segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Mar

De todos os cantos do mundo
Amo com um amor mais forte e mais profundo
Aquela praia extasiada e nua

Onde me uni ao mar, ao vento e à lua.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 27 de janeiro de 2013

Marafilia


DM: Desculpe-nos a interrogação, mas passamos junto do seu gabinete e tinha lá escrito: “Aqui trabalha e vive Doutor Mara…fui para junto do mar!”. Passou-se alguma coisa de grave, algum imprevisto, alguma situação menos clara, caríssimo Doutor Mara?
Doutor Mara: Não creio. No entanto, aviso que não sou pessoa de deixar bilhetes falsos ou pregar falsas partidas, sem razão aparente. Vim para junto do mar, é um facto, como podem comprovar. Há três dias que não paro de dar mergulhos no mar. Estamos no Inverno é certo, mas se é para voltar ao mar como já ouvi pela boca das mais altas instâncias então que voltemos em força. Sem medos nem quebrantos.

DM: Neste seu acto Doutor Mara perscrutamos muito mais do que mergulhos, parecem-nos um gesto de protesto e de afirmação de uma identidade que pode ser perdida?
Doutor Mara: Estamos neste momento numa encruzilhada. É um pouco como aqueles momentos da vida em que decidimos se havemos de partir ou ficar sem deixar nada para trás. Às vezes também tenho uma visão idílica dos antigos habitantes desta terra e então imagino as ruas das cidades cheias de gente e orgulhosos da sua cultura do mar e do campo, encho-me de vaidade das profissões que valorizam as mãos, ouço-os cantar as canções antigas de trabalho e a vestir fatos lindos ao domingo, mas depois não tenho em mente de alguma vez termos sido felizes e pobres ao mesmo tempo. Meus amigos, uma redundante certeza eu já tenho da minha parte: eu nunca abandonei o mar, mas já deixei bolo-rei no prato.

DM: Inclusive soubemos de fonte segura que já mergulhou com tubarões recentemente, é verdade?
Doutor Mara: Não tenho feito outra coisa nesta vida, sabem disso. Gosto de os ver passar, analisar o seu comportamento e perceber que nos temos que afastar se não quisermos que uma parte de nós sucumba. É muito simpático analisar a forma como os tubarões pequenos gostam de agradar aos tubarões de grande porte, manifestando a sua dedicação em manobras e outras diversões, sendo muitos destes de uma lealdade que faz impressão. Sabemos que a sua condição de predador deixa pouca margem de manobra para afastar-se da costa mas seria bom tom que em conjunto pudéssemos encontrar reservas naturais só para este tipo de animais.  

DM: Doutor Mara, vemos alguma nostalgia ou saudade nas suas palavras, coisa que não é muito comum, não é verdade?
DM: Os últimos tempos têm sido profícuos quanto à discussão daquilo que Portugal e os portugueses poderiam ou não fazer. É bom termos ganho consciência de que o país é a soma de todos os seres individuais. A certeza de que seremos muito mais fortes juntos. As democracias são por vezes injustas com as minorias, quando as maiorias são de facto medíocres impedem que essa minoria possa ter um país melhor, de tentar alcançar um bem-estar colectivo. É difícil combater este dom sebastianismo de séculos, que se manifesta nesta aceitação de figuras providenciais e salvíficas. Não tarda nada estão a meter-nos a mão no bolso. Costuma-se dizer que temos aquilo que merecemos.

DM: O diagnóstico já foi feito há muito tempo e só nos impede de juntar forças e agir. Doutor Mara, Estaremos já num beco sem saída?
Doutor Mara: Sim, é verdade, foi uma espécie de aragem que que entrou e que parece demorar a sair, acontece sempre isto com gente com mais olhos do que bucho e uma necessidade maior de parecer do que ser naquilo que seria esperado. Não sabemos o que virá a seguir mas certamente já não voltaremos ao ponto de partida.

DM: Talvez agora nos possa responder ou explicar por que é que quando lhe perguntamos na entrada do novo ano o que desejaria para este ano mergulhou numa resposta inusitada, respondendo: “um barco e uma flor”. Alguma resposta na manga?
Doutor Mara: Sabem, por diversas vezes quis abandonar este país, por desalento, por ver que as coisas não funcionam como deviam funcionar, até por falta de oportunidades, ou por sonhos de outra vida imaginados noutros lugares, quase sempre associados a “paraísos” de silêncio e algum anonimato. O que é verdade é que, muito embora tenha vivido várias vezes no estrangeiro, nunca abandonei definitivamente este país. Nunca. A pergunta será: é o mar ou é este país que me custa abandonar?

DM: E se for o mar?
Doutor Mara: Se for o mar precisarei de um barco…posso sempre partir e regressar. Há sempre rota de partida e de regresso.  

DM: E a flor, Doutor Mara, diga-nos, o que é que isso significa?
Doutor Mara: A flor significa a esperança, e esperança no país, obviamente. A esperança de que um país é um lugar para se amar e cuidar…por isso precisamos que a flor germine. Para isso é necessário terra, água, semente e tempo. Quem está disposto a abrir o primeiro sulco no chão?
DM: Estamos em suspenso, Doutor Mara, estamos em suspenso. Muito gostaríamos de ter uma resposta para lhe dar.

sábado, 26 de janeiro de 2013

Portugal

Eu tenho vinte e dois anos e tu às vezes fazes-me sentir como se tivesse
oitocentos
Que culpa tive eu que D. Sebastião fosse combater os infiéis ao norte de
África
só porque não podia combater a doença que lhe atacava os órgãos genitais
e nunca mais voltasse
Quase chego a pensar que é tudo uma mentira
que o Infante D. Henrique foi uma invenção do Walt Disney
e o Nuno Álvares Pereira uma reles imitação do Príncipe Valente
Portugal
Não imaginas o tesão que sinto quando ouço o hino nacional
(que os meus egrégios avós me perdoem)
Ontem estive a jogar póker com o velho do Restelo
Anda na consulta externa do Júlio de Matos
Deram-lhe uns electro-choques e está a recuperar
àparte o facto de agora me tentar convencer que nos espera um futuro de
rosas
Portugal
Um dia fechei-me no Mosteiro dos Jerónimos a ver se contraía a febre do
Império
mas a única coisa que consegui apanhar foi um resfriado
Virei a Torre do Tombo do avesso sem lograr uma pérola que fosse
das rosas que Gil Eanes trouxe do Bojador
Portugal
Vou contar-te uma coisa que nunca contei a ninguém
Sabes
Estou loucamente apaixonado por ti
Pergunto a mim mesmo
Como me pude apaixonar por um velho decrépito e idiota como tu
mas que tem o coração doce ainda mais doce que os pastéis de Tentúgal
e o corpo cheio de pontos negros para poder espremer à minha vontade
Portugal estás a ouvir-me?
Eu nasci em mil novecentos e cinquenta e sete Salazar estava no poder nada
de ressentimentos
um dia bebi vinagre nada de ressentimentos
Portugal
Sabes de que cor são os meus olhos?
São castanhos como os da minha mãe
Portugal
gostava de te beijar muito apaixonadamente
na boca

Jorge Sousa Braga

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Ginecomagia

DM: Era um domingo como outro qualquer, sem absolutamente nada para contar, caso não tivéssemos sido surpreendidos por uma visão implacável: a presença do Doutor Mara num banco de jardim rodeado de material literário como é seu hábito, ainda que com algumas surpresas que, imediatamente, quisemos indagar.

