quarta-feira, 31 de maio de 2017

E Se eu Não Te Amar Mais

(cantochão)

E se eu não te amar mais me
caia o mar nos ombros
me caia 
este silêncio pelos ossos dentro.

Me cegue os olhos esta sombra

me cerre 
esta noite num escuro mais profundo
do que a chuva de ti de mãos tão leves.

A figueira do meu sangue se emudeça 

de pássaros à espera dos teus passos
de outra voz por sobre a minha
morta.

E as ruas do teu corpo eu desaprenda

como desaprendi os dedos que me tocam
e se eu não te amar mais me caia a casa 
de costa no teu peito como o vento.


António Lobo Antunes in Letrinhas de Cantigas. 

To Jonny Bridge






"Till a’ the seas gang dry, my dear,
And the rocks melt wi’ the sun;
I will love thee still, my dear,
While the sands o’ life shall run."
A Red, Red Rose"

 Robert Burns

...

como se o vento trouxesse
recados 
que pudesse abandonar
aos serviço do mensageiro

como se o vento te pudesse levar
e as palavras transformar
no milagre da cerejeira

não descuides o vento 
que quem uiva 
é lobo faminto

rodeia-te antes do essencial
faz-te cozinheira, semeia o teu quintal

o que por natureza rola
há-de rolar 
e tu sozinha
o que podes contra o vento?

Ana Paula Inácio in Vago Pressentimento Azul Por Cima, Ilhas, 2000.

terça-feira, 30 de maio de 2017

Sala de Embarque: Ensaios no Cine Teatro Lagoense

     
Fotografia de Carlos Olyveira
     
  

      Ontem recomeçámos os ensaios no Cine Teatro Lagoense, propriedade da autarquia, situado na cidade da Lagoa. Esta terra micaelense ficou conhecida pelas suas fábricas de cerâmica e do álcool que remontam ao final do século XIX e, foi por essa altura que um homem culto, Francisco D´Amaral Almeida, republicano e verdadeiro apaixonado pelas artes, pensou em edificar este cine teatro, concretizando esse desiderato no início do século XX, e, por isso, agora para lá do centenário de existência. Sabe-se que este tinha interesse e predilecção pela pintura, escultura e fotografia, que gostava de ler e escrever, tendo sido, inclusive, presidente da câmara. Era também um homem preocupado com o progresso e desenvolvimento da sua terra. E, também por isso, aqui iremos nós com a pretensão de honrar o seu legado trabalhar em prol da comunidade e do seu teatro. Assim e, após alguns ensaios, julgamos estar prontos para mostrar esta peça aos lagoenses e restante público que assim deseje ver. 

segunda-feira, 29 de maio de 2017

domingo, 28 de maio de 2017

"A poesia está cá dentro e sai quando deve sair"

“-Que leitura faz da poesia que tem sido editada nos Açores, especialmente pelos autores da nova geração?
-Emanuel Jorge Botelho: Autores da nova geração, conheço poucos nos Açores. Refiro o jovem Leonardo Sousa, que tem uma poesia muito boa. Mesmo na prosa não conheço muito e, do que conheço, talvez fosse preciso trabalhar um pouco mais, na minha opinião pessoal.
-É indiferente escrever na margem da Lagoa das Sete Cidades ou dentro do Metropolitano de Lisboa?
E.J.B: Eu acho que sim, por estranho que possa parecer. Lembro-me de andar com um caderninho na algibeira, durante as viagens de metro em Lisboa, e de me saírem coisas que, se calhar nas Sete Cidades não me sairiam…A poesia está cá dentro e sai quando deve sair."

Excerto da entrevista de Emanuel Jorge Botelho à “Biblioteca Açoriana”, Antena 1 Açores.

Um verso de Márcia

Eu sei que é fácil de montar o aparato da menina que é culta

Pescadores

Os filhos dos pescadores
São pequeninos búzios
De silêncio
E de sonoro fervilhar das ondas

As ruas dos pescadores
São como o convés dos barcos
E como o soalho das casas 
Dos pescadores

As mulheres vestem-se com redes 
E usam as conchas no lugar dos brincos
E nos dias em que choram
As ondas são manhãs sobre o meio-dia

Daniel Faria, edição de Vera Vouga, Quasi Edições, 2009.

