citou um curioso epitáfio de Alexandre O´Neill, tocou fogosa “Inquietação” de José Mário Branco, e vergou-se perante os músicos irmãos brasileiros em "Carnaval Radioactivo"…não parou nunca de ironizar e regozijar-se com o mundo em que vive. Caso para dizer em plena madrugada angrense: mas que grande des (concerto)!!!

sexta-feira, 31 de maio de 2013

Do Pastor do Verbo

O Pastor José da Lata



“O Sol perguntou à Lua | O sol préguntou à lua/ O sol préguntou à lua/ Quando'a, quando havera amanhacer/ Quando'a, quando havera amanhacer | À vista dos olhos teus/ À vista dos olhos teus/ Que vem, que vem o sol cá fazer/ Que vem, que vem o sol cá fazer | E o sol préguntou à lua/ Quando havera amanhecer”


José da Lata

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Com título

ama as palavras. 

do vento a tua casa procura o jardim como quem uiva.



amas os jardins com a ferocidade íntima dos lobos que sempre trazes por sarças nos olhos.
tens pássaros longos pássaros abrindo-se nos pulsos
altas árvores na breve memória orvalho da boca. 
muitas vezes desejas ser  apenas uma árvore,
a quieta sombra de uma árvore que te respire
e chegas a ser a criança no bolso de um casaco,
que já não usas muitas vezes.
a mais das vezes, na verdade, não chegas a ser o mar tão perto.

 ama as palavras. 
como quem lambe o inverno e o asfalto amas as palavras.
espetas alfinetes na língua e colocas a descoberto a ígnea cor do sangue,
desconheces por completo a letra do próprio nome 
na pretensa busca de uma subterrânea ignição 
com a retroescavadora própria de uma própria gramática,
essa criança esquecida no bolso de um casaco,
esse canivete para descascar laranjas e outros pulsos, isso que nunca foste.


perdes-te na pontuação e esqueces a sintaxe, a gramática

sempre te foi um fraco calcanhar
e  esqueces sempre esqueces  a chuva não basta a ser regresso
e o mais profundo respirar é o mar que te assola quando regressas
e quando regressas é o vento a tua casa abandonada.
amas as palavras como quem lambe.