DM: Doutor Mara, ao fim de algum tempo, afinal do que tem saudades?
Doutor Mara: Dos meus anos vividos em Estocolmo, na minha fria e amada Suécia. O anonimato na rua sabia-me bem. E, como era bom ir beber uma meia de leite ao café String, fica em Söderlmalm, sentar-me onde se sentava o Jan Johansson, imaginá-lo ali com as suas pautas retiradas da sua pasta preta com um desenho de uma clave de sol e ficar a ver os flocos de neve cair. Estava-se melhor no interior daquele café do que em algumas casas portuguesas. No Inverno, claro.

DM: Já viveu, portanto, em outros países?
DM: Sim, garantidamente, enquanto experiências existenciais de longo alcance, foram pelo menos quatro. O resto foram passagens e paisagens de circunstâncias. Sempre por razões afectivas e românticas, que talvez faça, um dia, o trabalho de descortinar tamanhos périplos efectuados, o que não é fácil.

DM: Doutor Mara, temos hoje para si uma pergunta complicada, pois corre nos tugúrios menos asseados da nossa cidade, rumores de uma hipotética homossexualidade da sua parte.
Doutor Mara: Nada contra, aceito os rumores e, obviamente, a homossexualidade. Houve tempos que, num programa de rádio denominado "Campos de Naftalina", li de forma caótica e irónica um conto intitulado de "O Nariz", pertencente ao escritor russo Nicolas Gógol, um conto extraordinário sobre alguém que acorda sem nariz. Felizmente para nós, o nariz é um produto tipicamente português e que bem poderia ajudar a estabilizar a nossa balança comercial, caso decidíssemos exportar o tamanho do nossos narizes de uma só vez para quem estivesse interessado nas suas respectivas compras e aquisições. O slogan podia ser: "Vende-se o meu nariz, vai do Pessegueiro até Paris". E, nestes dias em que vejo que o nariz tem inoportunas funções,  lembro-me sempre do Alexandre O´Neill, quando este um dia ironizou: "Não metas o nariz na vida dos outros, pois podes lá ficar". E, porventura, é verdade.

DM: Doutor Mara, mas…há alguma ponta de verdade no que se ventila por aí?
Doutor Mara: A cada um a sua ventilação, já dizia o filósofo das barbas brancas que os nossos irmãos espanhóis “espanholaram” com o nome de Carlos Marx. Seria plausível ou com uma boa ponta de verdade caso eu tivesse alguma relação com alguém do sexo masculino, o que não se verifica. De qualquer modo, não vejo que isso ainda possa ser apelidado de rumor. A sexualidade de cada um devia pertencer única e exclusivamente a cada um.

DM: O que seria de todo verdade caso o Doutor Mara fosse apenas um cidadão comum, o que não nos parece, dado o seu estatuto de personalidade pública, não é verdade?
Doutor Mara: Como eu vos compreendo, caros amigos. Estes meus velhos hábitos de anacoreta deram sempre origem a esse tipo de efabulações. Depois, creio que começo lentamente a tornar-me politicamente incómodo com os meus estudos e intervenções de longo alcance sociológico. Julgo ter uma reputação imaculada, mas nunca se sabe o que as más línguas serão capazes de inventar. A acreditar naquela máxima de que quando um escândalo desponta e se espalha há sempre um fundo de verdade, qualquer dia ainda me acusam do síndrome de sotaque estrangeiro. Não é assim?

DM: Compreendemos, Doutor Mara. No entanto, junto do seu banco do jardim, vemos que tem consigo uma revista Playboy. Sem querer invadir a sua privacidade, diga-nos, qual é a sua situação civil actualmente?
Doutor Mara: Mas isso interessa actualmente para alguma coisa?

DM: Pois, não é nossa intenção pretender fazer psicanálise, mas o que faz Doutor Mara com uma revista desse calibre?
Doutor Mara: Este material de fino recorte e curvas perfeitas, diga-se, deve ter sido deixado aqui por algum leitor furtivo. Paz à sua alma. Longe de mim a castidade, meus amigos, mas também não gostaria de passar a imagem de um pervertido sexual de domingo à tarde. É certo que não pretendem fazer psicanálise, nem relembrar os meus tempos de libertinagem na juventude mas confesso que, por vezes, me deixo surpreender pelas malhas eufóricas da erotização do real. A sociedade em que vivemos é profundamente erotizada e o desejo mecanizado. Posso afirmar que o sexo tornou-se de plástico e o amor é para românticos. Julgo que tem a ver com as máquinas que nos rodeiam, disparam conteúdos de cariz erótico sensual como as galinhas depositam ovos nos aviários.

DM: Agora que esperamos a Primavera, perdoe-nos, no entanto, o atrevimento. Como era o Doutor Mara nas Primaveras da sua juventude. Sentia, à semelhança dos seus contemporâneos, o seu corpo vibrar em comunhão com a natureza, em harmonia total, o tal desabrochar  dos tecidos?
Doutor Mara: Evidentemente que sim. Recordo-me de no tempo do liceu ter desenvolvido uma paixão platónica pela Professora Emília, que leccionava a disciplina de História. Lembro-me lhe ter dito no dia inicial da estação primaveril, semelhante introdução camoniana: “Transforma-se o amador na cousa amada/ Por virtude do muito imaginar/ Não tenho logo mais que desejar/ Pois em mim tenho a parte desejada.” Ela avisou o Director de Turma que eu não estava bem. Passei o verão a auxiliar um vizinho que era mecânico de barcos como castigo. Aprendi muito nesses dias de óleo, chave 24 e motores de quatro tempos. Acontece aos melhores.