Sala de Embarque: Mês de Junho

Cartaz de Júlia Garcia
   

        Mais duas apresentações a ser preparadas, organizadas, e já disponíveis para as vossas agendas: Vila Franca do Campo e Lagoa, 9 e 10 de Junho, respectivamente. Duas terras micaelenses, dois palcos que pedem outra vez a vossa receptividade, o vosso ânimo, a vossa boa vontade. E nós, cheios de entusiasmo, cada vez mais atentos, prosseguimos viagem. Com cara de muitos e bons amigos (muito obrigado, Lígia e Miguel!) que nos foram dizendo o que estava bem e o que estava mal, aguçando cada vez mais este nosso gosto por aprender, prontos por alcançar mais conhecimento ou ficarmos na posse de sábias experiências, sempre com a ideia presente que só através de muitos ensaios, bastante estudo e prática conseguiremos levar mais longe este nosso desempenho teatral. E, para já, iremos contar com o envolvimento de pessoas que juntaram a nós, sobretudo em Vila Franca do Campo, pois trata-se dum projecto de finalistas da Escola. Em breve, contaremos quais são os nossos futuros planos de embarque…

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Amarcord

Amarcord (1973) filme de Federico Fellini.
         
      Lo so, lo so, lo so
che un uomo, a 50 anni,
ha sempre le mani pulite
e io me le lavo due o tre volte al giorno
ma è quando mi vedo le mani sporche
che io mi ricordo di quando
ero ragazzo.



Tonino Guerra, poeta e argumentista de Amarcord.
 

quinta-feira, 25 de maio de 2017

O Regresso

Como quem vindo de países distantes fora de
si, chega finalmente aonde sempre esteve
e encontra tudo no seu lugar,
o passado no passado, o presente no presente,
assim chega o viajante à tardia idade
em que se confundem ele e o caminho

Entra então pela primeira vez na sua casa

e deita-se pela primeira vez na sua cama,
Para trás ficaram portos, ilhas, lembranças,
cidades, estações do ano.
E come agora por fim um pão primeiro
sem o sabor de palavras estrangeiras na boca.


Manuel António Pina, in "Como se Desenha uma Casa", Assírio&Alvim, Lisboa, 2011.

terça-feira, 23 de maio de 2017

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Luke Howard: Conhecido por Nomear Nuvens

Luke Howard (1772-1824)
Imagem da Wikipédia



          Luke Howard nasceu em Londres, a 28 de Novembro de 1772 e foi um químico e um metereologista amador que desenvolveu um interesse inusitado pela ciência. Um dia teve uma bela ideia de criar uma nomenclatura para as diferentes nuvens que passam pelo céu, tendo sido esta apresentada em 1802 na Askesia Society. Este caracterizou as nuvens em três grupos: estratos (em camadas), cúmulos (as lanudas) e cirros (em forma de caracol). Há uma personagem na peça “Sala de Embarque” que não se cansa de falar nos nomes das nuvens:“Eu gosto tanto de olhar pelas janelas do avião. As nuvens parecem-me farrapos brancos a voar pelo céu. E todas elas com nomes muito curiosos. Há, portanto, a Cumulus, a Congestus, a Cumulonimbus, a Stratocumulus, a Nimbostratus, a Altocumulus, a Cirrus, a Cirrocumulus...”. Ontem, enquanto procurava no google o lastro sonoro de Luke Howard, um músico de origem australiana, deparei-me com o criador da tal "onomástica nefelibata", isto é, o autor da designação das diferentes nuvens existentes. E, deste modo, também descobri uma possível  e improvável banda sonora…

domingo, 21 de maio de 2017

O Porquê dos Interrogatórios...

     É com moderado optimismo e um sobrolho franzido que se apresenta o ciclo de interrogatórios trazido ao convívio dos apartamentos e vivendas portuguesas por intermédio de dois conceituados entrevistadores, DM e Alberto Ai, que alternadamente trarão à discussão e ao escrutínio tendencioso dos entrevistados temas da actualidade política, filosófica, artística e sociológica do século XXI, ficando de parte temas como electrodomésticos, jardinagem e artes marciais (já bastante consolidados nos finais do século XX). Será evitada a utilização excessiva de aliterações, prosopopeias ou estrangeirismos (sobretudo na sua vertente idiotista), promovendo-se ao invés um discurso directo puro e duro, contributo que se espera profícuo às novas gerações e outras.
Os entrevistadores de alterne dispensam apresentações. Ao som de “For Once In My Life” de Stevie Wonder, DM aparece em fato de banho vermelho, depois do seu habitual mergulho no pesqueiro de Ponta Delgada. Faz-nos um sorriso aberto, ainda ofegante, e dá-nos a indicação com o polegar de que está tudo impecável. Das ilhas para a capital do império português, avistamos Alberto Ai, a estacionar o seu clássico Citroen DS. Com um blazer verde e óculos escuros de massa, dirige-se agora ao seu apartamento, lançando-nos um piscar de olhos categórico de quem não gosta de facilitar.


