sexta-feira, 22 de março de 2019

quarta-feira, 20 de março de 2019

Guarda o Napo

 Guardanapo de Diogo Sousa

No Way Back

"Como sair daqui?" Perguntas bem, amigo.
Diógenes diria "à catanada, vivamente",
Lichtenberg "à gargalhada", se o conheço.
Thomas Bernhard proporia "num rectângulo
de tábuas" e Machado que o caminho de saída
se descobre ao caminhar. Beckett é provável
que dissesse "rastejando".
Diderot aventaria
"pela rua do liceu", Tcheckov pela "viela
mais escura, à tua esquerda". Séneca diria, 
muito sonso, "pelo passeio das Virtudes",
Vaneigem "pelo jardim das Belas-Artes"
Bashô responderia (e eu com ele) "é muito cedo,
fica mais um pouco, ainda há vinho na garrafa."

José Miguel Silva in Walkmen.

Hoje, ao Fim da Tarde!

André Laranjinha

terça-feira, 19 de março de 2019

A Cantora Careca de Eugène Ionesco

"La Cantatrice Chauve"-Fotografia do Jornal Le Figaro
A Cantora Careca, de Eugène Ionesco, está em cena no Théatre de La Huchette, na capital francesa, Paris, desde 16 de Fevereiro de 1957. Durante seis dias da semana, com excepção do domingo, é possível assistir a esta peça, portanto, há 62 anos. Foi com este texto dramático que Eugène Ionesco, dramaturgo de origem romena, inaugurou aquilo a que viria a designar-se de Teatro do Absurdo.
 Curiosamente, a primeira vez que travei conhecimento com o teatro de Eugène Ionesco foi em Tirana, na Albânia. Decorria o ano de 1994 e aquele país vivia, então, uma convulsão e explosão social nunca vista após o jugo de uma ditadura feroz com marcas de isolamento, pobreza e obscurantismo bem evidentes. Nesse momento assistia-se a um período de transição com milhares de pessoas nas ruas e muita gente a abandonar o país, não importava a forma. Parecia, àquela altura, tudo estranhamente insólito. Por isso, assistir ao espectáculo da “Cantora Careca”, por um grupo de teatro local, fez com que não compreendesse nada do texto nem da peça que me era dada a conhecer, desconhecia, inclusive, a língua albanesa, assistindo no final a uma aparatosa invasão do palco pela assistência, sintoma de um país que se libertava e experimentava um outro itinerário político e social. Dada a experiência de intercâmbio a decorrer no país vizinho, aquela visita tornar-se-ia numa grande aventura, fazendo daquela estadia um momento marcante da existência, com episódios e situações experienciadas de forma intensa e peculiar.
Na última sexta-feira e, passados vinte e cinco anos desse episódio teatral, assisti no Auditório da Escola de Lagoa à representação de “A Cantora Careca” – pelo grupo de teatro escolar “A Faísca”. A memória viva da primeira representação com a presença actual dum auditório a abarrotar, atento e entusiasta, mesmo que possa não ter compreendido a totalidade das razões daquele texto ou do que se passava em palco, fez com que o tempo recuasse um pouco. Por esse motivo, só me pude enternecer com a entrega daqueles jovens actores, vibrar com aquelas representações esforçadas e competentes, admirar aquela vontade de superação e ultrapassagem de complexidades daquela apresentação. Assim, foi deveras surpreendente ver gente tão nova lidar com o burlesco da existência, o ridículo e estranheza do mundo e da linguagem que usamos e, mesmo assim acender, por instantes, o maravilhoso poder e magia da arte de Talma.

domingo, 17 de março de 2019

Um Poema de José Ricardo Nunes

                            10.
Em vez de arrumar dentro dos caixotes,
empilhar os caixotes a um canto 
e ficar a olhar, moído pela culpa,
decidi despejar a tralha velha no lixo,
mesmo sabendo que a culpa haveria de voltar
a cobrir tudo, como fez o pó.