DM: Soubemos que tem uma enorme admiração pelo universo feminino e que um dos seus sonhos era ser um insecto e poder um dia entrar numa casa de banho feminina ou num táxi só com mulheres, inclusive a taxista.
Doutor Mara: Não chegaria a tanto, não exageremos. É um facto que tenho muita, para não dizer uma total curiosidade sobre o universo feminino em local tão íntimo. Há qualquer coisa de erótico nessas reuniões alargadas. Desconfia-se que é uma conspiração de Eros e que faz com que todas elas se sintam, subitamente, objectos do desejo masculino. Aqueles pequenos gritos de prazer – se forem realmente  sinceros - de várias mulheres em locais desprovidos de homens são profundamente atraentes. Lembro-me de um realizador de cinema brasileiro, citando outro realizador, ter dito que os homens realizam acções em função de três objectivos: as palmas do público, o tilintar das moedas e o gemido das mulheres. Nem sempre por esta ordem de ideias, o que torna o homem muito objectivo na sua sedução. Não concordam?

DM: É possível, Doutor Mara, é possível.Quer contar-nos como se tornou Homem pela primeira vez?
Doutor Mara: Sim, foi inesquecível e trágico ao mesmo tempo. Foi num acampamento de jovens anti-militaristas com uma jovem esquerdista-libertária, filha de um ex-oficial do Ultramar. O pai apareceu pela manhã sem ninguém contar e abriu o fecho da tenda, obrigando-me a sair e a fazer quatrocentas flexões de uma assentada, a chamada GM (Ginástica Militar). Para mim, o acampamento anti-militarista terminou ali. Ela teve que trabalhar nesse verão e foi proibida de voltar a falar comigo, o que ela acedeu. Encontrei-a alguns anos mais tarde numa arruada de um partido da direita conservadora, com um cheiro a perfume de rosas e uma mala Channel. Questionou a minha relação com as drogas recreativas e desejou-me sucessos para minha vida futura. Virei costas, apertei os atilhos dos sapatos e fui comer umas iscas ao “Zé Manel dos Ossos”.

DM: Doutor Mara, sinceramente, acredita na fidelidade?
Doutor Mara: Tenho um velho amigo que após muitos anos a “olhar os lírios do campo” se dedicou à família e aos seus cinco filhos. Os resultados foram surpreendentes. Hoje consegue ser mais fiel que o Pluto, o seu cão de estimação. Um amigo da minha de infância passada junto do mar, recém-regressado da Islândia, onde fez o doutoramento em Espeleologia e Minerologia, confessou-me a este propósito que tudo vai bem desde que não se saiba. Ora bem, a fidelidade é um prato de duas bocas, como eu costumo dizer. Só come quem quer! Por isso prefiro a exaltação da lealdade, isto é, ser fiel a um compromisso, a uma verdade partilhada. Será que aceitam esta resposta?
DM: Claro que sim, Doutor Mara. Foi mais uma vez um enorme prazer falar consigo. 

PANAZOREAN na Ilha Terceira

“Die Fremde” de Feo Aladag.

           Duas noites de cinema dedicado ao diálogo intercultural no Centro Cultural de Congressos de Angra do Heroísmo numa extensão do Festival Panazorean, evento com sede em São Miguel, e que se realizou durante mês de Abril do ano passado em Ponta Delgada. Belíssima e arrojada iniciativa pautada pela exibição na terça-feira, dia 22, pelos filmes “50 Pesos Argentinos”, “Down in Egyptland” de Lukas Zund e “Mazagão, a Água que Volta” de Ricardo Leite e, na noite de quarta-feira, dia 23, pela exibição dos filmes “PDL- LIS" de Diogo Lima e “Die Fremde” de Feo Aladag.
      As sessões sempre bem compostas de público e com os filmes a surpreenderem pela positiva.“50 Pesos Argentinos”, prémio do público, melhor filme regional, é um interessante exercício sobre os açorianos que partiram em busca do “el dorado” em terras argentinas e sobre aqueles que no arquipélago permaneceram à míngua das suas expectativas e anseios por não terem partido. “Down in Egyptland, prémio RTP2/Onda Curta, é um objecto cinematográfico bem conduzido, com uma excelente fotografia e uma ainda melhor banda sonora, precisava somente de melhores soluções narrativas. Quanto “Mazagão, a Água que Volta” estamos perante um trabalho arrojado, valoroso enquanto documento mas algo extenso e a necessitar rever alguma consistência nos conteúdos apresentados. Na segunda noite, a atenção recaiu no filme “Die Fremde”, prémio melhor filme internacional, e que é uma auspiciosa e entusiasmante primeira obra de Feo Aladag. O filme gira em volta de Umay, uma jovem turco-alemã que fugindo de um casamento infeliz em Instambul, parte para Berlim onde os seus pais residem, procurando aí a sua emancipação. Tudo seria perfeito caso não existisse esse código de honra tradicional que faz com que “Umay” seja também ela uma estrangeira para os valores da sua própria família. O filme é magistralmente acompanhado pelo piano de Max Richter e as composições de Stéphane Moucha. Os últimos cinco minutos do filme são deveras comoventes e reveladores do melhor que ainda está para vir desta cineasta austríaca. 
            Uma última nota apenas para referir que as sessões eram gratuitas e que no início das mesmas foi  oferecido o livro “Diagnóstico da população Imigrante no Concelho de Ponta Delgada-Desafios e Potencialidades para o Desenvolvimento Local” da organização AIPA- Associação dos Imigrantes dos Açores. Parabéns e votos renovados de estímulo e incentivo mais do que merecidos aos organizadores desta iniciativa de enorme valor.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

Just one more gig!


