sábado, 31 de dezembro de 2016

Uma Missiva de Janeiro Alves Mesmo no Cair do Pano

Caro Doutor Mara,

         Estava eu nos preparos para a passagem de ano, a abrir uma garrafa de Macieira reserva e a separar as passas para a meia noite, quando me bateram à porta para me entregarem a sua carta. Dei-me ao trabalho de a ler, apesar de me ter causado algum transtorno em plena preparação do fim de ano. E deixe-me que lhe diga - o Doutor Mara diverte-me. Mas falo de uma diversão constrangedora, num sorriso flácido que produzi com o canto da boca, ao mesmo tempo que revirava os olhos. A forma leviana como me insulta é de uma pobre, insípida e desprovida de qualidade literária. Chamou-me burguês, inchado, bonacheirão, insensato, o “maior”, doidivanas, artolas, e por fim linguista sensaborão. É caso  para perguntar “está aí alguém?”. Alô! acorde, Doutor Mara! Estamos no século vinte e um! É que se me quer importunar, pelo menos faça-o com classe!
         Enquanto não chega a meia noite, e pelo respeito que tenho por si (sobretudo pelo seu passado pois o seu presente é uma nuvem negra), envio-lhe algumas sugestões para que me possa insultar categoricamente em 2017 sem que eu tenha de o desprezar. Pois fique sabendo que eu sou um ser irascível! Há quem diga que sou a alma dos bórgias a penar, um excremento de animal na via pública pisado por uma dondoca da linha, sou o bicho de estimação de um rafeiro que me deixou no canil municipal, tenho a impotência da criação e o dom da malcriação, sou parasita social e atrasado mental. Sou mesmo um mentecapto profissional, salafrário velhaco e safardana. Sou um saloio pote de banhas e caixa de óculos, com boca de charroco e orelhas de abano. Não passo de um reles bebedolas, mas ao mesmo tempo copo de leite e menino da mamã. Eu sou a praga do século vinte e um a alastrar, um farsola macarongo e obnóxio. Enfim, um verme asqueroso, azeiteiro e lambe-botas. Percebeu?
         Espero que o ano de 2017 estanque de forma definitiva esta sua decadente caminhada para o abismo, e lhe devolva a glória dos anos cada vez mais distantes do seu fulgor de juventude. Espero que acorde para a vida, abrace o futuro, e pare de viver de recordações do passado. Também lhe assentaria bem uma vontade de trabalhar, e um corte definitivo com esse dolce fare niente alimentado por heranças e outras benesses familiares. Talvez assim, quem sabe, se tornasse efectivamente útil à sociedade (e não falo da sociedade nocturna que frequenta).

         Em espírito de missão na reparação intelectual da sua pessoa, e apesar de tudo com estima e consideração, desejo-lhe um bom Janeiro.

Janeiro Alves em Penedono, no 31 de Dezembro de 2016

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Das Pessoas

"Descobri que não se deve adiar uma palavra, um sorriso, um olhar, uma carícia. Como me doía não ter dito(...) tudo, não ter feito confissões extremas. Eu percebia, ali, que nós olhamos tão pouco as pessoas amadas."
Nelson Rodrigues

