Fotografia: Tiago Rodrigues (Lagoas, Ilha das Flores) |
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
Uma Missiva Estival de Miriam Manaia
Caro Doutor Mara,
Como vai o seu retiro há muito
desejado?
Eu por cá continuo a pintar e a
escrever em catadupa…tantas coisas a acontecer neste momento lá fora, tantas coisas mesmo e
eu aqui enfiada dentro de quatro paredes, nestes meus quase trinta Verões de
vida. Tudo isto me parece pouco, sou-lhe sincera, com estes meus olhos cor de
amêndoa, com esta minha camisa às flores: – serão
margaridas? – não sei bem, e este
meu cabelo feito ondas airosas e agitadas e ainda uma indómita vontade de
querer viver.
E se eu morresse agora, quanto
ficaria por viver? Quanto? Pode dizer-me, o senhor? Tanta coisa para aprender
lá fora, viajar, descobrir pela ponta dos dedos dos pés tantas cidades, tanto
mundo por desvendar, tantas pessoas com quem gostaria de falar, abordar,
conhecer. O senhor pode estranhar, mas, por exemplo, este mundo das artes é
demasiado pequeno para mim. Acredite, senhor, sabe por exemplo que por aqui não
tenho aprendido nada, não tenho conhecido ninguém interessante, não tenho
descoberto novos mundos, os meus colegas artistas não têm nada para me ensinar.
E, aprendo sempre tanto a viajar, muito mais do que aquilo que aqui se
convencionou aprender, descobrir, interrogar, pode crer. Eu gosto mais de
falar, de interagir com as outras pessoas que andam também a correr mundo,
conversar com elas e com as minhas palavras apagar o meu silêncio, abafar o delas
e voar em sonho pelo universo inteiro.
É que eu acredito que é também
com estas mesmas palavras que invado todos os cantos desta antigo e decrépito
atelier, como só se assim se pode invadir com esta minha idade, pensando que
nunca mais voltarei aos meus trinta anos. Sou assim incapaz de dizê-lo sem esta
brutalidade e doçura de quem sabe que se pode perder tudo perante quando um
mestre como senhor que nos olha pelas palavras adentro, que nos inquire e nos
observa e, mesmo assim, perdemos-lhe o medo, conquistamos coragem, abandonamos qualquer constrangimento e até mesmo o respeito, pois digo com a humildade que caracteriza esta
minha existência algo turbulenta e instável que vivo neste momento: “Eu quero é correr
mundo…”.
Sua Miriam Manaia,
PS-Tem notícias de Janeiro Alves?
Guardar
Guardar uma coisa não é
escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa
alguma.
Em cofre perde-se a coisa à
vista.
Guardar uma coisa é olhá-la,
fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou
ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la,
isto é, fazer vigília por
ela, isto é, velar por ela, isto
é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por
ela.
Por isso melhor se guarda o voo
de um pássaro
Do que um pássaro sem voos.
Por isso se escreve, por isso se
diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um
poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde
o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um
poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer
guardar.
António Cícero
sábado, 23 de agosto de 2014
De autocarro, comboio e taxi até...Beirut.
OS Beirut no início de carreira. |
Quando for grande gostaria de ser como Zach Condom, saber tocar trompete, ukelélé, bombardino bem como ser acompanhado por uma orquestra com flugehorn, tuba, trombone, saxofone e acordeão, tal como aquela que tocou com ele no passado sábado em Paredes de Coura. Desta feita, tal como ele, cantaria canções que mais parecem romarias à beira-mar em Agosto, cerimónias de casamentos felizes ou música fúnebre a lembrar os Balcãs ou os filmes de Emir Kusturica.
Zach Condon nasceu em Santa Fé (Novo México) a meio da década de oitenta e conta-se que durante a juventude andou pela Europa do Leste à procura de escutar charangadas e fala-se que terá conhecido Goran Bregovic. Em Coura, após desconhecimento do facto de ter jantado numa mesa ao lado da dele, este cantou apenas dois versos de "Leãozinho" de Caetano Veloso mas é pura verdade que encheu os pulmões para"Scenic World" e deambulou de forma envolvente e romântica com "Elephant Gun" ou "Postcards from Italy". Bonito. Era mais fácil ir a Nova Iorque, mas terá valido a pena o frio nocturno oriundo do Tabuão e a aventura dos públicos transportes disponíveis. Muito agradecido.