Tiago Rodrigues


segunda-feira, 27 de maio de 2013

Cinepoemagrafia

       Inacreditavelmente conseguimos um número de telefone de uma pequena barbearia atlântica onde o Doutor Mara costuma frequentar por volta das 14h55, essencialmente para tirar dois dedos de conversar e colocar “os pontos nos is”, como se costuma dizer. Confessam-nos, no entanto, que o Doutor Mara somente permanece meia-hora nesta barbearia-café intitulada “Capilar Menos”. Às vezes irritam-se com ele pois ele sai à hora certa, nem segundo a mais, nem segundo a menos, pedindo desculpa pela sua saída cronometrada todos os dias à mesma hora. Avisaram-nos também que ultimamente só fala de clássicos de cinema e que tira grandes noitadas para ver dois, três filmes, no seu moinho austero e recuperado. Às vezes constatam também que ele diz um ou outro poema de cor e salteado, fazendo menção ao nome e biografia literária de um novíssimo poeta português que aproveita para citar. De qualquer modo, esperemos, no entanto, que ele fale connosco pois há muito, muito tempo, que não temos notícias dele. A ver vamos o que nos reservam as linhas telefónicas…  
DM: Estou sim, Doutor? Doutor…somos nós…Doutor Mara…que balanço é que faz deste seu retiro que nos parece já uma eternidade?
Doutor Mara: Estou sim…estou a ouvir muito mal, há muitos cortes e estranhas interferências. Estou? Estão a ouvir-me? Sim? Os chatos do costume…Balanço? Se querem que vos diga a verdade, durmo muito mais descansado nestes últimos tempos. A acrescentar o facto de já não ter olheiras, papos à volta dos olhos ou insónias prolongadas. E, no entanto, nunca me senti tão vivo como nestes últimos tempos. Ser produtor das coisas que como e bebo deixa-me muito mais sossegado e pronto para viver uma vida nova. Já agora pergunto-vos, alguma vez vos aconteceu isto?
DM: Evidentemente que não, doutor. Estamos verdadeiramente contentes com aquilo que está a acontecer consigo. Por acaso, ainda não nos aconteceu esse êxtase existencial mas é um facto, gostaríamos muito que um dia isso nos acontecesse. No entanto, deixe-nos dizer que nos parece um doutor Mara renascido, com um elixir da juventude, ou será que é consequência de uma vida mais próxima da natureza?
Doutor Mara: Não sei…simplesmente deixei de pensar nos vaqueiros micaelenses sempre que bebo um copo de leite, nos agricultores brasileiros sempre que bebo um café, nos pescadores dos mares do norte sempre que como uma posta de bacalhau, nas mulheres e homens alentejanos sempre que bebo um copo de tinto. Tornei-me auto-suficiente e retiro da natureza aquilo que quero e o que ela me quer dar. Nem mais. Quando não tenho, troco aquilo que vou armazenando no meu celeiro. De vez em quando, quando está muito mau tempo, abro o meu moinho restaurado para podermos ver os clássicos do cinema durante a noite…chegam a aparecer personalidades muito, muito interessantes.
DM: Doutor, sessões de cinema num moinho restaurado e aberto ao público??? Mas, Doutor Mara, isso era um sonho de qualquer cineclubista há trinta e nove anos atrás…mas conte-nos, aparece muita gente nessas sessões e que tipo de pessoas é que frequentam o seu moinho?
Doutor Mara: Há dias apareceu o senhor João Rafael, com oitenta e dois anos de idade, produtor de mel. Estivémos a ver o filme “O Apicultor” (O Melissokomos, 1986), do grego Theo Angelopolous, com o Marcello Mastroianni num dos seus melhores papéis. Um filme bem diferente destes últimos acontecimentos que nos tem dado a ver a Grécia. O personagem Spyros vagueia entre colmeias e pólen, deixando para trás o seu cargo como professor e a sua relação com a esposa. Spyros é acompanhado por uma jovem perdida e ambos buscam o amor numa paisagem grega de desolação e de dor. No final, era ver o João Rafael chorar e perguntar a todos os presentes como foi possível ter sido privado durante a sua existência da cinematografia daquele cineasta grego. Agora volta sempre acompanhado da sua neta de vinte e dois anos que quer ser realizadora de curtas metragens…
DM: E os jovens também se interessam pelo cinema que passa no moinho?
Doutor Mara: Há de tudo como na drogaria…há três dias veio cá um jovem, cerca de 27, 28 anos de idade, com um documentário do Chris Marker, “O Comboio do Cinema” ("Le Train en Marche", 1973), versão francesa e sem legendas, numa cópia restaurada. O rapaz dizia estar cá de passagem, a fazer um retiro de silêncio, apenas interrompido com este filme que disse querer ver há muito tempo e que nunca tinha tido oportunidade. Ainda hoje não sei onde é que ele foi buscar a bobine do filme. O moinho estava cheio de agricultores e pescadores, pois tínhamos acabado de confeccionar um “Brasas e Braseiros” com peixe variados e muito bem regado com vinho da região, para além de ter tido o cuidado de mandar retirar mais quatro “pufes” com palha improvisados da cave. Começámos a ver o documentário, que ficou célebre com aquele discurso fantástico do Medvedkin, cineasta russo, que nos conta a experiência utópica e invenção do comboio cinema que percorreu o interior da antiga União Soviética, para lá das centenas de filmes feitos e perdidos, mandados destruir pelo Estaline. No final, o jovem estava extasiado com o documentário, no entanto, constatou que à sua volta que alguns dos presentes, após uma longa jornada de trabalho, se encontravam já em pleno sono. Então, decidiu pôr-se em altos berros e acordar toda a gente, apelidando os presentes de intelectuais do sistema, uma linha fiada de burgueses e integrados na conspiração da alta finança e que devíamos ir com ele por aí de comboio mostrar o cinema às populações incultas, alienadas pela televisão e pelo facebock, etc e tal. Esqueceu-se, no entanto, que por aqui não há linhas de comboio…
DM: Já vimos, então, que as sessões cinematográficas bem animadas?
Doutor Mara: Na primeira noite  em que abri o moinho aos amantes do cinema deste lugar tive o cuidado de exibir o “Cenas da Vida Conjugal” do Ingmar Begman. Após visionamento do filme, o público estava inquieto, desassossegado, e implorou para ver a sequela que o realizador sueco tinha feito há bem pouco tempo e com os mesmos actores: “Saraband”. Quando o filme terminou, o sol raiava no exterior, e ninguém se entendia sobre a noção de fidelidade e o que era verdadeiramente essencial para manter uma relação em funcionamento durante muito tempo. Houve quem concordasse com a referência à frase que o actor Erland Josephson fez a um padre que ele tinha conhecido...
DM: - "Uma vez um padre disse-me que o amor tem duas componentes: uma boa amizade e um erotismo inabalável"?
Doutor Mara: Sim…essa. Foi deveras um debate interessante…terminou ao meio-dia do dia seguinte com uma alcatra de peixe com arroz branco.
DM: Ouvimos, entretanto, dizer que passa muito tempo a ler os novíssimos poetas portugueses, é verdade?
Doutor Mara: Nem por aqui consigo estar sossegado…quem vos disse isso??? E…com este poema intitulado “Mudar de Casa”, do José Miguel Silva, alegremente me despeço:É bom mudar de casa, de janela,/arrumar de outra maneira as ilusões,/tratar de coisas puras como tintas/e sofás, pôr ordem entre os livros/e a vida, simular a liberdade./Parece-nos possível voltar a acreditar/na mão que nos estende um pé de salsa,/na pechincha da beleza, quando passa/ no poente da razão./Apetece cometer uma loucura,/comprar um telescópio, decorar/o canto nono dos Lusíadas,/subir umas escadas do avesso,/pensar que nunca mais teremos frio.”
DM: Um grande abraço, Doutor. Muito obrigado por este bocadinho…havemos de voltar a incomodá-lo. Com sua licença, até à próxima.

