Encontrei Giorgio delle Mare numa esplanada duma ilha atlântica que, por
razões de sigilo profissional, jamais poderei revelar o nome. É sim senhor, bem
lá no meio do Oceano Atlântico onde se avistam jangadas de cagarros, posição
estratégica propícia a longas e demoradas conversas. Foi aí, portanto, que
avistei Giorgio mais a sua cigarrilha de tabaco ilhéu, camisa às flores, muito
garridas e berrantes, por sinal, mais o seu chapéu de panamá feito por artesãos
locais. Soube, entretanto, que “Gigio”, tal como é conhecido pelos amigos mais
próximos, somente trabalha três horas pela manhã, dedicando-se ao “acto
conversatório” durante boa parte da tarde e concretiza uma vida um tanto ou
nada dissipada q.b. pela noitinha.
Giorgio é, sem qualquer dúvida, um personagem riquíssimo em narrativas
contemporâneas e que, após tantas viagens em veleiro em modo solitário, ainda
uma vida de ramboia faustosa e derramada na juventude, encontra-se hoje
retirado junto de uma lagoa insular, dedicando-se assim à plantação de camélias
junto do enxofre mas com uns desvios à mistura. Não seremos nós que iremos
fazer a sua biografia não autorizada, no entanto aconselhamos vivamente que
estamos na presença de uma história pessoal longa e digna de acontecimentos de
registo de figurar em qualquer livraria ou rede social avançada.
Doutor Mara:
A que se dedica concretamente, pois há todo um mistério à volta disso. Não nos
diga que também tem uma plantação de camélias sinensis?
Giorgio
Delle Mare: Doutor Mara, admiro
os seus métodos de persuasão. Nem sei como me encontrou. Vamos lá a isto então,
que ainda tenho de ir ali abaixo, e depois voltar para cima. Tenho estado
dedicado à construção de uma nova embarcação para regressar ao mar e deixar as
ilhas. Tem sido um trabalho solitário de força bruta quase animal, pelo que
tento equilibrar com o sensível estudo da botânica, de forma a não me tornar num
ser rude e acéfalo. É por isso que me dedico à fascinante complexidade das
camélias, que por vezes me leva à comoção em lágrimas.
DM: Giorgio
delle Mare, sendo assim o que é feito de si, ou melhor, o que é feito do seu
antigo chapéu de palha feito da planta Carludovica Palmata, confecionado em
trama fechada, visível apenas em países como o Equador e demais vizinhança?
GDM:
Nunca mais o usei por duas razões: primeiro porque esse chapéu relaciona-se
com um tempo passado, e não sou dado a saudosismos. Em segundo lugar porque a minha
aparatosa queda de cabelo transforma o chapéu num apetrecho de ocultação da
calvície, e eu gosto de assumir as transformações que o tempo vai operando em
mim. Está bem guardado numa caixa de papelão, introduzida dentro de um baú de
madeira, guardado na arrecadação do sótão, por sua vez fechado à chave, chave
essa que desapareceu há uns meses. Há-de aparecer… Mas se quer saber, já cumpriu a sua missão. É um efectivo
apetrecho de categoria e elegância quando utilizado em determinadas circunstâncias
sociais ou políticas. É um chapéu que tanto pode ser usado na praia, como numa
festa de smoking, transmitindo ao seu
portador uma sensação ilusória de confiança na penetração em determinados circuitos
de elite.
DM: Sabemos que
abomina as redes sociais ainda que gostasse de saber sobre o que é feito dos
seus velhos amigos de longas e intermináveis noites de boémia, bem como das
suas amigas predilectas com quem se enamorou ou percorreu com elas os recantos
mais belos das capitais europeias ou mesmo as mais afamadas marinas mundiais.
Não tem qualquer curiosidade em saber o que é feito de toda esta gente?