     Desconfia-se que o conhecimento da existência dos Durutti Column possa ter sido adquirido após uma leitura do Blitz nos idos anos oitenta. Porventura, no meio da enxurrada dos Joy Divison, The Gist, Young Marble Giants, The Clash, U2 ou os The Smiths e, ainda de uma catrefada de bandas ouvidas na altura até à  exaustão, julgo ter chegado à guitarra maravilhosa e ondulante da banda do fantástico magriço Vini Reilly e aos seus Durrutti Column.  
    Chegam, entretanto, notícias que o próprio Vini Reilly passa no actual momento uma situação de fragilidade física – três derrames cerebrais – que motivaram uma enorme fragilidade financeira, acrescida à inoperância do sistema de segurança social inglês que demorou dezoito meses a prestar apoio à sua doença. Um periodo de tempo quase idêntico à aparição dos discos nos escaparates que se faziam por esse mundo fora nos idos anos oitenta. O que vale é que uma onda de solidariedade ajudou o músico a suportar as despesas, sendo que este já veio agradecer e propor-se a retribuir a ajuda com material sonoro da sua autoria. Humilde e honesto, como o dedilhar da sua guitarra.
Capa do disco "Amigos em Portugal"
    Sei que não abona nada a meu favor nunca ter assistido a nenhum concerto dos Joy Divison, U2, Echo and Bunnymen, ou osThe Smiths, bandas que circulavam abundantemente em cassetes pelos diferentes aparelhos sonoros anos a fio, mas a verdade é que raramente falhei aos concertos dos Durruti Collumn nas suas aparições em Portugal. E, como é viva e intensa, a memória vivida desses concertos. No final, ficava à espera pela sua saída para estender-lhe os bilhetes para ele autografar bem como cheguei a dar-lhe as páginas do livro “Escrítica Pop”, onde o Miguel Esteves Cardoso assinava as crónicas de puro deleite e encantamento sobre o grupo de Manchester. Ele sempre com a maior das delicadezas e bonomia agradecia, com humildade despedia-se, prometendo voltar. Lembro-me da imagem de Vini Reilly ser sempre de uma enorme fragilidade física e delicadeza, sobretudo na forma como dedilhava a sua guitarra e se posicionava no palco. A suportá-lo naquele cenário via sempre um homem bojudo e sorridente, como era o caso do baterista Bruce Mitchel. No final de um concerto subi o palco e, enquanto ele recolhia os cabos das suas guitarras, disse-lhe que o Robert Fripp tinha afirmado ser ele o melhor guitarrista do mundo. Ele, na plenitude da sua humildade, disse-me: “Fripp is crazy!”. Outra vez, num festival em Torre de Moncorvo, o Carviçais Rock, desejei-lhe boa sorte para o concerto, com o que ele ripostou com um sorridente;“It´s jus one gig”. A economia de palavras era uma particularidade sua, bastava para isso assistir aos seus temas cantados na sua voz comedida e frágil, ao longo de mais de trinta discos editados. Num dos seus últimos concertos no Coliseu do Porto, a que curiosamente não pude assistir, pedi para que lhe entregassem uma colecção de postais bem como o nosso livro - “Construções na Areia”. Não sei se alguém fez chegar esse material em jeito de presente e que pretendia ser um agradecimento pelas três décadas de músicas que nos ofereceu e que nos tem acompanhado. E talvez, por instantes, só me  apetece gritar: “It´s just one more gig!”

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

O Homem dos Cabelos Compridos

Ilustração de Pedro Valim

Quem é aquele velho ali sentado com cabelos compridos e roupa que mais parecem trapos? Interrogou-se a minha colega de profissão que adora passar horas que junto do computador a elaborar grelhas e gráficos. Uma profissional das estatísticas, sem qualquer dúvida, acredito. Comecei entretanto a discorrer sobre o homem com respeito e admiração o que lhe parecia estranho. Disse-lhe que o homem era uma mente livre e profundo de liberdade, apesar do seu ar pobre, solitário e de anacoreta. Contei-lhe que homens daqueles invulgarmente encontram cabimento nestas sociedades da produção e do consumo. A minha colega ouvia e ria como uma criança para toda a esplanada ouvir, exclamando que tudo o que eu dizia não passava de tontices da cartilha esquerdista aprendida na adolescência, que eu era profundamente romântico na minha visão de homens daquela estirpe. Acrescentei que o homem dos cabelos compridos era um escritor de qual eu tinha lido alguns poemas, um verdadeiro outsider, um daqueles puros que amavam a vida ao ar livre, gostava de ir aos estádio ver jogos de futebol e que não podia deixar de viver junto dos outros através de conversas que vai tendo com os vizinhos, com a leitura de muitos livros e de jornais. E, mesmo assim, ela continuava impassível, metida consigo e disposta a passar para mim o seu ar blasé, mantendo o ar jocoso, interrogativo sobre como eu era capaz de encontrar referência e admiração em personalidades assim. Assim como? Referi mais uma vez que aquele homem era para mim um Fernando Pessoa do nosso tempo, desconfiando apenas que ele fosse casto, dado que o tinha avistado com duas mulheres feitas, ao qual nunca saberei se seriam mãe e filha, ainda que estas se tratassem de forma terna e afectuosa. Não sei. Pagámos a conta e cada um foi à sua vida.

domingo, 20 de janeiro de 2013

Memóriacracia


DM: Foi numa manhã solarenga e de céu cor azul anilina que, ao contrário do passeio prometido de sábado, decidimos rumar à biblioteca pública. Foi lá, no entanto, que encontramos o Doutor Mara, sentado numa cadeira oitocentista e debruçado sobre uma mesa de madeira, de árvore criptoméria, por sinal, com folhas brancas espalhadas por tudo o que era sítio. Espantoso, Doutor Mara, é, sem qualquer dúvida, a primeira vez que o vimos por cá, não é assim?
Doutor Mara: Bom, vocês sabem que eu sou um frequentador diário de bibliotecas públicas. Não consigo perceber essa admiração, sinceramente. No entanto, é verdade, meus caros amigos, concedo-vos algum crédito nessa informação. Nos últimos cinco anos, devo ter permanecido nesta sala uma mão cheia de vezes. O gabinete que ostento e o volume de trabalho que possuo não me permitem ficar por aqui mais do que os habituais cinco minutos diários. Porque hoje é sábado, posso dar-me a este luxo contemporâneo, evidentemente.

DM: É uma pena, Doutor Mara, não podermos contar com a sua presença muitas mais vezes…
Doutor Mara: É um facto, com muita tristeza e pena minha. Durante os últimos anos requisitei e devolvi centenas, para não dizer milhares de livros. E assim saudava parcimoniosamente as senhoras bibliotecárias, tropeçava no degrau da entrada e punha-me na alheta. Às vezes, é certo, lá ia dando uma escapadela para ler o jornal da minha terra, uma piscadela aos diários desportivos ou então fui espreitando as capas das revistas cor-de-rosa. Por vezes, fiz também uma pequena pausa para ler o meu horóscopo. Quem sabe um dia destes ainda acertam!?!

