Certo dia, num
festival de cinema aqui perto, escutei um dos elementos do júri proferir à mesa duma refeição num restaurante que não havia uma mão cheia de
filmes portugueses que valesse a pena ver. De forma criativa, elenquei de imediato uma dezena deles e, ele, naturalmente, calou-se. Continua, no
entanto, a intrigar-me a ostracização e profundo desconhecimento pelo cinema realizado e produzido
por estas bandas bem como uma certa leviandade na forma como falamos da nossa
relação com a sétima arte feita por cá. Por isso, caso fosse programador de uma sala de cinema, isto é,
se eu tivesse um pequeno estúdio para mostrar filmes da minha preferência,
aproveitaria estes meses da estiva para dar a conhecer aos nativos bem como a todas as outras pessoas que
nos visitam, a cinematografia riquíssima de um país chamado Portugal. Começaria assim
pelo "Belarmino", de Fernando Lopes, 1964, "Jaime", de
António Reis, 1974, "Kilas, o Mau da Fita", de José Fonseca e Costa,
1976, "Sangue", de Pedro Costa, 1989; "Recordações da Casa
Amarela", de João César Monteiro, 1989, "Três Irmãos", de Teresa Villaverde, 1994, "Quando Troveja", de Manuel Mozos, 1998, “Respirar
Debaixo de Água”, de António Ferreira, 2000, "António, Um Rapaz de Lisboa", Jorge
Silva Melo, 2001, e "Alice", de Marco Martins, 2005. Uma dezena de filmes portugueses para (re)ver durante este verão e muitos tantos outros poderiam constar da lista. Por agora, está
bom, não?
quinta-feira, 30 de junho de 2016
quarta-feira, 29 de junho de 2016
Sala de Embarque: Anzóis e leitura de texto
Fotografia Carlos Olyveira |
Eis-me novamente em Santa Clara, freguesia de Ponta
Delgada, com 2971 habitantes, segundo os censos de 2011. O dia por aqui nasceu com humidade elevada e o “capacete” esteve instalado até ao princípio da tarde. No grande armazém onde
está a Galeria Arco 8, deparo-me com pescadores das Caxinas, homens do mar que
há muitos anos procuraram nas ilhas sorte e aventura nas artes da pesca. Estou perante verdadeiros caxineiros e outros caboverdianos a preparar os anzóis para a pesca à linha, esmerando-se
enquanto trabalhadores manuais atando os nós, esticando as linhas e seda
para as gamelas. Alguns deles trabalham na maior embarcação que se encontra no porto desta cidade insular.
Passemos, portanto, ao terceiro ensaio deste texto teatral intitulado “Sala de Embarque”. Uma ideia que foi sendo pensada e escrita com vontade de dar voz aos meus contemporâneos, gente que vive hoje nas ilhas e
continente. Gente de carne e osso, que possui olhar atento e não desarma, pessoas que vivem hoje aqui
connosco, que partilham as ruas e as praças, as lojas dos hipermercados ou do
centro de emprego, os sonhos e angustias de um tempo de crise que não quer descolar.
Uma sala de embarque, portanto, onde todos se encontram e desencontram, há aqueles que pretendem partir, levantar voo e
navegar ou então apenas uma viagem feita de nuvens e memórias. Este foi mais um ensaio para partilhamos novamente impressões
sobre as inflexões e ritmo do texto, a leitura permanente e descoberta das suas
possibilidades, no fundo, um processo de aprendizagem colectivo.
Sophia Loren em Portugal
Agnès Varda, Póvoa de Varzim, 1957 |
Um dia escrevi
um artigo para um jornal, creio que há treze anos, sobre uma fotografia da
Agnès Varda (versão postal) que na altura o meu amigo Daniel me tinha enviado
após ter visto "Os Respigadores e a Respigadora"(2001), um filme
dessa mais que interessante realizadora francesa. Ao que parece Agnés Varda
passou pela Póvoa de Varzim nos idos anos cinquenta e deparou-se com uma festa
popular, que consistia na dádiva de oferendas da população aos mais necessitados. A cineasta,
acompanhada pelo seu companheiro da altura, pediu a uma popular que
fosse com eles para uma rua deserta onde houvesse muita luminosidade para compor um retrato, tendo como pano de fundo um cartaz rasgado de uma grande
actriz italiana a publicitar um sabonete. Meio século depois, o neto da poveira da imagem telefonou para a redacção do jornal, tendo eu tratado de imediato em conhecer a senhora. Esta chegou a emocionar-se ao ver o postal com a sua imagem e só dizia:
“Estou tão bonita nesta foto!”. A
poveira fotografada dava pelo nome de Maria do Alívio, exercia a "profissão" de
lavadeira, tendo sido toda a sua vida
doméstica. Naquele postal vê-se também Sophia Loren, actriz italiana
que entrou em dezenas de filmes e vencedora de dois óscares de Hollywood. Há muito tempo atrás tive uma ideia mirabolante de reunir estas três mulheres naquele lugar mas agora, mesmo que quisesse, não iria conseguir. E tive pena.