sábado, 24 de dezembro de 2016

Resposta a Janeiro Alves Poucochinho antes das Festas

Caro amigo Janeiro Alves,

Espero que já se encontre no seu retiro de Penedono, no nordeste do distrito de Viseu, essa incrível aldeia histórica onde passa tranquilamente e de forma solitária esta quadra natalícia.
Sinceramente e, perdoe-me a franqueza, mas deparei na sua última missiva tiques típicos de um burguês nada arrazoado, lamúrias correspondentes a um indivíduo todo inchado, bonacheirão e pouco sensato. Como é possível, meu caro amigo, proferir que lhe correu bem o ano!? Está a brincar? É necessário acalmar-se, amigo Janeiro, pois qualquer dia já ninguém o consegue ouvir com a mania que é o maior, que ninguém está ao seu nível, o autoelogio recorrente e constante dos seus feitos, enfim, essas taras e manias de um doidivanas qualquer. Quem é que você julga que é? Certamente, por tudo aquilo que nos foi dado a ler, você é um artolas de primeira água e um linguista sensaborão ou irá dizer-nos que afinal era tudo a fingir e que apenas queria pôr um ponto final no top da brutalidade!
Escrevo-lhe deitado numa espreguiçadeira num apartamento de quatro assoalhadas junto do aeroporto. Descobri recentemente que este mesmo me tinha sido doado em herança pelo meu tio de Florença, Pietro Marentini, aquando do seu divórcio com a famosa hospedeira de bordo da Scandinavian LineAir: Vicky Malastrom. Julga-se que este terá passado os últimos dias da sua vida com cenários de aviões que chegam e partem de forma a sossegar a sua dor, entrando numa fase de metal e melancolia que nunca foi capaz de recompor-se. Encontrei fotografias e objectos da sua amada espalhados pelos vários recantos da casa, uma mulher, por sinal, muito bela de rosto redondo e maçã no queixo, digna de actriz de cinema nórdico. Chamou-me também a atenção uma manta de linho em forma de V, promotora de bastante calor, onde se depreende toda a paixão existente entre o casal. De qualquer modo,Vicky, creio, nunca suportou aquele sedentarismo crónico do meu tio…
E agora, conte-nos novidades, que tal o tempo por aí? Soube pelo carteiro que o ano passado houve muita neve e que as comunicações estiveram cortadas. Talvez, por isso mesmo, sugeri para que lhe entregassem em mãos esta missiva. Soube, inclusive, que o amigo Janeiro teve de improvisar na cozinha com comida vinda fora de portas, onde encomenda telepizza. Será verdade?

Com os respectivos votos de boas festas, seu admirador

Doutor Mara

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Uma Carta TOP de Janeiro Alves a fechar 2016

Caro Dr. Mara,
          
          Antes de ir directo ao assunto, deveria por precaução certificar-me que o meu amigo goza de uma saúde impenetrável neste mês de Dezembro, e que consegue focar ao longe sem necessitar de lentes, metaforicamente falando. Não sendo possível, parto do princípio que mesmo não estando no auge das suas faculdades físicas e intelectuais, também poderia estar pior, estando portanto reunidas condições para a boa recepção do conteúdo desta carta.
Neste mês que capitula o ano de 2016, que teve tanto de bom como de devastador, à semelhança de todos os outros com excepção de alguns, ando na rua a observar as pessoas e a ouvir as suas conversas, e à noite ligo a televisão generalista no horário nobre, das salsichas. É uma prática ancestral dos grandes pensadores, que assim recolhem como que “fruta fresca” para as suas teorias. Aprende-se muito na observação das massas ondulantes à bolina dos ventos natalícios, como sabe. Hoje trago-lhe algumas actualidades da língua, da melhor língua nacional – a língua portuguesa.
É sabido que a nossa língua já conheceu dias de glória, mas actualmente é desdenhada pela maioria dos nossos conterrâneos. E que sorte é a dum povo que não sabe usar a sua própria língua? “Quando o pensamento é pobre e a língua não ajuda, mais vale uma pessoa ficar muda” – Um provérbio que inventei ontem à noite, e que se tudo correr dentro da normalidade, um dia entrará para o “Grande Livro dos Provérbios”.
Para além de se falar e escrever genericamente mal, surgem por vezes fenómenos populares ou modas temporárias muito curiosas. Este ano há algumas que registei no meu caderno.
A primeira é o uso excessivo da palavra “brutal”. Quase tudo é brutal. Um gajo bêbado a vomitar na estrada é brutal, mas a mulher vistosa a passar na rua também é brutal. Está um dia brutal. A miúda a cantar é brutal. Esta cena é brutal. Que cena brutal! O que dizer então de um assassinato violento, de um acidente em cadeia, de um massacre de guerra, da imponência das montanhas e desfiladeiros, quando uma simples “cena” quotidiana é brutal? O que dizer da expressão “atirai-vos independentes prá sublime brutalidade da vida” do Ultimatum Futurista de Almada? Actualizando a expressão aos nossos dias, teríamos provavelmente: “saiam da vossa zona de conforto”. Brutal!
A segunda moda, algo embaraçante, é o uso da expressão “top”, um estrangeirismo foleiro que segundo algumas fontes nasceu em ginásios lisboetas onde se pratica Cross Fit, Body Jump, Stretching e Core. O que não é brutal, é top, pois convencionou-se a supressão de alternativas. O cúmulo da expressão é dizer-se “este topo de gama é mesmo top”.
Na escrita, assistimos a uma nova tendência de pontuação – os consecutivos pontos de exclamação!!!!! Uma cena brutal cheia de pontos de exclamação é algo do outro mundo. É top!!!
Por sua vez, a comunicação social também marca a sua diferença ao inovar na construção frásica. A tendência 2016 e com provável arrastamento a 2017 é começar uma frase com o verbo: “Dizer também que Mário Soares já respira outra vez”; “Dizer ainda que o tempo se manterá cinzento e encoberto, tal como o meu cérebro de rato”; “Dizer por fim que copio as tendências dos meus colegas que inventam formas parvas de falar porque sou um jornalista top, apesar de desprovido de pensamento crítico”. Doutor Mara, isto é Brutal!!! Mas brutal de bruto, de abrutalhado, de brutamontes se quiser.
E como a carta já vai longa e tenho de ir ali para o Natal, dizer por fim ao doutor Mara que lhe desejo umas festas brutais, cheias de presentes top!!!!!
 Janeiro Alves Top