DM: Desconfia-se que deve ter muitas histórias da sua juventude em bibliotecas. Umas mais divertidas que outras, certamente, não é verdade?
Doutor Mara: Sem dúvida, meus caros. Comecei por vir para este depósito de narrativas muito antes das novas tecnologias terem invadido estes espaços de leitura funda. Lembro-me de um período da vida – muito jovem, claro! - em que tinha ouvido falar nos textos visionários e fecundantes de Plutarco. E, estava, por isso, inquieto por lê-lo. Foi quando decidi entrar na biblioteca nacional e pedi para consultar este literato romano do período clássico. Levaram-me para uma sala repleta de algum livros cheios de pó e de caruncho. Foi o tempo suficiente para que duas pessoas me trouxessem um livro escrito em latim, tal era o peso e o tamanho do livro. Recordo-me que ali fiquei a olhar para o livro umas boas duas horas sem saber o que fazer. Como não percebia nada do que lá estava escrito, agradeci a experiência de carácter místico-espiritual e vim-me embora. Outra vez, no interior do país, em que uma biblioteca local abria aos sábados de tarde, fui surpreendido com um estalo de uma criança de oito anos. Esta disse-me, estarrecida, que eu não podia ler o livro que ela tinha lido na semana anterior. Um absurdo, evidentemente. Chamei o funcionário e pedi o livro de reclamações. Recentemente, há cerca de menos de duas horas atrás, fomos surpreendidos com o grito de um bibliotecário que obrigou o leitor do livro "Peito Grande, Ancas Largas", de Mo Yan (o mais recente Nobel da Literatura) a interromper a sua leitura para este retirar a bicicleta que estava encostada à parede do edifício de utilidade pública.

DM: Soubemos que obteve um convite dos “amigos do livro e da biblioteca” para lançar um livro de memórias. Não sabíamos é que irá fazê-lo muito em breve. Confirma-se assim a brevidade e urgência deste seu acto?
Doutor Mara: Tenho um enorme e imaculado respeito por estes lugares de silêncio e respeito pelos livros, como poderão imaginar. Na realidade, não pude recusar a gentileza do convite efectuado bem como meu passado civil ligado à bibliofilia. Por outro lado, tenho uma dívida enorme para com as bibliotecas que nem o dinheiro do FMI conseguiria pagar. No entanto, quero-vos dizer que não será bem um livro de memórias mas sim um acto provocatório com que brindarei os amigos do livro e da biblioteca. Esta ideia surgiu-me há dias em conversa com um amigo músico, excelente músico, aliás, que nos abandonou para ir viver para o Lago di Como, em Itália. Se quiserem, conto-vos de memória essa rica história, caso queiram ouvir.

DM: Conte-nos, Doutor Mara, estamos ansiosos por saber tudo sobre este livro seu novo livro…
Doutor Mara: Então foi assim… há dois anos um grupo de estudantes questionou esse meu amigo músico como tinha sido a sua adolescência musical, ao que este respondeu que tinha sido um pouco alternativa pois ouvia muita música clássica e, que, então, tinha perdido o comboio do pop, do rock e do punk que se ouvia na altura, apanhando os restos do chão, alguns anos mais tarde. A mim sucedeu-me exactamente o contrário, pois só agora redescubro o prazer e a intensidade da música clássica, relegando para segundo plano o pop, o rock e até mesmo o punk. No entanto, há alguns dias atrás, num barracão de madeira, descobri através de um grupo punk uma enorme empatia não só pela música que estes tocavam, como adquiri uma sensibilidade especial com a espécie animal, neste caso os toiros, numa das suas canções. A partir daquele momento, nunca mais consegui assistir a touradas ou às célebres marradas que se podem comprar ou  assistir em profusão pelos diferentes estabelecimentos comerciais. Quando vejo a dor e a aflição de quem apanha com uma marrada de um toiro bravo à solta, faço o exercício de chamar à memória a história da “Branca de Neve e os sete Anões”. É uma forma de eu me reconciliar com o presente e travar o meu passado activista de político e militante. Foi assim que cheguei ao livro que pretendo apresentar...

DM: Daí alguém ter dito à “boca pequena” que este seu livro se intitularia “Branca de Neve”, o que seria um plágio do título do livro de Robert Walser? 
Doutor Mara: Pois, deve ter sido o rumor que correu pelos estaminés etílicos da cidade. No entanto, para vossa informação, já existia também o filme português do João César Monteiro com esse nome. Um filme lunar, diga-se. Ouvi, enquanto bom ouvinte, umas dez vezes esse maravilhoso filme radiofónico. Por outro lado, a editora corria o risco dos adultos comprarem o livro para oferecer às crianças no próximo Natal, o que não seria mau de todo. Para a editora, claro.

DM: Sendo assim, será que agora já nos pode revelar o título, ou ainda está no segredo dos deuses? 
Doutor Mara: Eu preferia, sinceramente, que tivessem sido as deusas a guardar segredo, dada a pureza deste meu acto. É um título correspondente ao formato e páginas a apresentar: “Branco e Tão Leve”. É um livro sob o signo do branco, com o título gravado em iões de prata para que tenha algum valor comercial adquiri-lo.

DM: Há quem fale de trezentas páginas de absoluta leitura voraz, sôfrega e entrega intensa ao acto primordial de ler. Há também quem diga que é um simples livro de intriga e maledicência e há outros ainda que dizem tratar-se mesmo de uma jogada de marketing moderno. De uma vez por todas, Doutor Mara, só a verdade importa nos tempos que correm...de que trata verdadeiramente o seu opúsculo?
Doutor Mara: Posso garantir-vos que este livro é uma súmula de páginas de memórias que ainda não existem, por assim dizer. Um livro de memórias falhado, evidentemente, pois ainda não tenho experiência (s) de vida nem resenha biográfica digna desse nome. E que, por isso, não tenho lá nada escrito. Páginas em branco sem uma única palavra. Uma homenagem rápida e eficaz às minhas memórias presentes e futuras que estão por escrever. Quero-vos dizer, entretanto, que era o que mais faltava, agora ao fim de meio século de existência, desatar a escrever livralhada memorial. Creio que não tardaria a que me passassem a tratar por “Senhor Doutor Mara” ou então a fazer a pergunta de ocasião nos programas vespertinos de televisão: “Por favor, reverendíssimo Doutor Mara, para quando o segundo tomo das suas memórias?”. Acreditem, neste momento, era o pior que me podia acontecer, dedicar-me a destilar palavras por metro quadrado e a encher as livrarias com a minha verborreia narcísica e sentimental dos tempos antigos e dos dias passados. Poupem-me, por favor.