terça-feira, 28 de junho de 2016
Sala de Embarque: ensaios em Santa Clara à Tardinha
Fotografia de Carlos Olyveira |
Retomámos
ontem os ensaios naquele barracão enorme bem pertinho do mar. A colaboração da
Galeria Arco 8 na pessoa do Pedro Bento, a disponibilidade do Diogo Fonseca, as
condições e possibilidades que este amplo espaço nos abre e possibilita.
Continuaremos assim no gerúndio: ensaiando. A zona de Santa Clara é tão bonita ao fim da
tarde, aquela luz coada e aquele azul intenso espelhado no mar chão, o colorido
divertido das casas em tão simpático ambiente marítimo em redor. Desta feita,
trabalharemos de forma persistente as marcações, as entradas em cenas de cada
actor, o ritmo e a entoação bem como a forma de encontrar o tom geral do texto.
O elenco está composto tal como a distribuição dos papéis: Henrique Santos (O Jovem), Margarida
Benevides (Mulher de Meia-Idade), Liliana
Janeiro (Rapariga Aluada) e João
Malaquias (O Velho). A composição sonora do espectáculo estará a cargo de Pedro Gaspar e os cenários e desenho de
palco sob a orientação de Miguel
Carvalho.
segunda-feira, 27 de junho de 2016
Do Sucesso
"Como as pessoas que começaram antes não conseguiram o sucesso dos que começaram depois, viram-se contra o sucesso destas pessoas. Isso é muito típico em todas as áreas. Não é só na literatura. As pessoas em vez de ficarem contentes com um sucesso que pode fazer alguma coisa pela leitura em Portugal, não, ficam chateadas porque gostariam de ter o mesmo sucesso e não tiveram."
Maria do Rosário Pedreira, in Revista Ler, verão de 2016.
Três Canções Estivais
Fotografia: Eduardo Brito |
Junho está quase no fim e nem sabor a santos
populares (fica a promessa de celebrar o São Pedro!). As noites tardam em aquecer e com o raiar da manhã surgem os garajaus sedentos de costa e
temperaturas quentes. Os dias são agora maiores e a luz chega para ficarmos até
mais tarde junto do mar e assistir a este espectáculo quotidiano das nuvens.
Este é o mês em que se anunciam todas as viagens e
que, por isso, serão acompanhadas pelas canções que dão brilho à estação. Recordo
aqui pelo menos três das canções que falam desse estio em crescendo ou mesmo a
cristalização desse sentimento estival. A começar a voz de Zeca Afonso, com o tema “Coro
da Primavera”, num refrão assumidamente cheio de esperança e vitalidade: “Ergue-te ó Sol de Verão/Somos nós os teus
cantores/Da matinal canção/Ouvem-se já os rumores/Ouvem-se já os
clamores/Ouvem-se já os tambores.” Segue-se a canção “Leãozinho”, expressa na
voz doce e dolente de Caetano Veloso: “Gosto
muito de te ver, leãozinho/Caminhando sob o sol/Gosto muito de você,
leãozinho/Para desentristecer, leãozinho/O meu coração tão só/Basta eu
encontrar você no caminho.” E, por fim, quando o verão se fecha e tudo terminar ou for a enterrar (se
possível, na areia!) deverá ser possível cantar "That Summer
Feeling", de Jonathan Richman: “When
there's things to do not because you gotta/When you run for love not because
you oughta/ When you trust your friends with no reason notta/The joy I've named
shall not be tamed/And that summer feeling is gonna haunt you one day in your
life.” O verão promete!
quinta-feira, 23 de junho de 2016
Os Melhores Anos da Minha Vida
Os melhores anos da minha vida
passaram comigo ausente, passaram
numa corrente subterrânea.
Não me apercebi de nada, distraído
com a queda das folhas,
a densa mistura de pão e desordem.
Estava tudo em aberto, mas eu não
sabia
senão de pequenas querelas,
e tímidos passos à toa, sempre à
espera
de não ter futuro. Sentado, como um
pobre,
sobre o poço de petróleo,
eu media com tesouras as semanas,
misturava-me com livros, ansiava
pelo dia em que deixasse de
sangrar.