O Adeus da Cornucópia



           Em Novembro de 2005, pude assistir à  Companhia de Teatro da Cornucópia no Teatro Municipal de Faro. À altura, foi grande o espanto ver uma peça da Cornucópia fora de Lisboa bem como da descoberta de um autor, António José da Silva, com a peça “Esopaida ou a Vida de Esopo”, numa comédia exigente, bem elaborada e difícil e que instigava momentos de riso e até mesmo gargalhadas. Ao mesmo tempo que assistíamos em palco a um actor no máximo da técnica vocal e interpretativa: Luís Miguel Cintra. A Cornucópia sabe-se, entretanto, que irá fechar portas muito em breve, isto é, dar por concluída a sua actividade. Desculpem, será que podem repetir?

Da Filosofia

"Sou mestre em Filosofia o mesmo será dizer que sou mestre em alhos"

Esopo

segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

Zeca Medeiros: palavras para este tempo


Zeca Medeiros (Fotografia Tiago Rodrigues)
        José Medeiros, realizador, músico e compositor, é responsável por muita da música açoriana de referência que podemos ouvir e que, por isso mesmo, permanecerá para sempre na nossa memória colectiva. As suas letras e músicas foram gravadas para programas musicais e séries televisivas: "Mau Tempo no Canal", "Xailes Negros", "Gente Feliz com Lágrimas", "Balada do Atlântico", "O Barco e o Sonho", "O Feiticeiro do Vento", "A Ilha de Arlequim", ou ainda as mais recentes, "O Sorriso da Lua nas Criptomérias" ou “As Sete Viagens de Jeremias Garajau”. Os temas e as canções de Zeca Medeiros encontraram vozes diferentes em intérpretes: Minela, Susana Coelho, Vera Quintanilha, Mariana Abrunheiro, Vânia Dilac, entre tantas outras. Curiosamente é na voz dele que agora apetece escutar os versos finais de “Torna Viagem”: “Se as palavras se cansam no tempo/Este fogo não deixa de arder/Se as canções incendeiam a praia/ Esta noite não hei-de morrer”.

Ontem, escrito numa parede da cidade

Ele não quer nada no castanho

El Mar

Antes que el sueño (o el terror) tejiera 
mitologías y cosmogonías, 
antes que el tiempo se acuñara en días,
el mar, el siempre mar, ya estaba y era.
¿Quién es el mar?¿Quién es aquel violento
y antiguo ser que roe los pilares
de la tierra y es uno y muchos mares
y abismo y resplandor y azar y viento?
Quien lo mira lo ve por vez primera,
siempre. Con el asombro que las cosas
elementales dejan, las hermosas
tardes, la luna, el fuego de una hoguera.
¿Quién es el mar, quién soy? Lo sabré el día
ulterior que sucede a la agonía. 