DM: Isso é inédito, Doutor Mara, com esta ninguém contava, é um facto. Ninguém conseguirá prever a reacção do mundo editorial português bem como os comentários da sua crítica aquando da publicação deste seu novo livro.
Doutor Mara: Por favor, não exagerem! Será uma pequena coisa para amigos, sem grande alarido. Eu sei que aproveitarão para tornar esta obra numa “besta célere” mas todas estas coisas me escapam, estão fora do meu controle, como sabem. A partir de uma certa idade e de um certo reconhecimento público, é necessário alguma paciência e alguma tolerância face aos gorgulhos do espectáculo de toda esta sociedade.

DM: E para quando é que está previsto o dia do seu lançamento?
Doutor Mara: Não há data marcada, nem consigo saber exactamente quando é que este livro estará pronto, depende da disponibilidade tipográfica. De qualquer modo, desconfio que vocês serão avisados com o respectivo convite. Um convite branco e em branco, como não podia deixar de ser.

DM: Muito obrigado, doutor Mara, pela sua memorável atenção para connosco. 

sexta-feira, 18 de janeiro de 2013

Amanhã...




All I wanted was your time
All you ever gave me was tomorrow
All I wanted was your time
All you ever gave me was tomorrow





Tomorrow, álbum Circuses and Bread, The Durutti Column


quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

Atlântida


Atlântida-Revista de Cultura

    A Atlântida é uma revista anual que é publicada pelo IAC (Instituto Açoriano de Cultura) e com uma tiragem de mil exemplares e 220 páginas. Com uma fotografia de Mário Pereira da Silva na apresentação da revista, está já disponível ao público a edição de 2012, vol. LVII, com o preço de capa de vinte euros. A direcção da revista pertence a Paulo Raimundo, sendo o grafismo e a paginação da autoria de Angelina Caixeiro e José Augusto Guerra. Nas páginas iniciais da revista, que é organizada segundo quatro secções temáticas, a secção “Estudos e criação artística” abre com uma colecção de fotografias de Mário Pereira da Silva referente ao sismo de 1 de Janeiro de 1980, imagens da tragédia que que se abateu sobre a Ilha Terceira nessa altura. Segue-se o exemplo de Fernando Lanhas, nome maior e singular da história da arte portuguesa do século XX. O poeta terceirense, Vasco Pereira da Costa, é a figura de destaque da secção “Estudos e Criação Literária" bem como “A Minha Descoberta literária - Açorianidade” por J. Crys Crystello. Há também muitas páginas para as Ciências Humanas: “Índices do Cartório de Mitra de Angra”, por Filipe Pinheiro de Campos, um artigo sobre “Francisco Ferreira Drummond – Homem do Seu e Nosso Tempo”, por António Neves Leal, “Condições do atraso do Povo Português – nos últimos dois séculos”, por Miguel Soares de Albergaria. Na secção “Outros Saberes”, é possível ainda ler “Extinções, Evolução e o Impacto de Homo Sapiens partir do ano 1000 A.D.”, por João Pedro Barreiros, “In Ilio Tempore – Benedicamus Dominum no Seminário de Angra na década de 50 a 60”, por Nuno A. Vieira, “A Fábrica de Braço de Prata em Lisboa”, por Nuno Nabais, e, por fim, “Ribeira dos Moinhos, A Ribeira que a Baixa de Angra Nunca Viu”, por Paulo J. Barcelos.
A revista “Atlântida” é, sem qualquer dúvida, um regalo para os olhos e para ler em dias de leitura funda e profunda, à semelhança do espanto do senhor que está sentado no banco do jardim perante a revista que tem diante de si e que ocupa a fotografia da última página desta edição.“Atlantizemos!”

quarta-feira, 16 de janeiro de 2013

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.


Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen

domingo, 13 de janeiro de 2013

Incomoda não haver...

Uma das capas do disco

Amigos terceirenses mostram-me a curiosa capa do disco "O Cantar Na M´ Incomoda" - disco de 1998, estranhamente esgotado! Extraordinário trabalho de Carlos Medeiros que há dois anos conheci na "sede" do Boletim Cultural Fazendo(https://issuu.com/fazendofazendo), na Ilha do Faial. Há músicas que não se cansam de ser escutadas, como são as canções florentinas: "O Marujo", "Santiana" e "Rema", esta última tocada vezes sem conta pelo José Serpa no verão passado, em plena Fajã Grande, na Ilha das Flores, com a sua guitarra portuguesa. Músicas maravilhosas, como bem sabemos! E assim chegamos, contemporaneamente, ao Pedro Lucas e aos dois trabalhos do "O Experimentar na M´Incomoda", CD´s que homenageiam o trabalho do Carlos Medeiros e do José da Lata, mas que também não se encontram aqui à venda ou disponível ao público em nenhum local. Quando saiu recentemente o "2: Sagrado e o Profano", disco agraciado com as melhores críticas na imprensa continental - "Público" e "Expresso",  pensou-se que finalmente o(s) disco(s) se estenderiam às mais diferentes ilhas açorianas, o que não se veio a verificar. Por outro lado, continua a ser uma surpresa o silêncio da imprensa terceirense, omitindo até ao momento a existência do disco, não mencionando ou fazer qualquer referência a este trabalho. Gosto muito dos trabalhos e da voz do Carlos Medeiros, dos discos do Zeca Medeiros, da reinvenção do Pedro Lucas, mas à semelhança do Museu das Flores que fechou no mês de Agosto de passado, continuarei sem perceber por que é que os discos destes músicos não estão disponíveis em todas as ilhas em qualquer instituição pública açoriana. Os Açores são ilhas de bons e conceituados músicos - dizem que muito disso se deve às Filarmónicas -  mas continua, no entanto, a faltar qualquer coisa para uma distribuição efectiva dos autores açorianos. Qualquer forasteiro que aqui chegue devia poder encontrar mais qualquer coisa do que o folclore tradicional. 