Lembro-me de mutias coisas, sempre

foi assim. E com a idade só piora.
A cada dia me lembro de coisas novas,
algumas nem sequer imagino
que tenham mesmo acontecido: fronteiras,
mares, o lábio desfeito por um anzol.

A meio da tarde o meu avó subia ao sótão

para me contar histórias da sua infância,
Depois eu ficava ali, sozinho
no vazio, como se já fosse hoje
e não tivesse mais onde brincar.
Olhava durante horas para o coração.

Às vezes levantava-me de repente 

e batia com a cabeça numa trave.
Eram as palavras do meu avô a dominar-me.
Ainda devem estar atrás dos colchões velhos.
Desejei depois que se tornassem minhas.
Agora tenho a certeza de que as dispenso todas.

in Classico, Companhia das Ilhas, 2019.

segunda-feira, 11 de março de 2019

Missiva Pré-Primaveril ainda que tardia de Janeiro Alves

Caro Doutor Mara,
É com enorme satisfação que recebo a sua carta, apresentando desde já as minhas desculpas pelo atraso na resposta. Devo dizer-lhe que os últimos dias têm sido conturbados, devido a determinados acontecimentos que se sucederam inapelavelmente e à vista do meu olhar incrédulo. Pois imagine o Doutor que fui convidado para o Certame das Piores Obras Literárias Europeias, que este ano aconteceu em Saint Tropez. O Doutor Mara sabe como aqueles porcos chauvinistas gostam do freak show, mas eu não me importei nada. Hotel pago, pensão completa, passagens de pullman incluídas, champanhe no quarto, banhos na Côte D’Azur, oh la la… Foi caso para voltar a escovar o meu fato asas de grilo e reafirmar a categoria dos meus sapatos italianos de cetim afivelados. Para banhos reservei a minha melhor tanga, monocromática, robusta e confortável. Saímos de Lisboa rumo a França, com algumas paragens. A última seria em Perpignan, uma simpática localidade no litoral Sul. Tínhamos cerca de meia hora, e acabei por me perder. De repente dei por falta da carteira, e tentei sem sucesso voltar aos sítios por onde tinha passado. Corri para a praça central, e o autocarro já tinha partido sem mim. Vi-me assim sem dinheiro, sem mala, sem nada. Lembrei-me então que Victor Klaus estava a viver em Rivesaltes, uma zona de vinhas perto dali, e pus-me à boleia. Lá chegado, não demorei a encontrá-lo. O Doutor Mara não imagina a fama que Klaus tem em Rivesaltes! Mas concluirei rapidamente. Fiquei então uns dias por cá, em casa de Klaus, e tenho estado a trabalhar na apanha do tomate. O objectivo inicial era conseguir algum dinheiro para regressar a Lisboa, mas neste momento o local já me é aprazível. O meu caro amigo sabe como gosto de andar a pé, e Lisboa está um inferno com os trotineteiros e ciclistas. Cada vez mais o peão é um alvo a abater, e isso deixa-me furioso! Comecei a atirar-lhes com pedras da calçada, mas o Doutor imaginará a dificuldade em acertar em alvos em movimento…
Relativamente a Felício, compreendo a sua angústia, é efectivamente uma péssima ideia querer interrogá-lo. A última vez que o vi foi há uns quinze anos. Passei pela sua rua, e vi uma silhueta por detrás das cortinas da sua sala de jantar. Imagino que fosse ele, tendo em conta que não tem por hábito receber visitas, à excepção do contador do gás. Imagino portanto que, como abrilhantador de entrevistas e perguntador de alto gabarito, o Doutor Mara encare este como o maior desafio da sua já longa (porém curta) carreira. É caso para lhe desejar sorte, e lhe dizer que, dado o meu paradeiro, assistirei ao longe áquilo que poderá ser a sua consagração ou quem sabe, o seu categórico declínio.
Com elevada expectativa e a ancestral admiração,
Janeiro Alves