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
Belarmino de Alexandre O´Neill
«Tiveste jeito, como qualquer de nós,/e foste campeão, como
qualquer de nós./Que é a poesia mais que o boxe, não me dizes?/Também na poesia
não se janta nada,/mas nem por isso somos infelizes./Campeões com jeito/é nossa
vocação, nosso trejeito./Esperam de 1 a 10 que a gente, oxalá, não se levante/-
e a gente levanta-se, pois pudera, sempre./Mas do miudame levámos cada
soco!/Achas que foi pouco?/ Belarmino:/Quando ao tapete nos levar/ A
morfina,/Tu ficarás sem murro,/ Eu ficarei sem rima,/Pugilista e poeta,
campeões com jeito/ E amadores da má vida».
Alexandre O´Neill
terça-feira, 19 de agosto de 2014
segunda-feira, 18 de agosto de 2014
segunda-feira, 11 de agosto de 2014
E ao anoitecer
e ao anoitecer
adquires nome de ilha ou de vulcão
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia
Al Berto
deixas viver sobre a pele uma criança de lume
e na fria lava da noite ensinas ao corpo
a paciência o amor o abandono das palavras
o silêncio
e a difícil arte da melancolia
Al Berto
Ontem, escrito na parede da cidade
"Eu não posso andar com chinelos de dedo, Helena. Fazem-me sangrar o dedo do meio."
sábado, 9 de agosto de 2014
Filmes d´Estio
"Caos Calmo", filme de Antonello Grimaldi |
O livro tem por título “Caos
Calmo” e foi escrito por Sandro Veronesi. Antonello Grimaldi adoptou-o ao
cinema e convidou para protagonista principal o actor/realizador: Nanni Moretti. “Caos Calmo” narra a dor de Pietro, um homem bem sucedido que, após
salvar uma mulher no mar, encontra algum tempo depois a sua esposa sem vida no jardim da sua casa de férias. A partir daí o filme concentra-se essencialmente no seu “acampamento”
em plena praça onde está situada a escola da sua filha pequena, ainda sem noção do que lhe aconteceu. É nesse ponto de paz e
de caos interior que Pietro vai elaborando o luto, integrando a sua perda ao mesmo tempo
que vai recebendo e “abraçando” os seus familiares, amigos e colegas de
trabalho em plena praça. Assisitimos assim ao seu vulcão interior que só dá
sinal de si numa noite em que este desmaia numa reunião de pais, começando aqui a reviravolta. E, talvez por isso, o filme seja
muito contido nesta exposição da devastação, a irracionalidade de uma perda, mas esclarecedor sobre esse lado imprevisível da existência humana. Surpreendente é também a
cena final do filme em que um encontro sexual parece pôr em causa todo o cuidado e delicadeza
evidenciada até então, mas que o argumento foi exímio no rumo desenvolvido.
[Ficas onde outrora caminhaste mar dentro]
ficas
onde outrora caminhaste mar dentro
guardaste uma impressão clara de areia
movendo-se sobre os pés
por vezes a água como pequenas esquinas
ferindo o ponto onde
te descalças e moves
contagiam-te depressa cores escuras
as noites ancoradas de portos em corinto
o preto e o cinzento azulado
que fica do hábito de endoidecer
por entre traves passa a madrugada
encho de passos lugares onde já estiveste
torno a caminhar para fora dos limites da cidade
nas primeiras madrugadas de Outono
vou endoidecendo à espera de um fio de voz
que venda o regresso à hora do labirinto
Tatiana Faia, in Ítaca, n.º 1, Coisas de Ler, Lisboa, 2010.
guardaste uma impressão clara de areia
movendo-se sobre os pés
por vezes a água como pequenas esquinas
ferindo o ponto onde
te descalças e moves
contagiam-te depressa cores escuras
as noites ancoradas de portos em corinto
o preto e o cinzento azulado
que fica do hábito de endoidecer
por entre traves passa a madrugada
encho de passos lugares onde já estiveste
torno a caminhar para fora dos limites da cidade
nas primeiras madrugadas de Outono
vou endoidecendo à espera de um fio de voz
que venda o regresso à hora do labirinto
Tatiana Faia, in Ítaca, n.º 1, Coisas de Ler, Lisboa, 2010.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
Poema d´Estio
Ao Gosto
Lábios gretados de sol e outras sequidões
conservadas por insónias, aleijões, do alento renascer,
(aviso-vos esta nota é importante)
livros e discos carregados de pó nas estantes e agulhas,
o retomar de faixas e frases
ditas obsoletas,
como o peso das aranhas nas frinchas do passado,
antigo desabotoar de neblinas pela teia da nortadas,
por instantes só canícula e azul marinho nomeados,
condimentado Agosto na polpa dos seios descoberto,
encobrem-se dedos na areia,
o deslizar dos dias,
o deslizar dos dias,
em trigueiro sobressalto da nudez acalorados.