Jorge Luis Borges, in Obra Poética, 2 (1960-1972), Biblioteca Borges, Alianza Editorial.

domingo, 18 de dezembro de 2016

"Menina" em estreia no Teatro Micaelense

"Menina" é o novo álbum de
Cristina Branco
            Um disco acabadinho de chegar aos escaparates e ali está, Cristina Branco, mais a sua banda, em palco no Teatro Micaelense. “E às vezes dou por mim”, com  letra de André Henriques (Linda Martini), inicia a ponte para uma grande noite, já que atente-se nos versos da canção que abre o mais recente álbum “Menina”: “E às vezes dou por mim/Quando ninguém está a ver/Ser que é por tanto crer/Que ninguém me quer/Sozinha na moldura/Na casa dos meus pais/Dizem que estou madura/E eu não quero esperar mais”. Como pano de fundo, discreta e imponente, a guitarra portuguesa, aqui tocada exemplarmente por Bernardo Couto. Seguiu-se uma hora e meia de espectáculo musical com muitas e bonitas palavras, ainda a intensidade da partilha. No final, desfeito o gelo, os músicos voltaram ao palco para encher de novo o coração de lindas melodias, frases e versos controversos de  gente cheia de alma. Certo é que foi um belo serão musical. Estamos, sem qualquer dúvida, na presença de um disco orelhudo que merece a repetição da escuta.

sábado, 17 de dezembro de 2016

Eu, Daniel Blake

         
(daqui:www.slate.fr)
 

        "A lógica do sistema está pensada na actualidade para aprisionar as pessoas, apanhá-las em falso. Há uma discriminação terrível nos centros de emprego que tende a submeter as pessoas. É uma lógica mais importante do que haver ou não haver trabalho. Haver trabalho há, mas também há discriminação na forma como são filtradas as oportunidades. E há uma questão ideológica por detrás disto: tudo está feito para que as pessoas interiorizem que se estão desempregadas, é culpa delas, são pobres, é culpa delas."

Ken Loach, in Ípslon, Público, dia 2 de Dezembro de 2016

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

O Corpo Ardeu

Atirámos um homem do penhasco abaixo.
Toda a aldeia reunida no adro;
corremos sobre ele aos gritos
fizemo-lo cair de grande altura.

O padre disse que agora, sim, é
que começa a verdadeira vida
e eu pensei com muita força e muita fé;
mete a verdadeira vida no cu.

Acordo a meio da noite com os uivos das pessoas
Prendem um homem no manicómio
atam-no à cama, enfiam-lhe comida
pela goela abaixo, engordam-lhe o fígado.

Ele tinha um anjo dentro da cabeça
sempre a levá-lo, a voá-lo muito
para lá das nuvens, repuxava-lhe os fios
forçava-o a uns esgares, uns dizeres obscenos

Quando o deixava planar a meia altura
a uns quinhentos metros, digamos, uma
corrente inesgotável de lenços coloridos
saia-lhe da cartola, com as músicas mais belas.

Tanto medo da loucura,
tantas verdades incómodas ali à mostra,
tantos segredos insuportáveis.
Vamos estabilizá-lo, disseram.

Quero escapar, morrer,
arder-vos por entre os dedos,
ó boas pessoas, ó sãos de espírito,
ó assassinos, adeus.

João Paulo Esteves da Silva, in Doutor Tristeza, Mia Soave, 2015. 

Da Amizade

«Falei de amigos. Haverá melhor na vida do que tê-los? Muitos? Uns partem de vez (eram amigos a prazo), outros andaram por longe, regressaram, convertidos à ideia de que não há como beber um copo juntos. Nem que seja de café. Só na desgraça se conhecem bem: sabedoria popular. Fi-los em to­da a parte.»       
Mário Dionísio

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Carlos Olyveira: Fotógrafo dos Dias que Passam!

