segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Missiva à laia de 31 pelo Janeiro Alves em Moimenta da Beira

 Ilustre Doutor Mara,
Ou muito me engano, ou esta carta com vista para dois mil e vinte encontrará um Doutor Mara ainda inebriado pela quadra natalícia, envergando a sua habitual camisola de lã com renas e o respectivo gorro vermelho com pompom, e cantando aqui e ali pequenos trechos do Gingle Bells. Ainda esta semana obtive a informação de que fulano o viu assim numa casa de pasto insular, tendo-me contactado logo de seguida. Disse-lhe telefonicamente, e depois de um longo bocejo, que de nada de preocupante se tratava, e que era apenas uma forma de o Doutor Mara chamar a atenção. 
Registado este pequeno apontamento, e porque hoje é o último dia do ano, escrevo-lhe de Moimenta da Beira, localidade pitoresca do interior do país. Foi aqui que muita da história de Portugal aconteceu,  e que o gasóleo da auto-caravana acabou. Acabei por vendê-la a um estrangeiro, para pagar dívidas de mercearia. Estou hospedado na estalagem central, preparando-me já para a grande noite de Reveillon. Para além do habitual caldo verde e das passas, a estalagem apresenta mais logo um espectáculo de música ao vivo com o incontornável Tó Organista. Como se deve recordar, conheci o Tó Organista numa feira de gado há uns anos atrás e ficámos muito amigos. Espero que ele ainda se lembre de mim, pois é certo que me convidará para subir ao palco e cantar um ou dois temas. Pelo sim pelo não já comecei a beber Macieira, que como o próprio nome indica, amacia a voz.
Assim, e apesar de não me ter convidado, não me vai ser possível passar o Reveillon deste ano consigo, com muita pena sua. Mas a vida é assim. Como dizem os franceses, “parfois ensemble pour le Reveillon, parfois non…”. Acabo esta carta com uma boa notícia para si. Lembra-se daqueles cem euros que lhe emprestei há uns anos atrás para o Doutor Mara fazer face àquela situação constrangedora que por zelo não nomearei nesta carta? Para além de não lhe pedir qualquer juro, ainda lhe reduzo a dívida para oitenta euros. No envelope encontrará um pequeno papel com o meu nib, e rapidamente o assunto ficará esquecido para sempre.
Despeço-me com um olhar fascinado e comovido sobre dois mil e vinte e a promessa de voltar em Fevereiro com todo o fulgor que a química moderna me permitir, desejando ao meu amigo um novo ano melhor do que o presente, que já não foi mau, mas que poderia ter sido melhor, como aliás todos os anos acontece, à excepção de alguns onde se verifica precisamente o contrário. 

Cumprimentos reveillonistas,
Janeiro Alves

"A Construção Moderna" (1900-1919)

          "A história e a colecção completa desta revista que durou 542 números, publicados ao ritmo quinzenal, e depois trimestral, até Julho de 1919, estão agora no portal de "Revistas de Ideias e Cultura (RIC), à atenção dos historiadores, investigadores e demiais interessado na arquitectura portuguesa do início do século XX."
Sérgio C. Andrade, in Jornal Público, 26 de Novembro de 2019.

sábado, 21 de dezembro de 2019

Sem Mar

Dizes-me:
nunca há mar nos teus poemas

Pois não. O mar que conheço é baço
e o que nunca vi é estranho
insondável como poço, afoga-nos num lento abraço

Dizes-me depois:
nunca há mar, mas há aldeias

Pois há. E há mulheres, há sempre mulheres.
Umas a chegar, outras a partir.
Gosto de encontros, gosto de despedidas - Há sempre mulheres,
                                                                     (algumas despidas
Não me atrai as ondas 
o modo magnético de nos prenderem o olhar.
Prefiro-o à solta pelas aldeias 
é que tudo que há nelas me dá ideias
mesmo um triste poço, mesmo um monte baço

João Habitualmente, in "Um dia tudo isto e será meu (uma antologia)", Porto Editora, 2019. 

sábado, 14 de dezembro de 2019

O Olhar de Uma Inatingível Ternura

Desenho de Daniel Lopes 

Busto e Costas

Sei que gostas
de vestidos sem costas

e de grandes decotes nas blusas
sei que os vestes e usas 
Toda essa conspiração 
de tecidos que te despem
se destina à minha derrota:
vergas-me ao teu busto ardente
aniquilado pelo decote que te rasga o peito

Sei que gostas 
de blusas sem ombros
e de vestidos sem costas

sei que os vestes e mostras

e sei que usas 
finas rendas que te desvendam o busto 
e me reduzem a escombros

si que te olho 
e me assusto:
gosto de ti

com vestidos sem costas 
gosto eu e sei que gostas 
mas gosto mormente de blusas sem alças 
e de vestidos sem frente