Os melhores anos da minha vida
troquei-os por isto.
José Miguel
Silva in "Vista para um pátio seguido de Desordem".
quarta-feira, 22 de junho de 2016
Sala de Embarque: Ensaios
À Conversa com Miguel Carvalho |
Começaram os
ensaios na Galeria Arco 8 de “Sala de Embarque”. Foi no dia mais longo do ano
que encetámos os ensaios deste texto teatral há muito anunciado. Desta feita, só
ensaiando, trabalhando de forma persistente o texto é que se consegue avançar,
seguir em frente, construir um ambiente dramático em cima do palco. Por isso, é
nossa vontade ensaiar cada vez mais, ir assim melhorando, exercitando,
procurando as personagens, indo ao encontro da real envolvência da peça. Esta
proposta vai ser construída a partir das possibilidades que o texto teatral e
as circunstâncias permitem. Bem-vindos ao Teatro Paupérrimo!
terça-feira, 21 de junho de 2016
Verão: Ainda agora Começou!
Não
devia ter mais de dez anos naquele verão, naquela rua com nome de Ferreiros,
uma rua com título de profissão há muita desaparecida daquele lugar de origem
piscatória. A leitura ameaçava e crescia logo bem cedo, pela manhãzinha com a
ida à Taberna do Senhor Miguel comprar pão e permanecer por lá até cansar as
vistas. O taberneiro era um indivíduo polido, simpático q.b, um nada
provinciano e austero, quase sempre com um semblante carregado e marcas de
religiosidade profunda, dado que se vestia sempre de preto e não permitia
conversas em tom muito alto ou o uso do calão e do vernáculo. Até hoje penso que nunca me advertiu sobre a minha presença em tal estabelecimento comercial pelo facto de conhecer bem os meus pais, pensando talvez que
ter por ali um miúdo de tenra idade a ler o jornal conferia dignidade a quem frequentasse o
estaminé, sobretudo um antro de gente adulta com mais sede do que juízo. No
entanto, eu sabia que estava sob a mira do seu olhar atento e punitivo, ainda que
com a consciência exacta do imediato com que estes seriam avisados de qualquer infracção
matinal que ali tivesse lugar. Sendo assim, a partir de certa altura
tornei-me uma figura de tal modo assídua que alguns clientes se queixavam de já
não ter o jornal diário disponível naquela única mesa em frente ao balcão. Como
pediam as regras da concorrência, eu chegava mais cedo, comprava o
pão, sentava-me e ficava por ali até que não houvesse mais nada para ler. Eu sabia que
notícias novas e fresquinhas só viriam depois da praia, do gelado de gelo, das
corridas de rolamentos e da bicicleta, das idas à videiras e às espigas ou então do competititvo jogo da
carica ou do berlinde. Uma delícia.
Naquelas
manhãs de leitura estival fazia-me, portanto, companhia o "Nia Congros", diminutivo de
Agonia, um pescador rude já com alguma idade, que se caracterizava por ser
muito alto e bastante magro, usando sempre um boné numa cara cheia de rugas tisnada
pelo sol. Saía-se sempre com uma expressão que já trazia engatilhada: “Saia uma
preta fresquinha, senhor Miguel!” Enquanto ele curava as mágoas duma noite de
faina marítima em sobressalto junto da tripulação ou a ausência
de descanso junto da casa das máquinas a cheirar a gasóleo por tudo o que era
sítio, eu ia dando os primeiros passos na política nacional e internacional, descobrindo
os crimes de faca e alguidar, os pequenos furtos e zaragatas, as aquisições do
Varzim e do Sporting, a vida dos actores e das actrizes, a programação
televisiva, a descoberta das das oito diferenças, etc. De vez em quando, o Nia
perguntava-me se o mundo estava igual ao dia de ontem, ao qual eu respondia de
forma perentória – “Ainda agora comecei”. Quem começava e não terminava de
bebericar era este homem que aprendi a ver bêbado sem julgar nem confiar. Em duas
horas era capaz de beber uma grade de cerveja tal era a secura que ostentava.
Encostado ao balcão não era capaz de enunciar muitas frases, balbuciando nomes
de peixes ou ficando a maioria das vezes pelas onomatopeias e por alguns
piropos a quem entrasse um tanto ou nada atarefado.