A cidade é campo aberto para a respiração. Respiramos as ruas, as casas, os sólidos, corpos e luzes em movimento. Desse exercício diário de aproximação à existência vemos apenas aquilo que realmente importa, dedicamos especial cuidado à delicadeza dos gestos e prestamos ainda uma atenção inusitada pelas coisas que diariamente se repetem. Repetidamente, também nós, por aqui, vivemos e, tal e qual Bresson um dia disse: "Fotografar é colocar na mesma linha a cabeça, o olho e o coração".
         A partir dessa rotina e dos hábitos que se instalam estamos, portanto, preparados para nos concentrarmos naquilo que muitas vezes nos parece descabido, focados nos gestos mais banais ou inesperados ou, quem sabe, detidos na permanência insistente dos traços que julgamos ser comuns. Um distinto louvor à passagem do tempo. Eis, então, que entra aqui o fotógrafo, enquanto conhecedor da urbe e do seu pulsar, narrador curioso por calcorrear os seus recantos e buscar a vida no interior das ruas e rostos de personagens conhecidos. A visão do fotógrafo fixa, portanto, cada instante que passa, obedecendo aos humores das sombras e da luz. À semelhança deste seu olhar, espreitamos também com ele o quotidiano trânsito da ilha em viagem, tornamo-nos cúmplices da sua paisagem e movimento. Alimentamos o corpo com estas imagens para de novo vibrar com a existência, afagando e abraçando estes registos enquanto diário visual, reconhecendo o corpo citadino e as suas indissociáveis figuras. Acompanhar este olhar carece de continuidade, de expressão e reflexão crítica. Contemplemos pois, a repetição dos gestos tal qual a cidade e os dias que julgamos ser nossos, pois é assim que acreditamos estar vivos. Carlos Olyveira é o fotógrafo dos dias que passam!

Soneto 34

Porque me prometeste um dia assim tão belo
E me fizeste andar sem que usasse o meu manto,
Deixando as nuvens baixas tomar o meu caminho
Escondendo o seu fulgor em nevoeiro imenso?
Não te basta brilhar pelas nuvens envolto
Pela tormenta, pois que não chega unguento
Que cura a ferida, mas não cura a desgraça?
Nem a tua vergonha me conforta o tormento:
Que a culpa do que peca traz só alívio leve
Àquele que mais sofre e suporta a ofensa.
    Mas as lágrimas suaves que o teu amor me dá
    São ricas e resgatam todo o mal que me fazes.

William Shakespeare, “31 Sonetos”, Tradução de Ana Luísa Amaral, Relógio D´Água.

Da Personalidade

"É muito estranha a facilidade com que as pessoas têm tendência para avaliar as outras isolando apenas algumas partes da sua personalidade."

Sigmund Freud, Correspondência (1910)

A Cada Um o Seu Olhar

Fotografia Carlos Olyveira

domingo, 11 de dezembro de 2016

[Quando M. me Enviou Sms]

Quando M. me enviou sms
a perguntar plo programa de fim-de-semana
senti a angústia da página em branco de sexta-feira
do cronista de domingo
mas depois lá esbocei este plano,
mais uma mnemónica, diria:
1.º mastigar a angústia como uma chiclete
ao som dos Táxi da altura em que a cuspia
sem qualquer preocupação com a pegada ecológica;
2.º passar pela secção dos Perdidos e Achados da PSP,
do Metro e dos STCP para ver se encontraram um
coração que há dias que não sinto o meu;
3.º listar todas as músicas de língua inglesa
que expõem um broken heart no refrão;
4.º desfazer a máxima:
«Toi, tu est un blogueur.
Moi, je suis une blagueuse.» (que construí a pensar no O'Neill)
sentindo-me digna de uma serviçal de Penélope, que as devia ter,
escondidas nas dobras da história, como escrevi a Z;
5.º rever o filme de Eris Riklis e deixar-te
sobre a tua mesinha de cabeceira este bilhete:
«Não verei o limoeiro crescer!»

Aviso ao leitor: pode começar pelo último ponto, passar ao terceiro, eliminar o segundo e acabar no primeiro. Pode mesmo não sair do primeiro. Ou passar todo o tempo no terceiro. E, se chegou até aqui, pode mesmo ignorar este poema.

Ana Paula Inácio, 2010-2011, Averno, Lisboa, 2011. (Respigado do blogue Hospedaria Camões)

O Olhar de cada um...

            “A grandeza da observação e a gestão do silêncio funcionam como principais instrumentos de aprendizagem. Mas algo me diz que cada um olha para o mar como olha para dentro de si mesmo.”

in “Os Últimos Marinheiros”, Filipa Melo, Edição Fundação Francisco Manuel dos Santos, 2015.

sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

Soneto 5

As horas em terno ofício emolduraram
Essa face gentil onde o olhar se demora
Hão-de ser as tiranas de si mesmas, as horas,
Como da fealdade que a perfeição supera.
Pois não repousa o Tempo, antes guia o Verão
Ao temível Inverno, para aí lograr;
A seiva enregelada, as folhas sem fulgor,
Soterrada a beleza, e em vez, desolação.
Assim, não fora a essência do Verão conservada,
Líquida prisioneira entre vítreas paredes,
O fruto da beleza por ela era roubado
E nem memória havia de beleza que fosse.
   Mas a flor, no Inverno, perde só a aparência,
   Sobrevivendo, doce, o que lhe deu substância. 