sexta-feira, 24 de maio de 2013

Luís Pinheiro Brum e Natália Correia no IAC

A propósito de Natália...Entre Linhas e Letras 
em exposição no IAC
          Reza a história que nas suas longas viagens marítimas os marinheiros levavam consigo biscoitos, um tipo de pão ázimo (sem fermento) cozido duas vezes. O que é um facto é que as curraletas de uma freguesia da costa norte da Ilha Terceira são constituídas por pequenos pedaços de basalto que se erguem por detrás das vinhas. A similitude destes pedaços basálticos com o pão (biscoitos) originou o nome daquela povoação. Luís Fernando Pinheiro Brum, arquitecto paisagista, nasceu a meio da década de oitenta na Ilha Terceira na freguesia dos Biscoitos. Licenciou-se em arquitectura paisagista no final da primeira década do século XXI em Lisboa, Instituto Superior de Agronomia, viveu e estagiou entretanto na cidade de Barcelona e regressou recentemente à terra onde nasceu para viver e trabalhar. Em 2011, os terceirenses puderam ver uma exposição de desenho sua intitulada “Antropomorfismo Urbano”, no foyer do Centro Cultural de Congressos de Angra do Heroísmo, tendo sido seleccionado para a Mostra Nacional de Ilustração “Entre Polos”. Actualmente acontece a quem passa pelo centro de Angra, Rua de São João, poder olhar para um contraplacado que serve de protecção a uma casa devoluta e deparar-se com os desenhos deste e assim poder contemplá-los. Vê-se uma baleia e uma tartaruga voadoras de enormes proporções espelhadas numa grande superfície branca. A tartaruga alberga um casal dançante com música extraída da grafonola e a baleia transporta casas e um rapaz que embala um papagaio de papel. É difícil não se deixar levar pelo encantamento daquela tartaruga e baleia que têm o condão de servir de suporte à existência de seres mais terrenos ou não, depende da imaginação. É a fantasia da viagem que aqueles desenhos permitem e, se é certo que estes permitem referências imediatas, o importante é o cruzamento de um diálogo entre um imaginário infantil, estilizado através da gravura, e de um código de sinais e sentimentos, subjectivos ao autor. Há, portanto, aqui muita inventividade e destreza no seu traço sensível e elegante. É que o desenho de Luís Brum tem coração de ilha, pulsa, tem vida própria, e, coisa rara, denota a construção de um imaginário açoriano com a diversidade e riqueza de elementos insulares e marinhos que há muito aqui habitam. É muito possível que Luís Brum desenhe a ouvir o álbum “Rain Dogs”, do flamante Tom Waits, lançado aquando do ano do seu nascimento, mas qualquer coisa de surpreendente e misterioso se passa nesse desenho cozido e recozido como o célebre pão ázimo dos Biscoitos.

quinta-feira, 23 de maio de 2013

Mãe=Sol

Fotografia de Tiago Rodrigues

Mãe

Tanto tempo mãe para saber ao que nos cegam as coisas
Tanto tempo mãe para cá estar
para tratar da vida
para tratar da morte
para tratar de tudo.
Tanto tempo mãe com o tempo todo mudo.
Tanto tempo mãe tanto de tudo.
Quero exilar-me mãe
quero tratar
não me quero matar
quero a morte quando for morte
só quero a morte à dita sorte
de estar escrita na vida
mãe seja predita e diga-me mãe
para que foi tanto cansaço
tão pouco espaço
tanta falta de espaço
na vida.
Mãe, só a vida.
Vida, vida.

