quinta-feira, 30 de junho de 2016

Uma Dezena de Filmes Portugueses

Certo dia, num festival de cinema aqui perto, escutei um dos elementos do júri proferir à mesa duma refeição num restaurante que não havia uma mão cheia de filmes portugueses que valesse a pena ver. De forma criativa, elenquei de imediato uma dezena deles e, ele, naturalmente, calou-se. Continua, no entanto, a intrigar-me a ostracização e profundo desconhecimento pelo cinema realizado e produzido por estas bandas bem como uma certa leviandade na forma como falamos da nossa relação com a sétima arte feita por cá. Por isso, caso fosse programador de uma sala de cinema, isto é, se eu tivesse um pequeno estúdio para mostrar filmes da minha preferência, aproveitaria estes meses da estiva para dar a conhecer aos nativos bem como a todas as outras  pessoas que nos visitam, a cinematografia riquíssima de um país chamado Portugal. Começaria assim pelo "Belarmino", de Fernando Lopes, 1964, "Jaime", de António Reis, 1974, "Kilas, o Mau da Fita", de José Fonseca e Costa, 1976, "Sangue", de Pedro Costa, 1989; "Recordações da Casa Amarela", de João César Monteiro, 1989, "Três Irmãos", de Teresa Villaverde, 1994, "Quando Troveja", de Manuel Mozos, 1998, Respirar Debaixo de Água”, de António Ferreira, 2000, "António, Um Rapaz de Lisboa", Jorge Silva Melo, 2001, e "Alice", de Marco Martins, 2005. Uma dezena de filmes portugueses para (re)ver durante este verão e muitos tantos outros poderiam constar da lista. Por agora, está bom, não?

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Sala de Embarque: Anzóis e leitura de texto

Fotografia Carlos Olyveira
Eis-me novamente em Santa Clara, freguesia de Ponta Delgada, com 2971 habitantes, segundo os censos de 2011. O dia por aqui nasceu com  humidade elevada e o “capacete” esteve instalado até ao princípio da tarde. No grande armazém onde está a Galeria Arco 8, deparo-me com pescadores das Caxinas, homens do mar que há muitos anos procuraram nas ilhas sorte e aventura nas artes da pesca. Estou perante verdadeiros caxineiros e outros caboverdianos a preparar os anzóis para a pesca à linha, esmerando-se enquanto trabalhadores manuais atando os nós, esticando as linhas e seda para as gamelas. Alguns deles trabalham na maior embarcação que se encontra no porto desta cidade insular.
Passemos, portanto, ao terceiro ensaio deste texto teatral intitulado “Sala de Embarque”. Uma ideia que foi sendo pensada e escrita com vontade de dar voz aos meus contemporâneos, gente que vive hoje nas ilhas e continente. Gente de carne e osso, que possui olhar atento e não desarma, pessoas que vivem hoje aqui connosco, que partilham as ruas e as praças, as lojas dos hipermercados ou do centro de emprego, os sonhos e angustias de um tempo de crise que não quer descolar. Uma sala de embarque, portanto, onde todos se encontram e desencontram, há aqueles que pretendem partir, levantar voo e navegar ou então apenas uma viagem feita de nuvens e memórias. Este foi mais um ensaio para partilhamos novamente impressões sobre as inflexões e ritmo do texto, a leitura permanente e descoberta das suas possibilidades, no fundo, um processo de aprendizagem colectivo.