William Shakespeare, “31 Sonetos”, Tradução de Ana Luísa Amaral, Relógio D´Água.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2016

2ºDIA


Arquiteturas Film Festival 2016

Penúmbria em São Miguel

Fotograma de Penúmbria de Eduardo Brito
      Penúmbria teve, ontem à noite, a sua apresentação junto do público de São Miguel, inserido no Arquiteturas Film Festival. Trata-se de um pequeno filme de nove minutos que nos devolve em imagens, música (Joana Gama) e palavras a magia do cinema. Eduardo Brito, conhecido enquanto fotógrafo e argumentista, transporta-nos, suavemente e sem mácula, para esse seu universo de imaginação e fantasia. O resultado é eficaz dado que há espetadores que acreditaram na verosimilhança daquele lugar. A curta insere-se assim nesse mosaico criativo do autor, essencialmente associado às “Terras Últimas” e demais "Finis Terras", que ultimamente lhe interessa explorar. Com uma narração firme, plena de humor negro, ainda que escorreita e sombria, este filme é, também ele, um gesto e propósito arquitetónico que nos sugere a possibilidade de habitá-lo.  

A famosa capa de chuva azul


"It's four in the morning, the end of December
I'm writing you now just to see if you're better
New York is cold, but I like where I'm living
There's music on Clinton Street all through the evening."
Leonard Cohen

in"Famous Blue Raincoat" que se encontra no disco "Songs of Love and Hate", gravado no ano de 1970 durante os meses de Agosto e Setembro, editado apenas na Primavera do ano seguinte. Trata-se portanto do terceiro álbum de originais do cantor canadiano recentemente falecido.



segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Andar de Cima

De vez em quando as coisas acontecem,
subimos as escadas do prédio
e às vezes tropeçamos, deixamos
cair o saco das compras e as tangerinas 
rolam pelas escadas a baixo,
ou rolamos nós pelas escadas a baixo
e quando paramos estamos no meio da rua,
fora da ternura, fora do tecto.

in "Casas" de Miguel Castro Caldas, Livrinhos de Teatro, Artistas Unidos, edições Cotovia.

domingo, 4 de dezembro de 2016

Livros Sobre a Mesa de um País por Desvendar

Fotografia de Carlos Olyveira
Livros sobre a mesa: “ensaios” e “dissertações” de contemporâneos curiosos e atentos ao que se passa em seu redor. Letras lidas por entre cafés e dois dedos de conversa, desse prazer da leitura renovado e, talvez por isso, também acessível à(s) carteira(s).  Neste “Movimento Perpétuo – História das Migrações Portuguesas”, Ana Cristina Pereira acrescenta informação e dá achegas curiosas para esse retrato infindável de um povo viajante em tão redundante constação: “Em Portugal aprende-se depressa que as pessoas não são árvores. Não têm raízes como os plátanos ou as tulipeiras. Aquilo a que se chama território nacional é uma multiplicação de pontos de partida e de chegada. Há dez milhões de pessoas dentro e 2,3 milhões de pessoas fora. Um mapa múndi que se desenha amiúde, por força da necessidade feita vontade”. Será que é mesmo assim? Continuamos a ser empurrados para fora, como se não houvesse alternativa? E, mesmo assim, há que continuar a ler sobre o mar, ou então sobre os nossos pescadores, essa “raça” essencial de um povo, entender porque fazemos parte deste processo misterioso de estar vivo, na esteira de Raul Brandão. Escreve Filipa Melo, numa das páginas de “Os Últimos Marinheiros”: “Os tempos e os homens mudam, mas o fôlego cego e vivo do mar, não. Percebemo-lo à proa, quando ainda no escuro o hálito salgadiço no envolve e o vento, cúmplice, parece puxar-nos para dentro da boca vasta da água em volta. Ali, na ponta do vante, no topo da proa, seguiam, nos navios antigos, as carrancas e os leões da barca. Homens, mulheres, animais ou deuses, esculpidos em madeira maciça, cravados pela cintura no navio. Cortavam com alento o bafo salgado, como se desafiassem o desconhecido”. São leituras como estas que ajudam a compreender esse mosaico de um país que sabemos ainda por desvendar. Precisaríamos de saber ainda muito mais sobre a comunidade cultural e histórica onde vivemos. Estes livrinhos soltos, desempoeirados, pequenos fragmentos sobre o estado das coisas trazem a chancela da Fundação Francisco Manuel dos Santos. Ainda bem, agradecidos pela leitura e pela beleza de nos sabermos atentos e, por sinal, bem  vivos. 