GDM:
Não. Ou melhor, tenho alguma
curiosidade, mas não quero saber. Tendo em conta a vida desregrada que
levávamos nesses loucos anos, temo que os meus amigos sobreviventes possam ser
hoje em dia seres estropiados ou dementes, com marcas indeléveis de uma vida de
perdição. Reencontrá-los seria como a cena do filme “Intervista” de Fellini onde o realizador e companhia visitam Anita
Ekberg na sua moradia, e esta, já desfigurada pela impiedosa acção do tempo,
recorda com Marcelo os tempos do La Dolce
Vita, numa ode à beleza efémera da jovialidade.
DM: Giorgio
delle Mare, refreie esta minha curiosidade, mas para quem vivia nos altos mares
e agora se muda para o interior de uma lagoa, será caso para perguntar: que
tempestade ou nortada atravessou a sua cabeça?
GDM:
Após alguns dias
de lucidez mental ilusória resultante do ambiente atmosférico favorável,
resolvi parar nesta ilha para me abastecer, vindo do Panamá. Queria uma noite
de civilização, queria beber vinho e estar com mulheres. Acabei por me juntar a
um grupo de estrangeiros vindos de um país também ele estrangeiro, que
praticavam turismo. Bebemos muito, e sem saber como, viemos parar a esta lagoa,
talvez numa boleia de caixa aberta às tantas da manhã. Não me lembro de mais
nada. No dia seguinte acordei, estava sozinho em cuecas de elástico junto à
lagoa. Tinha sido roubado pelos turistas. Algumas pessoas olhavam-me ao longe,
curiosas, e ouvia-se um burburinho de reprovação colectiva. Tinha de deixar a
ilha rapidamente. Mais tarde, um lavrador ajudou-me a chegar ao porto. À
chegada, não avistei o meu barco. Tinha sido levado. Isto foi há 7 anos, ali ao
fundo, naquela baía. Vê-se daqui…
DM: Giorgio,
imagino que depois de conhecer as mulheres mais lindas do universo nessas
cidades portuárias, vulgo marinas, julgo que essa sua dedicação às camélias,
como dizem por aqui, é um tudo ou nada metafórica. O que nos tem a dizer sobre
isso?
GDM:
A vida é ela própria uma metáfora. As mulheres são neste
momento uma alegoria. As camélias poderão efectivamente ser uma personificação,
e a ilha… uma hipérbole.
DM: Dizem que
por aqui encontrou a alegria e que deixou de procurar a felicidade? Qual é a
diferença, meu caro amigo?
GDM:
Jamais em tempo algum fiz tal afirmação! Não acredite no
que dizem por aí a meu respeito, Doutor - É o diz-que-disse corriqueiro! Já me
chamaram curandeiro, alquimista e bruxo, dizem que vivo no luxo em cama de
diamantes e elefantes africanos. Deixe-se de enganos! Até já me chamaram poeta
maldito, não dá para acreditar! E vai-se consolidando o mito, só porque em
certas circunstâncias digo coisas a rimar.
DM:O Giorgio
delle Mare foi também um grande actor de cinema e praticante de badmigton. De
quê, em concreto, o meu caro amigo, tem saudades?
GDM:
Sinto saudades de Emma e Anna, duas irmãs polacas com corpos
esculturais de ringue de patinagem artística, com caras de bonecas russas em
pele renascentista e olhos esverdeados, seios em forma de pera rocha e
traseiros desenhados por mestres da ergonomia divina. Conheci-as em Barbados
numa filmagem, e fizemos longos serões a jogar xadrez no meu barco.
DM: O que é que o
meu caro amigo gostaria dizer aos seus grandes amigos e amigas de longa data e
que já não sabem de si desde que o avistaram em manifestações contra a
incineração?
GDM:
Não me procurem. Se por acaso me encontrarem mesmo sem me
procurarem, finjam que não me conhecem. Mas não venham meter conversa comigo,
pois eu sei que estão a fingir que não me conhecem, só para meterem conversa.
Percebe-se logo quando as pessoas fingem que não nos conhecem. Conheço bem esse
fingimento, pois já houve situações em que perante velhos conhecidos, eu
próprio tive de fingir que não os conhecia. Mais vale preservarmos o imaginário
do que foram, pois o que foram geralmente já não são. Prefiro as gentes da
ilha, ou até mesmo a solidão. Mas uma coisa não mudou: Abaixo a incineração!