Sophia Loren em Portugal

Agnès Varda, Póvoa de Varzim, 1957
Um dia escrevi um artigo para um jornal, creio que há treze anos, sobre uma fotografia da Agnès Varda (versão postal) que na altura o meu amigo Daniel me tinha enviado após ter visto "Os Respigadores e a Respigadora"(2001), um filme dessa mais que interessante realizadora francesa. Ao que parece Agnés Varda passou pela Póvoa de Varzim nos idos anos cinquenta e deparou-se com uma festa popular, que consistia na dádiva de oferendas da população aos mais necessitados. A cineasta, acompanhada pelo seu companheiro da altura, pediu a uma popular que fosse com eles para uma rua deserta onde houvesse muita luminosidade para compor um retrato, tendo como pano de fundo um cartaz rasgado de uma grande actriz italiana a publicitar um sabonete. Meio século depois, o neto da poveira da imagem telefonou para a redacção do jornal, tendo eu tratado de imediato em conhecer a senhora. Esta chegou a emocionar-se ao ver o postal com a sua imagem e só dizia: “Estou tão bonita nesta foto!”. A poveira fotografada dava pelo nome de Maria do Alívio, exercia a "profissão" de lavadeira, tendo sido toda  a sua vida doméstica. Naquele postal vê-se também Sophia Loren, actriz italiana que entrou em dezenas de filmes e vencedora de dois óscares de Hollywood. Há muito tempo atrás tive uma ideia mirabolante de reunir estas três mulheres naquele lugar mas agora, mesmo que quisesse, não iria conseguir. E tive pena.

terça-feira, 28 de junho de 2016

Sala de Embarque: ensaios em Santa Clara à Tardinha

Fotografia de Carlos Olyveira
Retomámos ontem os ensaios naquele barracão enorme bem pertinho do mar. A colaboração da Galeria Arco 8 na pessoa do Pedro Bento, a disponibilidade do Diogo Fonseca, as condições e possibilidades que este amplo espaço nos abre e possibilita. Continuaremos assim no gerúndio: ensaiando. A zona de Santa Clara é tão bonita ao fim da tarde, aquela luz coada e aquele azul intenso espelhado no mar chão, o colorido divertido das casas em tão simpático ambiente marítimo em redor. Desta feita, trabalharemos de forma persistente as marcações, as entradas em cenas de cada actor, o ritmo e a entoação bem como a forma de encontrar o tom geral do texto. O elenco está composto tal como a distribuição dos papéis: Henrique Santos (O Jovem), Margarida Benevides (Mulher de Meia-Idade), Liliana Janeiro (Rapariga Aluada) e João Malaquias (O Velho). A composição sonora do espectáculo estará a cargo de Pedro Gaspar e os cenários e desenho de palco sob a orientação de Miguel Carvalho.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Josef Koudelka

Portugal, 1976

Do Sucesso

         "Como as pessoas que começaram antes não conseguiram o sucesso dos que começaram depois, viram-se contra o sucesso destas pessoas. Isso é muito típico em todas as áreas. Não é só na literatura. As pessoas em vez de ficarem contentes com um sucesso que pode fazer alguma coisa pela leitura em Portugal, não, ficam chateadas porque gostariam de ter o mesmo sucesso e não tiveram."
Maria do Rosário Pedreira, in Revista Ler, verão de 2016.

Três Canções Estivais

Fotografia: Eduardo Brito
Junho está quase no fim e nem sabor a santos populares (fica a promessa de celebrar o São Pedro!). As noites tardam em aquecer e com o raiar da manhã surgem os garajaus sedentos de costa e temperaturas quentes. Os dias são agora maiores e a luz chega para ficarmos até mais tarde junto do mar e assistir a este espectáculo quotidiano das nuvens.
Este é o mês em que se anunciam todas as viagens e que, por isso, serão acompanhadas pelas canções que dão brilho à estação. Recordo aqui pelo menos três das canções que falam desse estio em crescendo ou mesmo a cristalização desse sentimento estival. A começar a voz de Zeca Afonso, com o tema “Coro da Primavera”, num refrão assumidamente cheio de esperança e vitalidade: “Ergue-te ó Sol de Verão/Somos nós os teus cantores/Da matinal canção/Ouvem-se já os rumores/Ouvem-se já os clamores/Ouvem-se já os tambores.” Segue-se a canção “Leãozinho”, expressa na voz doce e dolente de Caetano Veloso: “Gosto muito de te ver, leãozinho/Caminhando sob o sol/Gosto muito de você, leãozinho/Para desentristecer, leãozinho/O meu coração tão só/Basta eu encontrar você no caminho.” E, por fim, quando o verão se fecha e tudo terminar ou for a enterrar (se possível, na areia!) deverá ser possível cantar "That Summer Feeling", de Jonathan Richman: “When there's things to do not because you gotta/When you run for love not because you oughta/ When you trust your friends with no reason notta/The joy I've named shall not be tamed/And that summer feeling is gonna haunt you one day in your life.” O verão promete!