sábado, 9 de março de 2019

Neste Mar Imóvel de Blanca Martín-Calero e Eduardo Brito

Blanca Martín Calero estabeleceu-se em São Miguel em 2013. Na edição de 2016 do PONTES, evento-homenagem em Ponta Delgada ao malogrado produtor, João da Ponte, Blanca publicou um poema nos "Cadernos de Poesia" intitulado “Cinquenta e Nove”. Foi através deste que Eduardo Brito, fotógrafo e cineasta, com quem partilha a edição deste livro, se conheceram tal como tiveram a ideia duma aventura editorial conjunta e consequente lançamento de “Neste Mar Imóvel”, com a chancela da Araucária Edições (https://araucaria.pt/).“Levaste a araucária do fundo da rua”, principiava assim o verso desse poema dedicado ao amigo comum e revelar-se-ia claro o ensejo de Blanca de expandir a sua sensibilidade a partir do universo das letras. Desde a sua chegada à ilha foram muitas as voltas que a vida deu pois, tal como podemos ver nos títulos do livro, afloramos a presença ou mesmo a ausência da ilha: “Vida Limitada”, “Ilha e o Desconhecido” ou “O Regresso". Da simbiose entre a escrita de Blanca Calero e a imagem de Eduardo Brito constata-se que as fotografias nascem deste percurso inicial, ainda uma partilha da sua "mirada curiosa" bem como a reflexão que brota dos interstícios da vivência no espaço insular. E, enquanto se contempla a ilha, comprova-se que esta é um "ninho" em que se entra e sai, ao mesmo tempo que se repara na força incontida das palavras: “O sotaque era grosseiro e rude como deve ser a verdade”. Ainda que Blanca saiba que se pode estar muito perto de pertencer à ilha, isto é, de fazer parte da sua geografia interior, ainda que ninguém poderá compreender muitas perguntas que podem continuar sem resposta, algumas deveras pertinentes: “Pergunto-me se nos podemos tornar ilhéus ou se devemos nascer numa ilha para o sermos.”, presente em “Ser Ilhéu”. O mesmo será dizer: olhemos para este mar imóvel e sintamos os navios passar.

Um Verso de Simon Diaz

La luna me esta mirando

Galeria Brui: Zunzum

 Exposição de Igor 16382
(Dia 13 de Março -18h às 22 horas)


sexta-feira, 8 de março de 2019

Inverno

Parece que eternamente sobre a terra
Choverá desolação e frio
A mesma neve de horror desencarnada
A mesma solidão dentro de casas

Sophia de Mello Breyner 

quarta-feira, 6 de março de 2019

Santa Clara Azul


Um Verso de Neil Hannon

But sometimes I long for a sign, anything

uma história saturada de mortos

eu agora trinta anos fumo bebo
rodeado de toda a tecnologia do homem
assusto-me com o grito de uma perdiz
ali fora na seara alentejana. Insones
os pássaros pelas noites e dias
e choro
neste verso avesso por um verso.
um filho qualquer que seja o seu sexo
mas não aqui connosco nós
não temos histórias para contar
senão a morte
ao deitar

Fernando Machado Silva, in Passageiros Clandestinos, Companhia das Ilhas, 2012.