Passados
tantos anos, penso com redobrada ternura no Nia, um homem entre tantos outros que
recusava o equilíbrio que a planura e a terra firme lhes concedia, optando
assim pela contínua agitação líquida das marés. Aos dez anos, os adultos
pareciam-me todos muito altos e muito proféticos nas suas inclinações e por
esse motivo não me esqueço das suas saídas aflitas e baloiçantes por aquele
corredor da taberna, tal e qual uma traineira à deriva. A luz do sol do meio-dia atirava-o para um
descanso tardio enquanto que para mim era apenas o início. O despertar de um verão longo e comprido. A evocação de uma infância inesquecível e interminável.
segunda-feira, 20 de junho de 2016
sexta-feira, 17 de junho de 2016
quinta-feira, 16 de junho de 2016
terça-feira, 14 de junho de 2016
O móbil do texto...
À conversa com Miguel Carvalho (Rascunhos) |
“Sala de Embarque” parte da ideia de instabilidade,
um motivo de desconforto que se instalou num alargado corpo/célula,
estendendo-se como um vírus generalizado de partida, alastrando a sua
mobilidade um pouco por todo o lado. Ao fundo do túnel não surge qualquer
solução, somente uma porta de saída imaginária, um feixe de janela por
espreitar, um hipotético local de embarque. Um ensejo e desejo de viagem.
Consumada a mudança de espaço físico e de abalada obrigatória para outro lugar num desespero feito imposição, eis a impossibilidade de permanecer e
experienciar um modo de vida já conhecido. Resta afirmar a aventura e paixão
pelo desconhecido, tornando a existência propícia para a aprendizagem e o
sonho.
Sala de Embarque (O Texto)
À conversa com Miguel Carvalho (Rascunhos) |
Recorde-se que este texto teatral começou a ser escrito em Dezembro do ano passado, tendo sido interrompido recentemente para dar lugar ao monólogo “Podemos Controlar o que os Outros Pensam de Nós?”. Neste processo estão desde já envolvidos os intervenientes João Malaquias, Bruno Gaudêncio, Margarida Benevides e Liliana Janeiro. A composição sonora do espectáculo estará a cargo de Pedro Gaspar e os cenários e desenho de palco sob a orientação de Miguel Carvalho. Este trabalho é uma co-produção entre o Teatro Paupérrimo com a Galeria Arco 8.
segunda-feira, 13 de junho de 2016
As Trevas da Tua Dor
E também te
podem dizer
sê servil na
pátria dos outros
pois a tua
terra deixou-te nascer
somente para
a fome ou para que vivas
no chiqueiro
de um porco. Emigra e
volta da
pátria dos outros
sem palavras,
mas carregado de coisas
se, acaso
tiveres sorte, isto é,
se fores
suficientemente servil.
Podes depois
voltar
com alma de
alugel
abandonada que
foi a tua terra
para te
sujeitares ao trabalho que
te envergonharias
de fazer. E quando
regressares –
julgando que
regressar é
verbo que se conjuga -, vais
julgar-te um
herói, qualquer coisa,
só porque
andas com máquina de vídeo
choldreando por
todo o lado. Isto é
também a tua
pátria, a tua vida. E
não há cão
que
uive às
trevas da tua dor.
João Miguel Fernandes Jorge, in Antologia Açoriana, edição da Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada, 2011.
quinta-feira, 9 de junho de 2016
quarta-feira, 8 de junho de 2016
terça-feira, 7 de junho de 2016
domingo, 5 de junho de 2016
Do Populismo
"Populismo" já não designa nada da ordem da constituição e legitimação de um corpo político ou dos métodos de governação, já que o seu sentido está inteiramente do lado dos meios de comunicação, do regime mediático; não tem nada a ver com o povo, mas apenas com espectadores."
António Guerreiro, Ípslon, Sexta-feira, 27 de Maio de 2016,
sábado, 4 de junho de 2016
Sobre o Monólogo...
"Podemos Controlar o que os Outros Pensam de Nós?" com o actor João Malaquias. |
Este texto
foi sendo escrito, reescrito, ao longo do tempo. A sua génese, bem como a sua
elaboração, está associada a uma circunstância especial, sobretudo a uma tirada
de um amigo que se interrogava sobre essa possibilidade de controle, esse exame
permanente que fazemos sobre aquilo que os outros podem pensar sobre nós. A indagação
activa e vigilância permanente das nossas acções e sobre o que fazemos, uma
atenção constante ao que os outros podem ou não pensar. É neste nosso
comportamento que encontramos motivo para inibições ou acções nem sempre consentâneas
com as nossas reais intenções.