quinta-feira, 23 de junho de 2016

Os Melhores Anos da Minha Vida

Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem.

Estava tudo em aberto, mas eu não sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à espera
de não ter futuro. Sentado, como um pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas,
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de sangrar.

Os melhores anos da minha vida
troquei-os por isto.

José Miguel Silva in "Vista para um pátio seguido de Desordem".

quarta-feira, 22 de junho de 2016

Sala de Embarque: Ensaios

À Conversa com Miguel Carvalho
Começaram os ensaios na Galeria Arco 8 de “Sala de Embarque”. Foi no dia mais longo do ano que encetámos os ensaios deste texto teatral há muito anunciado. Desta feita, só ensaiando, trabalhando de forma persistente o texto é que se consegue avançar, seguir em frente, construir um ambiente dramático em cima do palco. Por isso, é nossa vontade ensaiar cada vez mais, ir assim melhorando, exercitando, procurando as personagens, indo ao encontro da real envolvência da peça. Esta proposta vai ser construída a partir das possibilidades que o texto teatral e as circunstâncias permitem. Bem-vindos ao Teatro Paupérrimo!

terça-feira, 21 de junho de 2016

Verão: Ainda agora Começou!

Não devia ter mais de dez anos naquele verão, naquela rua com nome de Ferreiros, uma rua com título de profissão há muita desaparecida daquele lugar de origem piscatória. A leitura ameaçava e crescia logo bem cedo, pela manhãzinha com a ida à Taberna do Senhor Miguel comprar pão e permanecer por lá até cansar as vistas. O taberneiro era um indivíduo polido, simpático q.b, um nada provinciano e austero, quase sempre com um semblante carregado e marcas de religiosidade profunda, dado que se vestia sempre de preto e não permitia conversas em tom muito alto ou o uso do calão e do vernáculo.  Até hoje penso que nunca me advertiu sobre a minha presença em tal estabelecimento comercial pelo facto de conhecer bem os meus pais, pensando talvez que ter por ali um miúdo de tenra idade a ler o jornal conferia dignidade a quem frequentasse o estaminé, sobretudo um antro de gente adulta com mais sede do que juízo. No entanto, eu sabia que estava sob a mira do seu olhar atento e punitivo, ainda que com a consciência exacta do imediato com que estes seriam avisados de qualquer infracção matinal que ali tivesse lugar. Sendo assim, a partir de certa altura tornei-me uma figura de tal modo assídua que alguns clientes se queixavam de já não ter o jornal diário disponível naquela única mesa em frente ao balcão. Como pediam as regras da concorrência, eu chegava mais cedo, comprava o pão, sentava-me e ficava por ali até que não houvesse mais nada para ler. Eu sabia que notícias novas e fresquinhas só viriam depois da praia, do gelado de gelo, das corridas de rolamentos e da bicicleta, das idas à videiras e às espigas ou então do competititvo jogo da carica ou do berlinde. Uma delícia.
Naquelas manhãs de leitura estival fazia-me, portanto, companhia o "Nia Congros", diminutivo de Agonia, um pescador rude já com alguma idade, que se caracterizava por ser muito alto e bastante magro, usando sempre um boné numa cara cheia de rugas tisnada pelo sol. Saía-se sempre com uma expressão que já trazia engatilhada: “Saia uma preta fresquinha, senhor Miguel!” Enquanto ele curava as mágoas duma noite de faina marítima em sobressalto junto da tripulação ou a ausência de descanso junto da casa das máquinas a cheirar a gasóleo por tudo o que era sítio, eu ia dando os primeiros passos na política nacional e internacional, descobrindo os crimes de faca e alguidar, os pequenos furtos e zaragatas, as aquisições do Varzim e do Sporting, a vida dos actores e das actrizes, a programação televisiva, a descoberta das das oito diferenças, etc. De vez em quando, o Nia perguntava-me se o mundo estava igual ao dia de ontem, ao qual eu respondia de forma perentória – “Ainda agora comecei”. Quem começava e não terminava de bebericar era este homem que aprendi a ver bêbado sem julgar nem confiar. Em duas horas era capaz de beber uma grade de cerveja tal era a secura que ostentava. Encostado ao balcão não era capaz de enunciar muitas frases, balbuciando nomes de peixes ou ficando a maioria das vezes pelas onomatopeias e por alguns piropos a quem entrasse um tanto ou nada atarefado.
Passados tantos anos, penso com redobrada ternura no Nia, um homem entre tantos outros que recusava o equilíbrio que a planura e a terra firme lhes concedia, optando assim pela contínua agitação líquida das marés. Aos dez anos, os adultos pareciam-me todos muito altos e muito proféticos nas suas inclinações e por esse motivo não me esqueço das suas saídas aflitas e baloiçantes por aquele corredor da taberna, tal e qual uma traineira à deriva. A luz do sol do meio-dia atirava-o para um descanso tardio enquanto que para mim era apenas o início. O despertar de um verão longo e comprido. A evocação de uma infância inesquecível e interminável.