João Habitualmente, in "Um dia tudo isto será meu (uma antologia)", Porto Editora, 2019. 

segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

Missiva Natalícia para Janeiro Alves

Ilhas Atlânticas, dia 9 de Dezembro de 2019
Caro Janeiro Alves,

Reestabeleço contacto com o amigo Janeiro, nesta tarde outonal, na esperança de descobri-lo moço e ambicioso. Sim, é verdade, a sua última missiva tresandava a desencanto e abandono. Inesperado, para não dizer surreal, este retorno às raízes do amigo Janeiro. Soa a ranço, para não dizer nostálgico, este professar dum adeus à antiga capital do império para refugiar-se no pinhal rodeado de vegetais e salchichas. Isso só pode simbolizar rendição à gentrificação, melhor, cedência ao “modus operandi turisticus” a que muitos dos nossos concidadãos foram submetidos.
Aproveito, assim, para comunicar-lhe que me tornei economicamente viável, já que acabei de participar num encontro literário com a preleção “E Rimbaud…gostava de Ramboia?”, com a assistência a rejubilar com tamanha agudeza e assertividade, não podendo deixar de soltar uma lágrima aquando da ovação de pé durante cerca de onze minutos. Nesta minha magnífica palestra não me esqueci de exaltar a paciência dos editores e livreiros que, ainda assim, continuam a convidar-me para estar presente nestes eventos de grande gabarito.
Desta feita, volto a referir que as suas mais recentes missivas revelam um Janeiro Alves cada vez mais eremita e misantropo. Por isso, não sei se irei aceitar o seu convite já que tenho receio de me distrair com o que terão para dizer figurões e personagens como Victor Klaus, Alberto Ai, Andar Carrasco, Fausto, Giorgio Delle Mare ou, imagine, soube da presença, este Natal, do curassário, Nikos Falácia Cautela, que me afiançou estar ansioso por degustar as iguarias e néctares dos deuses da sua mesa natalícia. Desconfio que serão muitos os artistas presentes mas, confesso-lhe, que o Movimento Alarvista está perdido, descamba a toda hora com tanta opacidade e nulidade criativa. A colocação de ananases em telas douradas não é bastante para renovar a arte hodierna.
Assim, despeço-me, já que estou atrasado e os correios estão a abarrotar de gente neste período. Aguardo, por isso, novidades suas apenas em Fevereiro…ou será que terei alguma surpresa pelo caminho?
Com a estima mais do que devida,
Doutor Mara

Ece Canli na Galeria Brui

Concerto de Ece Canli na Galeria Brui,
(7 de Dezembro 2019)

(Fotografia de Carlos Olyveira)

Agenda Amor 2020

Agenda Amor 2020 (Agendas da Tipografia Michaelense)
Fotografia de Carlos Olyveira

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Cinema Trindade, Porto. (Até dia 11-16h00 e 18h00)


“Aqui salienta-se a estreia, esta semana, de “Hálito Azul” de Rodrigo Areias. O cineasta e produtor de Guimarães partiu para os Açores e centrou-se em Ribeira Quente, povoação do sudeste de São Miguel. Areias faz um retrato abrangente daquela aldeia piscatória, usando como mote, ou contraponto, “Os Pescadores”, de Raul Brandão, texto que está a ser encenado, de forma experimental, pelo professor da escola local, com habitantes da aldeia. O filme destaca-se, em primeiro lugar, pela magnífica qualidade fotográfica, a cargo de Jorge Quintela, um dos mais talentosos diretores de fotografia da nova geração. Há uma riqueza tonal e de enquadramentos, que inclui filmagens em alto-mar e até sub-aquáticas. Depois, vale pelo sentido de proximidade. O realizador consegue dar-nos uma sensação de intimidade com aquelas pessoas, mais própria da ficção, como se a conhecesse desde sempre. Por fim, há um lado transgressor, experimental, de fronteira do género, que resulta muito bem, sobretudo através da força da interpretação de Zeca Medeiros. Um belíssimo documentário.”
Manuel Halpern, Revista Visão, 28 de Novembro de 2019

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

Ladrões de Bicicletas

“Tinha curiosidade em saber o que fazem os ladrões, como passam os dias quando não estão a roubar. Passam-nos talvez a estudar, instruindo-se uns aos outros, entregando-se com paixão, com um zelo infinito, aos golpes que planeiam, interessando-se, nas tabernas, pelas proezas realizadas pelos seus parceiros, tendo ciúmes uns dos outros, como nós, os poetas, os artistas, que não fazemos outra coisa senão criticarmo-nos e atacarmo-nos uns aos outros, para grande divertimento – e para edificação – do público."
Luigi Bartolini, Ladri di Biciclete, in “De Bicicleta, Antologia de Textos, Relógio D´Água, 2019.

segunda-feira, 2 de dezembro de 2019