António Gancho

No sorriso louco das mães

No sorriso louco das mães
No sorriso louco das mães batem as leves
gotas de chuva. Nas amadas
caras loucas batem e batem
os dedos amarelos das candeias.
Que balouçam. Que são puras.
Gotas e candeias puras. E as mães
aproximam-se soprando os dedos frios.
Seu corpo move-se
pelo meio dos ossos filiais, pelos tendões
e órgãos mergulhados,
e as calmas mães intrínsecas sentam-se
nas cabeças filiais.
Sentam-se, e estão ali num silêncio demorado e apressado,
vendo tudo,
e queimando as imagens, alimentando as imagens,
enquanto o amor é cada vez mais forte.
E bate-lhes nas caras, o amor leve.
O amor feroz.
E as mães são cada vez mais belas.
Pensam os filhos que elas levitam.
Flores violentas batem nas suas pálpebras.
Elas respiram ao alto e em baixo.
São silenciosas.
E a sua cara está no meio das gotas particulares
da chuva,
em volta das candeias. No contínuo
escorrer dos filhos.
As mães são as mais altas coisas
que os filhos criam, porque se colocam
na combustão dos filhos. Porque
os filhos são como invasores dentes-de-leão
no terreno das mães.
E as mães são poços de petróleo nas palavras dos filhos,
e atiram-se, através deles, como jactos
para fora da terra.
E os filhos mergulham em escafandros no interior
de muitas águas,
e trazem as mães como polvos embrulhados nas mãos
e na agudez de toda a sua vida.
E o filho senta-se com a sua mãe à cabeceira da mesa,
e através dele a mãe mexe aqui e ali,
nas chávenas e nos garfos.
E através da mãe o filho pensa
que nenhuma morte é possível e as águas
estão ligadas entre si
por meio da mão dele que toca a cara louca
da mãe que toca a mão pressentida do filho.
E por dentro do amor, até somente ser possível amar tudo,
e ser possível tudo ser reencontrado
por dentro do amor.

Herberto Helder

quarta-feira, 22 de maio de 2013

Da onomástica guardarei o assombro do teu olhar...



           Há pessoas que escrevem coisas íntimas nas paredes de casas que julgam abandonadas. Há dias vi alguém que escreveu “Amo-te Filipa” na parede da casa onde durmo pelo menos oito horas por noite. Sempre que abro a porta de casa penso em todas as Filipas e na pessoa que terá escrito aquela frase. Será que se conhecem?
          Li, entretanto, que o nome Filipa significa o amor pelos cavalos. É um nome grego que os portugueses usam para dar às raparigas, por vezes  no masculino também nos rapazes, mas penso que não é por se assemelharem aos cavalos ou mesmo às éguas. É um nome que lembra a verdura e a fertilidade dos campos primaveris.
             Da janela de minha casa vê-se uma marina e é curioso que haja pessoas que, não sei se pais ou mães, apelidam as suas filhas com este nome que contém o atlântico e outros tantos barcos à vela dentro.
           Há barcos com nomes de pessoas com um olhar que não esqueço. Pessoas que fazem imaginar partidas, regressos, aventuras, viagens por mares agitados e turbulentos e entradas serenas em portos de abrigo. E enquanto desenho escrevo o nome delas tatuado no seu olhar carregado de sal e da cor do mar. 

terça-feira, 21 de maio de 2013

Florilégios do século XXI

I
trazes na algibeira um olho de pássaro, dois berlindes e um sugo de baunilha,

trazes um braço ao peito
como um jovem cruzado,
aos pés Giotto rendido

II
frágil
o que pensava ser um peixe dourado,
era apenas um pequeno fantasma
adormecido
sobre a minha mão

III
carpem os degraus
noite adentro
cavaleiro e cavalo vendados
os olhos graves, em tom menor

IV
compravas uma santa de açúcar
que lançavas ao peito
e as tuas mãos lambuzadas
deixavam no vestido
marcas do divino
debruado a veludo

V
deponho uma pena sobre um coração de pássaro
tem um bater pequeno
compassado de aflição
com que me chama,
ardente de sede

VI
trazes um animal preso pela imaginação
não lhe reconheces a forma, nem o gemido
mas alimenta-lo com as páginas dos teus livros:hoje serviu-se daquela
em que descrevias como o princípio do prazer
magistralmente
se sobrepunha ao da realidade
                                                          
Ana Paula Inácio