A partir daqui o texto foi-se tornando esclarecedor no sentido de criar um momento de introspecção, uma celebração de um aniversário e a exaltação de um registo dialógico virtual que criasse um uma reflexão intima e consciente sobre a existência e a passagem do tempo.”
A partir daqui o texto foi-se tornando esclarecedor no sentido de criar um momento de introspecção, uma celebração de um aniversário e a exaltação de um registo dialógico virtual que criasse um uma reflexão intima e consciente sobre a existência e a passagem do tempo.”
Cafés: Ágoras Modernas.
“Os cafés são a versão moderna da ágora grega. Locais onde se misturam trabalho e lazer, onde nos entregamos a certas rotinas, a certa preguiça, a certa reflexão, e onde podemos ler, discutir e depois escrever. Isto nem sempre existe nas cidades de hoje, com o ritmo de hoje.”
Claudio Magris, Ípslon
Fotografia: Bruno Gaudêncio.
quinta-feira, 2 de junho de 2016
A Missiva de Janeiro Alves em Junho
Amigo Doutor Mara,
Estava eu a estender as minhas meias
brancas no estendal, quando recebo inadvertidamente, e como se um taco de
basebol me acertasse no lombo, a sua última carta. Doutor Mara, Doutor Mara,
Doutor Mara… que deplorável espectáculo pirotécnico da escrita, com foguetes
atirados em todas as direcções, e alguns a rebentarem-lhe nas mãos. O doutor
mara navega à deriva no meio de um monótono oceano, e atirou um very light a pedir ajuda, só assim posso
compreender o seu desespero.
Mas dou-lhe uma sugestão: já que não
consegue parar de ingerir papel, experimente comer papel higiénico, quem sabe
não ajudará a higienizar o seu discurso. Outra possibilidade é ingerir dois ou
três livros de auto-ajuda, capa e tudo, acompanhados de uns goles de água para
amolecer as folhas e a sua retórica também.
Eu bem sei que estas cartas são
privadas (a não ser que as ande aí a publicar sem a minha autorização) e mal
não virá ao mundo com as suas imprecisões e perversas judiações, mas imagine um
dia que alguém as lê! É a destruição do meu património intelectual, é a minha
pessoa a arder em destroços num inferno de mil chamas, é enfim, o meu fim
Doutor Mara.
Ainda lhe pergunto, Doutor Mara, como
pode confiar na União dos Amigos de Eisenstein, quando o próprio foi alvo das
minhas severas críticas cinematográficas semanais quando escrevia para o
semanário que saía de semana a semana? Os estatutos dessa associação são
actualmente constituídos por um único artigo – “Artigo único: Esta associação tem como objectivo único e prioritário
prejudicar Janeiro Alves de todas as formas possíveis, promovendo o seu
enxovalhamento.” – em que a palavra enxovalhamento reúne em si os conceitos
de maculação, rebaixamento e emporcalhamento.
Por fim, uma interrogação: Belém?
Belém, Doutor Mara? Na última vez que estive fisicamente em Belém ainda nem
existiam os pastéis de belém! E metafisicamente já foi o ano passado. Fico
portanto estupefacto com estas suas invenções, que naturalmente só podem
decorrer do seu estado de debilidade, combinado com a sua precipitada tendência
para a fantasia. Há um mundo real à nossa volta, Doutor Mara. Se não consegue
acordar, meta o despertador.
Antes de ir aparar o bigode, acabo
esta carta com uma sugestão e uma confirmação. Sugiro-lhe que reveja a
medicação que anda a fazer. Começaria talvez por reduzir os comprimidos
amarelos, e aumentar a dose diária dos verdes. Por fim a confirmação: Marquei para
o final deste mês uma visita não oficial a Ponta Delgada para me inteirar do
seu estado de saúde, e para discutir consigo assuntos de extrema importância.
Levarei comigo um colaborador para tirar apontamentos, e outro para fazer a
reportagem, que culminará com a habitual foto do aperto de mão europeu.
Finalizo desejando-lhe as melhoras
da cabeça, e que da próxima vez não me importune com assuntos de menor
relevância.
Cordialmente,
Janeiro Alves
quarta-feira, 1 de junho de 2016
3ª Sessão na Galeria Miolo
Fotografia de Carlos de Olyveira |
Douta Inquietude
Levaste
contigo a locomotiva
douta
inquietação a rasgar
as virtudes
do vento e do azul
as linhas do
céu plangente
cartas por
escrever com destino certo
ruidosos
dias estilhaçados
João da Ponte, Ponta Delgada, 12 de Fevereiro de 2016.
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