sábado, 12 de janeiro de 2013

Óciologia


DM: Caro Doutor Mara,  boa tarde, sabemos que se encontra a preparar mais uma conferência de grande envergadura, certamente em mais um tema fracturante para a sociedade portuguesa. Será que nos pode levantar o véu daquilo que iremos ouvir muito em breve e que é motivo da sua total entrega, dispêndio de tempo e de energia?
Doutor Mara:  Sim, posso, sem qualquer problema. Não há aqui qualquer segredo, permitam-me que  vos diga, pois  ultimamente tenho tentado perceber como funciona o ócio na sociedade portuguesa e demais. A Conferência versa a inacção, isto é, o que é isso de ser improdutivo numa sociedade e num planeta que  já vimos  produzir de forma explosiva e excedentária e que caminha rapidamente para a sua extinção. No entanto, apesar da elevada produção, consumo, desperdício e extinção dos seus recursos naturais, reparem bem na quantidade de gente desempregada que estas sociedades geram e a angustia de todos aqueles que não encontram trabalho e consequentemente dinheiro para suprir as suas necessidades básicas do dia-dia. Com estas máquinas e toda a panóplia tecnológica existente, o "exército" da produção necessita  cada vez menos de "soldados". Há, portanto, perguntas que têm que ser feitas: O que fazer com o tempo livre que aí vem? O que fazer nas horas de ócio? Será que estão a pensar taxar a preguiça? O que pensam fazer com tanta gente que não possui dinheiro para comprar o ócio que lhes oferecem?
DM: Certo, Doutor Mara, compreendemos. Mesmo assim o que será do mundo e das nossas sociedades se não houver gente que produza e coloque alface fresca pela manhã no mercado municipal? 
Doutor Mara: Percebo a vossa inquietação, mas o meu estudo e, neste caso esta minha prelecção, vai irreversivelmente noutro sentido, pois interessa-me sobretudo estudar o lado ocioso, o "dolce fare niente" contemporâneo, o sector mesmo improdutivo das nossas sociedades. Interessa-me essencialmente esta gente que passa os dias recluso nas suas casas e quartos ou ainda parados nas praças e nos mercados sem nada para fazer, ainda que muitos deles com imensas histórias para contar. A conclusão a que eu chego é que a nossa sociedade já não sabe viver com o tempo livre que dispõe. É muito curiosa a expressão "tempo livre", não é? Tenho, por assim dizer, uma imensa ternura pelos vadios, boémios, marialvas, estoura-vergas, valdevinos e, demais criaturas e seres improdutivos que, sem prejudicar ou extorquir o próximo, conseguem encontrar o seu espaço nesta sociedade do deve e haver. Penso ainda assim que é preciso muito, mas mesmo muita imaginação para conseguir sobreviver, ainda que com alguns trocos, evidentemente.

DM: Curioso o que nos acaba de dizer, Doutor Mara. Será que podemos considerá-lo um defensor acérrimo do ócio criativo?
Doutor Mara: Eu gostaria mas nem sempre consigo tornar o meu próprio ócio criativo, o mesmo penso que  acontece  convosco, não é assim? Deixe que vos conte uma história: tenho um amigo que, em plena adolescência, a sua casa de banho mais parecia uma biblioteca pública, ainda que a maioria dos livros  fosse da Walt Disney e afins. Os pais pensavam que ele iria tornar-se um brilhante leitor e, posteriormente, num excelente estudante. No entanto, ele em vez de ter ficado viciado no Tio Patinhas desenvolveu uma enorme empatia com o Zé Carioca, encerrando-se nesse universo de ócio e preguiça do qual nunca mais se libertou. Curioso, não é? Hoje é dono de uma livraria com livros em segunda mão, aquilo a que se chama um Alfarrabista. É perito em raridades bibliográficas, "monos" e livros de bolso. Abre às seis da tarde e fecha às oito da noite, dependendo da clientela. Nunca o vi a dizer um palavrão.  

DM: As pessoas quando têm férias ou tempo disponível costumam viajar para paraísos turísticos, sítios exóticos, quanto mais excêntricos, melhor. O que é que o Doutor Mara que estuda com afinco estes assuntos tem a dizer sobre isto?
Doutor Mara: Muito pouco, ou quase nada, evidentemente. Ainda que conheça um indivíduo que gosta de passar férias em zonas de guerra ou conflito armado eminente. Já vi fotografias deste em situações de guerra, junto de carros armadilhados e bombas a explodir ou em ambientes hostis, a ferver de adrenalina e intensidade. Vi-o, inclusive, na selva da Rodésia a fugir de um leão faminto, tendo sido salvo pela trompa de um elefante que o ajudou a subir um muro. Há gostos para tudo, creio que nestes casos, é ter algo para contar e sair de um aborrecimento contínuo para uma ou duas semanas de aventura. Tudo isto talvez sejam consequências de uma sociedade impreparada para o verdadeiro ócio...para o usufruir verdadeiramente de um tempo livre em que os indivíduos é que devem ter a última palavra a dizer! Normalmente vão atrás da primeira frase que lhes dizem: o hotel em frente ao mar, a temperatura da água e as águas cristalinas, o gelado de seis sabores. A maior parte das vezes, aborrecem-se e apanham o avião de volta. Nada a fazer.   

DM: Conte-nos, Doutor Mara, como é que costuma ocupar os seus tempos livres?
Doutor Mara: Faço aquilo que o comum dos mortais normalmente faz: corto as unhas, lavo os dentes, dou um passeio pela cidade ou à beira-mar, escrevo cartas em folhas de papel branco, componho canções de inverno e veraneio, vagueio com livros pelos cafés da cidade, planto erva-doce e rúcula, participo no mercado de trocas e, sobretudo, durmo de papo para o ar e de boca aberta. Normalmente, entra mosca.  

DM: Uma pergunta bastante pessoal pois soubemos que o seu plasma ainda se encontra dentro de uma caixa de papelão. Onde é que vê televisão: fora de casa ou na Internet ?
Doutor Mara: É muito, muito raro mesmo ver essa caixa que de facto mudou o nosso mundo. Neste período de chuvas fortes, peço à vizinhança, dado não conseguir ver televisão sozinho. Incomoda-me imenso a chuva a cair com as bátegas de chuva a bater nas vidraças e eu ali a ver televisão, como se não houvesse mais nada para fazer. Tenho a sorte dessa família ser bastante numerosa e ocorrer passarmos serões a discutir a programação dos diferentes canais. Por vezes, dão-se debates muito interessantes que ninguém quer deixar de mandar a sua bicada, como se costuma dizer. Há dias discutimos sobre o que é isso do serviço público de televisão. Dei-lhes o exemplo do desaparecido TV Rural...um programa sobre o mundo rural feito na altura para citadinos...tinha bastante audiência.

DM: O que significa a palavra trabalho para si? 
Doutor Mara: Será que é que aquilo que fazemos por prazer ou obrigação? Não sei.Ando há dezenas de anos a tentar perceber se o trabalho liberta...custa muito acreditar neste premissa. (Toca o telefone). Desculpem, é trabalho, estão a pedir-me serviços, sentido de missão e sapiência...vou ter que voltar ao meu estudo, peço imensa desculpa!