terça-feira, 14 de junho de 2016

O móbil do texto...

À conversa com Miguel Carvalho (Rascunhos)
Sala de Embarque” parte da ideia de instabilidade, um motivo de desconforto que se instalou num alargado corpo/célula, estendendo-se como um vírus generalizado de partida, alastrando a sua mobilidade um pouco por todo o lado. Ao fundo do túnel não surge qualquer solução, somente uma porta de saída imaginária, um feixe de janela por espreitar, um hipotético local de embarque. Um ensejo e desejo de viagem. Consumada a mudança de espaço físico e de abalada obrigatória para outro lugar num desespero feito imposição, eis a impossibilidade de permanecer e experienciar um modo de vida já conhecido. Resta afirmar a aventura e paixão pelo desconhecido, tornando a existência propícia para a aprendizagem e o sonho.

Sala de Embarque (O Texto)

À conversa com Miguel Carvalho (Rascunhos)

          Recorde-se que este texto teatral começou a ser escrito em Dezembro do ano passado, tendo sido interrompido recentemente para dar lugar ao monólogo “Podemos Controlar o que os Outros Pensam de Nós?”. Neste processo estão desde já envolvidos os intervenientes João Malaquias, Bruno Gaudêncio, Margarida Benevides e Liliana Janeiro. A composição sonora do espectáculo estará a cargo de Pedro Gaspar e os cenários e desenho de palco sob a orientação de Miguel Carvalho. Este trabalho é uma co-produção entre o Teatro Paupérrimo com a Galeria Arco 8.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

As Trevas da Tua Dor

E também te podem dizer
sê servil na pátria dos outros
pois a tua terra deixou-te nascer
somente para a fome ou para que vivas
no chiqueiro de um porco. Emigra e
volta da pátria dos outros
sem palavras, mas carregado de coisas
se, acaso tiveres sorte, isto é,
se fores suficientemente servil.
Podes depois voltar
com alma de alugel
abandonada que foi a tua terra
para te sujeitares ao trabalho que
te envergonharias de fazer. E quando
regressares – julgando que
regressar é verbo que se conjuga -, vais
julgar-te um herói, qualquer coisa,
só porque andas com máquina de vídeo
choldreando por todo o lado. Isto é
também a tua pátria, a tua vida. E
não há cão que
uive às trevas da tua dor.