A redacção do “Interrogatório”

sexta-feira, 19 de maio de 2017

Interrogatório II

Encontrei Giorgio delle Mare numa esplanada duma ilha atlântica que, por razões de sigilo profissional, jamais poderei revelar o nome. É sim senhor, bem lá no meio do Oceano Atlântico onde se avistam jangadas de cagarros, posição estratégica propícia a longas e demoradas conversas. Foi aí, portanto, que avistei Giorgio mais a sua cigarrilha de tabaco ilhéu, camisa às flores, muito garridas e berrantes, por sinal, mais o seu chapéu de panamá feito por artesãos locais. Soube, entretanto, que “Gigio”, tal como é conhecido pelos amigos mais próximos, somente trabalha três horas pela manhã, dedicando-se ao “acto conversatório” durante boa parte da tarde e concretiza uma vida um tanto ou nada dissipada q.b. pela noitinha.
Giorgio é, sem qualquer dúvida, um personagem riquíssimo em narrativas contemporâneas e que, após tantas viagens em veleiro em modo solitário, ainda uma vida de ramboia faustosa e derramada na juventude, encontra-se hoje retirado junto de uma lagoa insular, dedicando-se assim à plantação de camélias junto do enxofre mas com uns desvios à mistura. Não seremos nós que iremos fazer a sua biografia não autorizada, no entanto aconselhamos vivamente que estamos na presença de uma história pessoal longa e digna de acontecimentos de registo de figurar em qualquer livraria ou rede social avançada.