DM: Para terminar, uma pergunta um pouco absurda, mesmo assim não podemos deixar de a fazer: o que é que espera estar a fazer daqui a dez anos?
Doutor Mara: Nada. Absolutamente nada!

DM: Muito obrigado, Doutor Mara! Um bom serão para si e esperamos vê-lo entretanto!

Longe a Longe

Longe a longe  
ler a  última página do jornal
acenar aos primeiros veleiros da manhã
fazer cócegas no pescoço da memória
evidenciar o azul celeste do oceano 
erguer a janela com o raiar da aurora 
reconhecer os lábios vermelhos da juventude
longe a longe  
apertar os botões do casaco um a um  
bater no peito como no tambor da infância
avistar golfinhos à distância de um pulmão
verter lágrima e o berro cristalizado 
despertar do sono e da tempestade 
começar a andar descalço até ficar sem chão.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Os jornais, os jornais...


            Há hábitos que não mudam, perduram inexoravelmente  ao longo do tempo e há qualquer coisa na rotina destes hábitos que que só um viciado em informação e notícias compreende. É verdade que hoje há internet e computadores por todo o lado, há jornais online de todo o mundo disponíveis num abrir e fechar de olhos, mas há  também hábitos  antigos que são difíceis de abandonar. Difícil será assim desistir desse velho costume diário de sair de casa para adquirir um jornal ou lê-lo em algum café ou esplanada,  essa compra implica a procura do seu local de venda em determinado lugar da cidade, essa rotina repetitiva de que só uma grande paixão abarca, e que obriga ao movimento e exercício de um determinado ritual que permanece e vai resistindo ao longo de tanto tempo. Dessa deslocação até ao local de compra, guarda-se o gesto de receber o jornal ainda com a tinta pela manhã, a cumplicidade de  pagar a respectiva quantia ao vendedor, receber o troco e ser reconhecido como sendo leitor de um determinado veículo de opinião, ainda constatar a facilidade em reconhecer outros companheiros dessa aventura quotidiana ou semanal. Os dias são perfeitos até que um dia na esplanada ou no interior do café se detecte a ausência do suplemento que devia constar no interior do jornal…até parece que o dia fica, irremediavelmente, perdido! Houve tempos em que o "Independente" e as tardes de sexta-feira eram sinónimo de enorme curiosidade, alegria, liberdade e discussão no antigo café Diana Bar, hoje Biblioteca de Praia. Ali eram tardes inteiras a estudar e a ler os jornais e seus suplementos com a janela virada para o mar. Sim, o "Independente"  era a garantia de uma tarde de leitura animada e bem passada junto do mar em conversa com os amigos que iam chegando com novidades até à hora do jantar. Havia, entretanto, outros momentos, só que mais esporádicos e ocasionais  desse contacto com outros órgãos da imprensa escrita mais politizada, e que eram à altura, também eles, instigadores de tertúlia e conversa à volta das mesas. Havia a Politika, criação do Miguel Portas enquanto andou pelo PCP, o Combate, mensário do PSR (Partido Socialista Revolucionário) onde se lia a Eduarda Dionísio e o João Martins Pereira  e, um pouco mais tarde, a revista , onde se lia e debatiam as crónicas apaixonadas e apaixonantes do Paulo Varela Gomes. O Público é hoje o reservatório dessa resistência de um jornalismo lido fora de portas, muito devido aos seus jornalistas e às crónicas da Alexandra Lucas Coelho, Paulo Varela Gomes (outra vez!) e  o Rui Cardoso Martins. É ainda através deste jornal que ficamos a saber sobre os novos temas ao piano do João Paulo Esteves da Silva, bem como do seu último concerto no CCB, ou que a animação "Kali, o Pequeno Vampiro", de Regina Pessoa, é candidato aos Annies Awards.

Abstenção de Cinema

  "Ando cumprindo mal meus deveres de cronista. Não está certo, não, Vinicius de Moraes. O público te paga para escrever, e você , em vez, fica a andar de bicicleta com o Rubem Braga pelas praias do Leblon ou a roer a sua solidão nos bares de Capabana, ingerindo chopes, além de tudo uma coisa que não pode fazer bem à colite.  Você vai num mau caminho, rapaz. Você devia era entrar no cinema e ir ver Shirley Temple - mas como dói! Anteontem, passando em frente ao Rian, você teve mentalmente o seguinte comentário diante do cartaz: "Casei-me com um nazista".«Quem mandou...Nada disso está certo. Você é um rapaz de responsabilidade, com dois filhos, uma bela carreira na sua frente, talvez até com um ou mais um ou dois livros a escrever. Você devia acordar mais cedo, olhar a aurora nascer, encher os pulmões da salsa brisa atlântica, fazer uma hora de ginástica, tomar um banho frio e escrever um poema sobre a eugenia. Mas, não. Há uma semana que você não vai ao cinema. Olhe que você com essa sua abstenção pode ter feito mal a algum fiel leitor seu - esse desconhecido... que, por incauto, e sem a sua rija orientação cinematográfica, se deixasse seduzir  pela burrice dos cartazes, e...mais uma alma no inferno do cinema...
O médico em você se rebela contra essas surtidas dos monstros, Vinicius de Moraes. Ouve a voz que te conclama ao sereno e imparcial  cumprimento do dever. Fecha os olhos, vai ao cinema. Ingere Shirley Temple e outras adolescências geniais como ingerias o teu óleo de rícino na infância, ministrado pela mão mussoliniana de tua tia. O público assim o quer. Deixa de hipocondrias. Sê cronista. Vence a sedução da máquina  e o canto da sereia de Rubem Braga. Atira-te à confecção de jóias de bom gosto cinematográfico, pipocando em conceitos do mais alto interesse artístico, e larga essa mania de querer andar sem mãos e quem sabe  - ó sonho! - de costas para a frente, na bicicleta. Ainda domingo passado pagaste quarenta cruzeiros ao garajista. Está louco, rapaz, com o quilo de carne a três cruzeiros e sessenta centavos?
      Não está certo, não, Vinicius de Moraes. É preciso comer cenouras, tomar pelo menos meio litro de leite por dia - e não uma uma bagaceirinha ou outra, está ouvindo? - ir ao cinema e depois meditar uma boa crónica ante um chá  com waffle and mapple numa das cadeiras da Americana, entre senhoras abastadas - e não chope, está ouvindo?, que é uma coisa que encharca o estômago e não nutre nada...(Mas, afinal de contas, esse negócio de cevada é ou não é batata?)"

Vinicius de Moraes, in Manhã, 23 de Fevereiro de 1943