João Miguel Fernandes Jorge, in Antologia Açoriana, edição da Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, 2011.

domingo, 5 de junho de 2016

Do Populismo

         "Populismo" já não designa nada da ordem da constituição e legitimação de um corpo político ou dos métodos de governação, já que o seu sentido está inteiramente do lado dos meios de comunicação, do regime mediático; não tem nada a ver com o povo, mas apenas com espectadores."

António Guerreiro, Ípslon, Sexta-feira, 27 de Maio de 2016,

sábado, 4 de junho de 2016

Sobre o Monólogo...

            
"Podemos Controlar o que os Outros Pensam de Nós?" com
o actor João Malaquias.
      “Podemos Controlar o que os Outros Pensam de Nós?” é um monólogo teatral que reflecte sobre essa capacidade de nos aceitarmos enquanto seres humanos, independentemente daquilo que pensamos ser ou de qualquer julgamento exterior. Ao mesmo tempo pretende exaltar o uso das palavras, a inocência do amor e da amizade, enaltecer a relevância da beleza e do seu papel no quotidiano, bem como exprimir a nossa necessidade de pacificação e de silêncio.
 Este texto foi sendo escrito, reescrito, ao longo do tempo. A sua génese, bem como a sua elaboração, está associada a uma circunstância especial, sobretudo a uma tirada de um amigo que se interrogava sobre essa possibilidade de controle, esse exame permanente que fazemos sobre aquilo que os outros podem pensar sobre nós. A indagação activa e vigilância permanente das nossas acções e sobre o que fazemos, uma atenção constante ao que os outros podem ou não pensar. É neste nosso comportamento que encontramos motivo para inibições ou acções nem sempre consentâneas com as nossas reais intenções.
          A partir daqui o texto foi-se tornando esclarecedor no sentido de criar um momento de introspecção, uma celebração de um aniversário e a exaltação de um registo dialógico virtual que criasse um uma reflexão intima e consciente sobre a existência e a passagem do tempo.”

Hoje à noite, no Teatro Micaelense



Cafés: Ágoras Modernas.

         
      
      “Os cafés são a versão moderna da ágora grega. Locais onde se misturam trabalho e lazer, onde nos entregamos a certas rotinas, a certa preguiça, a certa reflexão, e onde podemos ler, discutir e depois escrever. Isto nem sempre existe nas cidades de hoje, com o ritmo de hoje.”



Claudio Magris, Ípslon


Fotografia: Bruno Gaudêncio.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