Believer
Frank Möbus (Fotografia: Margarida Quinteiro) |
Pode-se
accionar o serviço laudatório e
discorrer sobre as maravilhas da audição de um disco de que gostamos ou então
num dos que nos vamos focando de forma febril, despendendo toda a nossa atenção
e em que perdemos todo o tempo do mundo, mas, porventura, a grande música, já
agora também o teatro, o cinema, a poesia que nos diz particular respeito, são
aquelas que interrogam o nosso mais profundo desejo de termos sido nós os
criadores daqueles temas ou objectos artísticos. A música pela sua capacidade
evocativa consegue mais facilmente esse feito, pois pela sua rápida difusão e
sua instantânea partilha, torna-se efectiva no que toca ao comungar das emoções
mais díspares. Há dias na (re) audição do tema Believer, do Carlos Bica &Trio Azul, o êxtase sentido foi análogo ao obtido
durante a primeira escuta do tema em concerto ao vivo, o que atribui ao tema um
carácter único e especial. Quem não gostaria de estar no lugar dos músicos
Frank Möbus, Jim Black e Carlos Bica ou, muito simplesmente, ter
"inventado" este Believer?
quinta-feira, 7 de agosto de 2014
quarta-feira, 6 de agosto de 2014
[Podias obedecer a um registo de perder]
Podias
obedecer a um registo de perder
o respeito, levantar a saia se a tivesses,
alçar a perna se cão fosses, mandar à merda
quem vem socorrer-te da vida e te decepa os dedos.
fazes a conta de cor e dizes apesar de tudo, inspira-me,
e não queres saber mais do que isto.
menos esta terra, tudo menos uma corda, tudo menos
viver a pulso e ter de sacudir a chuva contra o casaco.
Os dias sem prognóstico, vivendo apenas para
esperar a madrugada, e que ela venha como o cortejo
e aprendas a ficar.
Marta Chaves
o respeito, levantar a saia se a tivesses,
alçar a perna se cão fosses, mandar à merda
quem vem socorrer-te da vida e te decepa os dedos.
Com um rigor
de artilharia que amortece o cansaço,
o combate
quase sereno. De vez em quando,fazes a conta de cor e dizes apesar de tudo, inspira-me,
e não queres saber mais do que isto.
Estás na
vida como na montra alguns relógios
parados, e
pensas numa sepultura no mar, tudo menos esta terra, tudo menos uma corda, tudo menos
viver a pulso e ter de sacudir a chuva contra o casaco.
Os dias sem prognóstico, vivendo apenas para
esperar a madrugada, e que ela venha como o cortejo
e aprendas a ficar.
Marta Chaves
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
"o Verão de 2012" de Paulo Varela Gomes
"A Tragédia do Largo do Rato conduziu a que muitos jornalistas e outras pessoas tenham insistido comigo para ajudar a compreender aquilo que se passou. Profissionalmente não devo - e pessoalmente não quero - trazer a público elementos do meu trabalho que possam permitir mais especulação acerca do comportamento, da personalidade e motivações do meu paciente. O Verão de 2012 foi terrível para ele. Aquilo que o atormentava estava, receio bem, muio além dos meus fracos poderes, dos diálogos que oriento ou acompanho, dos remédios que prescrevo. Dividido como estava entre a vontade de ver claro em si e a tendência neurótica para perceber em tudo uma conjugação maléfica de factores independentes da sua vontade, o meu paciente não conseguiu integrar ou dar conta do seu sofrimento. Tomei muitas notas daquilo que ele me disse, do que não me disse mas adivinhei, recebi dele fragmentos de um texto, talvez uma espécie de romance, que estava a escrever e nunca terminou, palavras que acredito terem tido relação directa ou indirecta com o seu mal e com aquilo que sucedeu no decorrer do Verão."
in "o Verão de 2012", de Paulo Varela Gomes.
sábado, 2 de agosto de 2014
Filmes d´Estio
Filme de Margarethe von Trotta |
Todos
os dias conhecemos gente assim: incapazes de pensar criticamente ou analisar o
que lhes mandam fazer, limitam-se a receber e a executar ordens que lhes ditam
e, tal como Pilatos, lavam as mãos das consequências dos seus actos. Como
funcionários exemplares, executam com eficácia as ordenações que lhes chegam de
cima - “sem levantar muito cabelo”- como se costuma dizer.