segunda-feira, 4 de março de 2019

Missiva Pré-Primaveril com Destino a Janeiro Alves no Entrudo Pleno

Caro Janeiro Alves,
Redijo-lhe estas linhas nos debutantes sussurros primaveris de 2019, desejando que o meu amigo se encontre guarnecido das mais promissoras expectativas para o próximo estio, que segundo asseveram as mais altas patentes da meteorologia, será o mais quente de sempre. Quaisquer mangas cavas ou demais refrescos e gelados será sempre pouco para o verão tórrido que se avizinha!
O motivo desta missiva é interrogar-lhe sobre o seu conhecimento de um tal Felício Chanfra. Recebi um convite duma publicação azórico-lusitana de reconhecido gabarito para interrogar este psicoterapeuta dada a sua reputação, trabalho e reconhecimento em terapias psicológicas oportunamente avançadas. Encetei com contumácia as questões necessárias e li mesmo toda a literatura ilustrada sobre a Psicologia Moderna. Até aqui labor intenso e esforçado. O meu amigo Janeiro Alves sabe que sou um brilhante interrogador, possuidor de um estrepitoso charme e assertivo nas minhas convicções hodiernas. Doravante, eis que não saberei o que me irá acontecer. É que quando procurei recolher informações sobre Felício Chanfra no grande motor de busca global, fui confrontado com ausência biográfica, surgiram mesmo algumas frases redondas e referências próprias de uma fragilidade inconfundível, muitas delas poderiam mesmo constar de qualquer mural nas redes sociais. Isto, para não falar de uma hiperealidade abissal. Indaguei assim a razão do sucesso de Felício na lista das personalidades promissoras deste novo século, e nada consegui concluir. Na lista de grandes promessas figuram ainda o irreparável Victor Klaus e o inefável Alberto Ai. Conjecture lá, Janeiro Alves, tamanho descaramento!
Como deve imaginar, não sei o que hei-de fazer para diminuir a ansiedade, desatei por isso a escrever e escutar interrogatórios de forma compulsiva, socorrendo-me apenas da recordação dos momentos de folia quando interroguei Giorgio Delle Mare e Andar Carrasco. Em breve, faço questão de lhe endereçar o resumo, a súmula do depressivo e suculento encontro que irei ter com esse famoso psicoterapeuta retirado do mundo. Segundo me afiançam, convirá também ficar atento aos ligeiros achaques e altivez a que habituou o seu público desde que ganhou o Prémio Sigismundo F, atribuído pela Academia dos Atos Falhados.
Despeço-me no ápice da euforia e no cúmulo da folia sobretudo pelo trabalho que o meu amigo tem vindo a realizar em prol da literatura de cordel, augurando-lhe, desde já, um Feliz Entrudo. Com um até breve na caixa do correio. 
No esplendor máximo da estima e da consideração,

Doutor Mara

A Mesa está Posta de Jorge Silva Melo

“São textos dispersos, textos que escrevi, entrevistas, coisas que disse, cinquenta anos de viver e de andar a pensar e a fazer. É uma escolha, são textos díspares em que água mole foi batendo em pedra sempre dura, mas não está cá tudo, nem pensar, há textos perdidos, outros que ficaram de lado, outros que andam por outras recolhas*. São cinquenta anos insistentes, felizes, teimosos, sempre a defender, ó monotonia!, essa coisa mais linda que é viver entre palavras, palavras de outros, antigos, modernos, tantos. São textos recuperados, corrigidos, revistos, alguns inéditos, tanta coisa sobre Teatro, pois é, foi uma vida.”

Jorge Silva Melo

*Apresentação do livro no dia 7 de Março, no Teatro da Politécnica.

sábado, 2 de março de 2019

O meio literal português

Nem cá nem lá,
no meio literal português cada um ocupa
o seu lugar, a meio caminho entre aquele que
a providência lhe destinou e aquele a que
o alpinismo de planos rasos o fez ascender.
Os romancistas revolvem-se em trezentas páginas,
no pânico de corpos enterrados vivos em caixões de papel,
e os poetas empregam-se
em produzir mais versos do que os minutos todos
de todos os leitores.
Os críticos esbracejam, nem contra nem pelo contrário,
nunca há pedra que a boca não engula.
E uns e outros, ofendidos como putas pudicas,
curvados
pela constatação que ninguém os lê,
convertem-se ao cinismo
de quem já leu tudo o que não quis ler.
Falar alto, intimidar de copo na mão,
em provocações e poses de taberna, continua a ser
a melhor forma de ocupar o espaço.
O pântano reproduz-se e as pegadas, come-as a lama.

Madalena Castro Campos, in "A Gun in the Garland ", Companhia das Ilhas, 2019.