A Missiva de Janeiro Alves em Junho

Amigo Doutor Mara,
Estava eu a estender as minhas meias brancas no estendal, quando recebo inadvertidamente, e como se um taco de basebol me acertasse no lombo, a sua última carta. Doutor Mara, Doutor Mara, Doutor Mara… que deplorável espectáculo pirotécnico da escrita, com foguetes atirados em todas as direcções, e alguns a rebentarem-lhe nas mãos. O doutor mara navega à deriva no meio de um monótono oceano, e atirou um very light a pedir ajuda, só assim posso compreender o seu desespero.
Mas dou-lhe uma sugestão: já que não consegue parar de ingerir papel, experimente comer papel higiénico, quem sabe não ajudará a higienizar o seu discurso. Outra possibilidade é ingerir dois ou três livros de auto-ajuda, capa e tudo, acompanhados de uns goles de água para amolecer as folhas e a sua retórica também.
Eu bem sei que estas cartas são privadas (a não ser que as ande aí a publicar sem a minha autorização) e mal não virá ao mundo com as suas imprecisões e perversas judiações, mas imagine um dia que alguém as lê! É a destruição do meu património intelectual, é a minha pessoa a arder em destroços num inferno de mil chamas, é enfim, o meu fim Doutor Mara.
Ainda lhe pergunto, Doutor Mara, como pode confiar na União dos Amigos de Eisenstein, quando o próprio foi alvo das minhas severas críticas cinematográficas semanais quando escrevia para o semanário que saía de semana a semana? Os estatutos dessa associação são actualmente constituídos por um único artigo – “Artigo único: Esta associação tem como objectivo único e prioritário prejudicar Janeiro Alves de todas as formas possíveis, promovendo o seu enxovalhamento.” – em que a palavra enxovalhamento reúne em si os conceitos de maculação, rebaixamento e emporcalhamento.
Por fim, uma interrogação: Belém? Belém, Doutor Mara? Na última vez que estive fisicamente em Belém ainda nem existiam os pastéis de belém! E metafisicamente já foi o ano passado. Fico portanto estupefacto com estas suas invenções, que naturalmente só podem decorrer do seu estado de debilidade, combinado com a sua precipitada tendência para a fantasia. Há um mundo real à nossa volta, Doutor Mara. Se não consegue acordar, meta o despertador.
Antes de ir aparar o bigode, acabo esta carta com uma sugestão e uma confirmação. Sugiro-lhe que reveja a medicação que anda a fazer. Começaria talvez por reduzir os comprimidos amarelos, e aumentar a dose diária dos verdes. Por fim a confirmação: Marquei para o final deste mês uma visita não oficial a Ponta Delgada para me inteirar do seu estado de saúde, e para discutir consigo assuntos de extrema importância. Levarei comigo um colaborador para tirar apontamentos, e outro para fazer a reportagem, que culminará com a habitual foto do aperto de mão europeu.
            Finalizo desejando-lhe as melhoras da cabeça, e que da próxima vez não me importune com assuntos de menor relevância.

Cordialmente,
Janeiro Alves

Hoje, às 19 horas, na Galeria Miolo.

Cartaz de Victor Marques

"St John’s, Porto de Abrigo - A Frota Branca" no Museu de Ílhavo

Fotografia de Paul Anna Soik (1919-­1999)

quarta-feira, 1 de junho de 2016

3ª Sessão na Galeria Miolo

         
Fotografia de Carlos de Olyveira
Depois de duas apresentações, são cerca de cinquenta as pessoas que já assistiram, inclusive, houve quem quisesse repetir, voltaremos à Galeria Miolo no fim de tarde de amanhã, quinta-feira, dia 2 de Junho, pelas 19 horas. O João Malaquias, cada vem mais confiante, ensaia o texto de forma a melhorar a cada apresentação, exaltando a cadência e o baloiço repetitivo do texto : “Navegador solitário? Não. Nem pensar. Quando foi a primeira vez que olhaste o mar…quando foi? Lembras-te? Tenho que confessar-te que és, por vezes, um marinheiro à deriva, perdes-te com os teus olhos cheios de mar, levitas na sua grande beleza afirmativa e deixas-te encantar com a sua expressão no horizonte, inspiras-te tal e qual os poetas com as musas, mergulhas bem fundo nas águas, navegas à superfície, mergulhas novamente e vens à tona, reaprendes a boiar… vais tendo vários empregos, agarras-te às palavras como polvos na infância se agarravam às tuas pernas. Tu sabes que não podes cometer nenhum excesso. Percebes? Qualquer excesso agora pode ser fatal(…)” À Galeria/Editora Miolo que acarinhou e apoiou este monólogo, ao público que esteve presente e divulgou esta produção de baixíssimo custo e, que simpaticamente apelidamos de “Teatro Pobre”, estamos "teatralmente"gratos!

Douta Inquietude

Levaste contigo a locomotiva
douta inquietação a rasgar
as virtudes do vento e do azul
as linhas do céu plangente
cartas por escrever com destino certo
ruidosos dias estilhaçados 
de tudo o que se tem para dizer

João da Ponte, Ponta Delgada, 12 de Fevereiro de 2016.