“Hannah Arendt”, o
mais recente filme de Margarette von Trotta, está dentro do registo dos filmes
biográficos, retratando neste caso o pós-guerra e o pensamento da filósofa
judia que dá titulo ao filme. A película começa com a captura de Eichmann pelo
estado de Israel e o seu posterior julgamento. Hannah Arendt é incumbida de
reportar as incidências do julgamento para o New Yorker. O filme acompanha este processo de escrita e a recepção
do artigo por parte da comunidade intelectual judaica e não só. Pensar o
horror, a banalização do mal, foi a incumbência de uma autora que não teve medo
do isolamento nem da rejeição dos seus pares. Um filme que pensa o mal e os seus burocratas.
Avenida Marginal
Seriam quatro e a madrugada
possuída de silêncio
à míngua da luz na cidade costeira
aproximação à escuridão das areias
e constatar de perto o berço das algas e a penedia.
Seriam quatro e a neblina
amigos como canções febris
à beira mar no nostálgico Agosto
o tempo desperdiçado, abalo e energia
ou a leve brisa das gaivotas que migram sem destino
ondas que nas rochas desabridas batem
este odor imortal da maresia.
possuída de silêncio
à míngua da luz na cidade costeira
aproximação à escuridão das areias
e constatar de perto o berço das algas e a penedia.
Seriam quatro e a neblina
amigos como canções febris
à beira mar no nostálgico Agosto
o tempo desperdiçado, abalo e energia
ou a leve brisa das gaivotas que migram sem destino
ondas que nas rochas desabridas batem
este odor imortal da maresia.
sexta-feira, 1 de agosto de 2014
Velejar num Solitário até aos Açores
Ilustração de Pedro Valim |
Nils Andresen não era um
marinheiro qualquer, já que passou uma parte da sua vida a velejar e a publicar
livros sobre os sítios por onde passava. Velejar e escrever foram dois actos
contínuos e persistentes ao longo da vida e que, decididamente, o tornaram
célebre junto de uma pequena comunidade de leitores ligados ao mar. Carl sentado, ao fim da tarde, numa taberna do
centro histórico de Angra do Heroísmo, pensava inúmeras vezes na figura esguia
e doce do seu avó e nas ocasiões que este deve ter puxado do seu caderno de
apontamentos para fixar os acontecimentos do dia. Ao mesmo tempo pensava na sua
própria loucura e no dia em que decidiu fazer-se ao mar para cumprir uma missão
familiar: devolver os manuscritos do avó à pessoa que lhe terá feito permanecer
na ilha mais tempo do que seria expectável. Uma pergunta assombrava a sua
presença naquele lugar a meio do atlântico: quem seria o afortunado ou a felizarda
daquela dedicatória a que os manuscritos faziam referência? Ali absorto em
pensamentos, julgava que só o facto de ter ali aportado já teria valido a pena.
Ele próprio não conseguia racionalizar muito bem os motivos e as razões da sua
ousadia e aventura. Foi, por isso, no dia em que deixou de ir até junto do mar
que decidiu viajar em solitário até aos Açores. Há tanto tempo que ele não saía
do mesmo lugar daí aquela mistura de sentimentos. O que terá acontecido para se
sentir tão alegre e triste ao mesmo tempo, perguntou-se? Carl há muito tempo
que não vivia junto de um lugar tão próximo da natureza extrema, fosse no
Inverno ou Verão. E velejar fazia-o crer que já não tinha casa. Queria muito
acreditar que talvez o mar fosse a sua única morada de felicidade. Recorda-se
também que um dia foi deslocado para um sítio sem mar. Os primeiros meses
chegou mesmo a ficar muito abatido, tão arriado, que a planície que avistava proferia
ser o mar a correr dentro dele. E emocionava-se.
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