          Doutor Mara: A que se dedica concretamente, pois há todo um mistério à volta disso. Não nos diga que também tem uma plantação de camélias sinensis?
         Giorgio Delle Mare: Doutor Mara, admiro os seus métodos de persuasão. Nem sei como me encontrou. Vamos lá a isto então, que ainda tenho de ir ali abaixo, e depois voltar para cima. Tenho estado dedicado à construção de uma nova embarcação para regressar ao mar e deixar as ilhas. Tem sido um trabalho solitário de força bruta quase animal, pelo que tento equilibrar com o sensível estudo da botânica, de forma a não me tornar num ser rude e acéfalo. É por isso que me dedico à fascinante complexidade das camélias, que por vezes me leva à comoção em lágrimas.
        DM: Giorgio delle Mare, sendo assim o que é feito de si, ou melhor, o que é feito do seu antigo chapéu de palha feito da planta Carludovica Palmata, confecionado em trama fechada, visível apenas em países como o Equador e demais vizinhança?
        GDM: Nunca mais o usei por duas razões: primeiro porque esse chapéu relaciona-se com um tempo passado, e não sou dado a saudosismos. Em segundo lugar porque a minha aparatosa queda de cabelo transforma o chapéu num apetrecho de ocultação da calvície, e eu gosto de assumir as transformações que o tempo vai operando em mim. Está bem guardado numa caixa de papelão, introduzida dentro de um baú de madeira, guardado na arrecadação do sótão, por sua vez fechado à chave, chave essa que desapareceu há uns meses. Há-de aparecer… Mas se quer saber, já cumpriu a sua missão. É um efectivo apetrecho de categoria e elegância quando utilizado em determinadas circunstâncias sociais ou políticas. É um chapéu que tanto pode ser usado na praia, como numa festa de smoking, transmitindo ao seu portador uma sensação ilusória de confiança na penetração em determinados circuitos de elite.
        DM: Sabemos que abomina as redes sociais ainda que gostasse de saber sobre o que é feito dos seus velhos amigos de longas e intermináveis noites de boémia, bem como das suas amigas predilectas com quem se enamorou ou percorreu com elas os recantos mais belos das capitais europeias ou mesmo as mais afamadas marinas mundiais. Não tem qualquer curiosidade em saber o que é feito de toda esta gente?
        GDM: Não. Ou melhor, tenho alguma curiosidade, mas não quero saber. Tendo em conta a vida desregrada que levávamos nesses loucos anos, temo que os meus amigos sobreviventes possam ser hoje em dia seres estropiados ou dementes, com marcas indeléveis de uma vida de perdição. Reencontrá-los seria como a cena do filme “Intervista” de Fellini onde o realizador e companhia visitam Anita Ekberg na sua moradia, e esta, já desfigurada pela impiedosa acção do tempo, recorda com Marcelo os tempos do La Dolce Vita, numa ode à beleza efémera da jovialidade.
     DM: Giorgio delle Mare, refreie esta minha curiosidade, mas para quem vivia nos altos mares e agora se muda para o interior de uma lagoa, será caso para perguntar: que tempestade ou nortada atravessou a sua cabeça?
       GDM: Após alguns dias de lucidez mental ilusória resultante do ambiente atmosférico favorável, resolvi parar nesta ilha para me abastecer, vindo do Panamá. Queria uma noite de civilização, queria beber vinho e estar com mulheres. Acabei por me juntar a um grupo de estrangeiros vindos de um país também ele estrangeiro, que praticavam turismo. Bebemos muito, e sem saber como, viemos parar a esta lagoa, talvez numa boleia de caixa aberta às tantas da manhã. Não me lembro de mais nada. No dia seguinte acordei, estava sozinho em cuecas de elástico junto à lagoa. Tinha sido roubado pelos turistas. Algumas pessoas olhavam-me ao longe, curiosas, e ouvia-se um burburinho de reprovação colectiva. Tinha de deixar a ilha rapidamente. Mais tarde, um lavrador ajudou-me a chegar ao porto. À chegada, não avistei o meu barco. Tinha sido levado. Isto foi há 7 anos, ali ao fundo, naquela baía. Vê-se daqui…
          DM: Giorgio, imagino que depois de conhecer as mulheres mais lindas do universo nessas cidades portuárias, vulgo marinas, julgo que essa sua dedicação às camélias, como dizem por aqui, é um tudo ou nada metafórica. O que nos tem a dizer sobre isso?
         GDM: A vida é ela própria uma metáfora. As mulheres são neste momento uma alegoria. As camélias poderão efectivamente ser uma personificação, e a ilha… uma hipérbole.  
          DM: Dizem que por aqui encontrou a alegria e que deixou de procurar a felicidade? Qual é a diferença, meu caro amigo?
       GDM: Jamais em tempo algum fiz tal afirmação! Não acredite no que dizem por aí a meu respeito, Doutor - É o diz-que-disse corriqueiro! Já me chamaram curandeiro, alquimista e bruxo, dizem que vivo no luxo em cama de diamantes e elefantes africanos. Deixe-se de enganos! Até já me chamaram poeta maldito, não dá para acreditar! E vai-se consolidando o mito, só porque em certas circunstâncias digo coisas a rimar.
       DM:O Giorgio delle Mare foi também um grande actor de cinema e praticante de badmigton. De quê, em concreto, o meu caro amigo, tem saudades?
           GDM: Sinto saudades de Emma e Anna, duas irmãs polacas com corpos esculturais de ringue de patinagem artística, com caras de bonecas russas em pele renascentista e olhos esverdeados, seios em forma de pera rocha e traseiros desenhados por mestres da ergonomia divina. Conheci-as em Barbados numa filmagem, e fizemos longos serões a jogar xadrez no meu barco.
         DM: O que é que o meu caro amigo gostaria dizer aos seus grandes amigos e amigas de longa data e que já não sabem de si desde que o avistaram em manifestações contra a incineração? 
         GDM: Não me procurem. Se por acaso me encontrarem mesmo sem me procurarem, finjam que não me conhecem. Mas não venham meter conversa comigo, pois eu sei que estão a fingir que não me conhecem, só para meterem conversa. Percebe-se logo quando as pessoas fingem que não nos conhecem. Conheço bem esse fingimento, pois já houve situações em que perante velhos conhecidos, eu próprio tive de fingir que não os conhecia. Mais vale preservarmos o imaginário do que foram, pois o que foram geralmente já não são. Prefiro as gentes da ilha, ou até mesmo a solidão. Mas uma coisa não mudou: Abaixo a incineração!

domingo, 14 de maio de 2017

Do Poeta Misterioso

Fotografia de Carlos Olyveira 
       
        “Alexandre O´Neill permanece, pelo menos para mim, um poeta misterioso. Um grande poeta misterioso que entrou na língua portuguesa e nela ficou, autorizando-nos a usar como nossas e de todos os dias as palavras e expressões que ele inventou. (…) Leiam-no porque têm agora uma oportunidade de o ler numa bela edição da Assírio& Alvim, “Poesias Completas& Dispersos”, editada por Maria Antónia Oliveira, a biógrafa e investigadora do poeta. A edição integra os poemas das sucessivas edições na Imprensa Nacional das Poesias Completas de 1951 a 1986 (algumas coreografadas à luz de novo conhecimento) e de outro livro de poesia “Anos 70: Poemas Dispersos”, de 2015, recolha de Maria Antónia Oliveira.”

Clara Ferreira Alves, in Revista Expresso, 6 de Maio de 2017

Trespassados

        "Não vão ser só os portugueses a ficar muito pobres nos próximos dez anos. Até as raças superiores terão de conter despesas e isso pode ser uma vantagem para nós: mais pobres, os do Norte talvez se sintam tentados a trocar Bali ou Rajastão como destino de férias de praia ou "culturais" em favor de locais mais baratos: as praias e o património exótico situado nas traseiras das suas casas.Portugal pode ser um desses destinos caseiros de emergência e, em vez de investimentos em eólicas, ou seja de atirarmos dinheiro ao vento, devíamos dedicar-nos a melhorar as praias, o acesso às praias, os hotéis, os campos de golfe, o património histórico-artístico português...e a disfarçar o melhor possível a devastação da paisagem urbana e rural a que nos dedicamos com afinco há 50 anos."

Paulo Varela Gomes, in Público, 16 de Abril de 2011

sexta-feira, 12 de maio de 2017

A Terra Vista do Mar de Davide Enia

          
            
          "Tinha cinco anos. Era a primeira vez que nadava sozinho dentro dele. Eu. Dentro do mar. E ele. O mar: acolhia-me. Um abraço quente. E carinhoso. Estava tão contente eu. Tinha cinco anos. E depois. Eu mijei dentro do mar. Com todo o meu ser mijei dentro dele. Tudo estava tranquilo. À minha volta. Dentro de mim...que já perdi tantas memórias. Demasiadas. Mas ainda me lembro de quando tinha cinco anos. Eu. Estava a nadar pela primeira vez sozinho dentro do abraço quente do mar em Agosto. E mijei dentro dele, eu. Enquanto ele, o mar, nunca me pediu nada em troca, nem perguntou porquê, só o seu murmúrio sedutor e leve, as ondas delicadas, às vezes suspensas às vezes rebentadas, que murmuravam languidamente ao meu ouvido de miúdo: mija...mija...mija"

excerto de "A Terra Vista do Mar", Davide Enia, tradução de Letízia Russo edição Livrinhos de Teatro dos Artistas Unidos.                  
            
          

quarta-feira, 10 de maio de 2017

Tabacaria Açoreana

É esta a minha rua – decidi
eu, por razão nenhuma.
Um grupo local, já velho, discute
diariamente política nacional.
Indiferente, e não menos assíduo,
o cão branco ladra (ou pede afagos?)
na varanda por caiar da casa em frente.

E há tabacos, jornais, revistas,
uma espécie de jardim
onde os fantasmas se riem
da nossa rude e descrente democracia.

De quando em quando, um vulto
suspeito pede-me lume, light,
algo que já não «bruxuleia firme»
– ou os rigorosos vinte cêntimos
que prefiro recusar, num sorriso coxo.

O cão recolhe-se. Não se lembra
do tempo em que a Casa das Palmeiras
trazia fausto e povo rico a esta rua
que se tornou tão minha.

Mesmo que não regresse.

Manuel de Freitas, Portas do mar, edição do Autor, 2011, com capa e ilustração de Urbano.

segunda-feira, 8 de maio de 2017

A Periferia da Periférica

“Neste sentido, é importante investir em iniciativas que façam a ponte entre quem aqui trabalha e que, no âmbito de uma residência artística, um workshop, uma formação técnica, ou simples conferência, partilhe conhecimento com quem está mais longe dos centros, onde este tipo de experiência é mais regular, está disseminada de forma mais abrangente e não se encontra reduzida a uma cadência pontual e para uma público circunscrito, como é o nosso caso.”


Alexandre Pascoal, in Açoriano Oriental, 8 de Maio de 2017 

domingo, 7 de maio de 2017

Chuvadas de Maio

Fotografia de Carlos Olyveira

A Ilha em Imagens

       
Francisco Afonso Chaves
Colecção Museu Carlos Machado
       Hoje é sábado e nem sombra dos volantes pés de Tatiana Grenkova no palco do Teatro Micaelense. Decidimos por isso esclarecer arrumações, asseio e demais organização de tudo aquilo que nos está em redor. Uma certeza: amanhã é domingo e, se não for para mapear e nutrir para dentro, isto é, desencantar e desarrumar o abecedário, alimentar memórias  e puxar o lustro às palavras pois não terá valido a pena a passagem das horas, ai esse tempo ceifeiro que em nós habita. Aqui mesmo ao lado, há também e, sobretudo, no Núcleo de Santa Bárbara, as fotografias de Francisco Afonso Chaves para (re) ver. É uma pequena parte das sete mil imagens do eminente naturalista que adorava fotografar, algum tempo após ter deixado Lisboa e se ter fixado no arquipélago,  residindo aqui a maior parte da sua vida. A exposição dá pelo nome de “A Imagem Paradoxal” e é uma experiência sensorial e visual riquíssima, essencialmente, quem desconhece ou até mesmo para quem conhece estas paragens. 

sábado, 6 de maio de 2017

As Mãos da Pianista

Concerto de Carla Bley, Steve Swallow e Andy Sheppard em Angra do Heroísmo 
Fotografia de Margarida Quinteiro (Festival AngraJazz 2013)

quinta-feira, 4 de maio de 2017

Diogo Fonseca expõe no Hostel Out of Blue

   Diogo Fonseca inaugurou ontem a sua primeira exposição de fotografia no “Hostel Out of Blue”. Num corredor contíguo à sala de estar deste alojamento local estão expostas sete fotografias com o título conjunto “A Viagem”. As imagens exploram a ideia de périplo no perímetro insular, onde o grão adensa o mistério e a dúvida, marcados pelas intensidade e a textura das paisagens locais, evidenciando a pujança e tonalidade de formas e cores. Este trabalho fotográfico revela cuidado e intencionalidade prévias, visível nos suportes e disposição, sendo prenúncio de bons augúrios para promissoras propostas futuras. 

PS-As fotografias da inauguração desta exposição foram realizadas pelo fotógrafo Carlos Olyveira.

quarta-feira, 3 de maio de 2017

"Amarcord" o filme da vida de Zeca Medeiros

Amarcord será exibido dia 27 de Maio
no Teatro Micaelense
Este filme de Federico Fellini foi realizado em 1973 e retrata Itália dos anos 30, a vida na cidade de Rimini e de um adolescente daquela altura. Num misto de ficção e realidade, pois trata-se das recordações do realizador, Amarcord é um quadro pitoresco e fantasmagórico  pré-segunda Guerra Mundial e onde se anuncia já a presença de Il Duce
Federico Fellini convocou para este filme a sua galeria de personagens extravagantes, dando assim a conhecer os tempos da sua juventude e a sua visão da Itália daquele período, contando para isso com a música evocativa, plena de imagens, de Nino Rota. O realizador explicaria alguns anos mais tarde, numa conversa com Damian Pettigrew, as razões que o levaram a realizar tal filme: "O Amarcord é uma reflexão sobre a incapacidade de observarmos criticamente o nosso passado fascista, um passado que recusamos, mas do qual nunca nos poderíamos separar: o que faz parte do passado de cada um de nós forma inalteravelmente uma parte íntima de si próprio. Por isso o Amarcord é mais um exame do presente do que uma nostalgia. Na realidade, quando foi estreado o Satyricon, muitos viram o filme como um comentário sobre o Maio de 68. Creio que filmes como Casanova ou O Navio podem ser interpretados como reflexos de uma certa actualidade, como o jornal da noite. (...) Muitas vezes simplifiquei o sentido cabalístico da palavra amarcord, dizendo que é um termo romagnolo e que significa "Lembro-me". Mas não é bem verdade. Penso que a ideia original me ocorreu depois de ter lido qualquer coisa sobre o sueco defensor do aborto Hammercord, e que a sonoridade do seu nome o ponto de partida. Se se juntarem as palavras amare (amar), cuore (coração), ricordare (lembrar) e amaro (amargo) obtém-se Amarcord."

"Car ma vie, car mes joies"*

*versos de "Je ne regrette rien" de Edith Piaf