Ontem, escrito numa parede da cidade

-Esta música eu já conseguiria dançar...

Dezembro à Beira Mar

Fotografia Carlos Olyveira

sábado, 3 de dezembro de 2016

terça-feira, 29 de novembro de 2016

Penúmbria no Teatro Micaelense

Fotograma de Penúmbria de Eduardo Brito
Penúmbria venceu a edição deste ano do Arquitecturas Film Festival. O filme de Eduardo Brito será exibido, dia 7 de Dezembro, às 21h30, no Teatro Micaelense. Escolhemos o fim de Novembro para conversar com o autor do filme antes da tão aguardada exibição.
Douta Melancolia: No início escutamos na narração:“A verdade é que Penúmbria sempre fora um fim de terra desde a sua fundação, há cerca de duzentos anos. O lugar ficou a dever o nome à sombra permanente, provocada por uma montanha alta e circundante no seu extremo sul.” Que sombra é esta que poderá habitar no espectador deste teu filme?
Eduardo Brito: É a sombra de um local que foi um erro. Ou seja, de Penúmbria, uma cidade imaginada como muito triste: má localização, atmosfera e clima; mas também cidade onde nada floresce. Daí que - premissa inicial do filme - a sua comunidade decide ir-se embora dali, assinalando o lugar como uma distopia. Noutro plano, talvez esta sombra seja o desafio do espaço e da sua leitura - de uma das suas possíveis leituras: como falhanço histórico, antropológico, arquitectónico.
DM-Acabaste de receber o Mikeldi de Oro para melhor ficção no 58º Zinebi  de Bilbao...como foi que tudo isto aconteceu?
E.B: Receber esta distinção é uma grande honra: pelo facto de acontecer logo na estreia internacional do filme, por acontecer num festival mítico como o Zinebi e, claro, pela inegável qualidade de outros filmes a concurso. Dá-me muito alento: o reconhecimento do trabalho é também uma forma de continuarmos a crer no que fazemos - neste caso, a crer em imaginações de cidades.
DM- É sabido que tens vindo com regularidade aos Açores, sobretudo a São Miguel. O que tens andado a fazer por estas paragens? E o que esperas desta projecção?
E.B: Como argumentista, a trabalhar num projecto chamado Hálito Azul, do realizador Rodrigo Areias que tem como ponto de partida Os Pescadores, de Raul Brandão e que decorre na Ribeira Quente. Da projecção, espero que corra bem em termos de som e imagem e que quem a veja, disfrute e compreenda a cidade imaginária de Penúmbria, pese embora a sua tristeza.
DM-Até onde pode ir este filme?
E.B: A proposta de Penúmbria passa, antes de tudo, pela imaginação de um lugar - de uma finisterra. Cria-se-lhe a geografia, a história e as histórias, o som, a arquitectura e a memória. As finisterras são um tema que tenho trabalhado e imaginado muito, seja na escrita, com As Orcadianas, na fotografia, com Passing Place, Sob A Luz Quase Igual e Terras Últimas e agora no cinema. Com Penúmbria quis também debruçar-me também sobre a relação entre texto (narração) e imagem. Mas no início e no fim de tudo está sempre o gosto por uma história, o gosto pela ilusão do cinema.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

Uma Janela para o Fim de Novembro

Fotografia Germana Eiriz
         De cabeça e corpo na brecha que dá para a cidade insular e, como tal, não há qualquer regresso possível às ruas da infância onde, por sinal, ainda há quem nos aguarde. A luz do tempo é serena. A acritude foi substituída pela esperança e, talvez por isso, é como se nunca tivesse havido partida para longe ou para sítio algum. A haver errância seria de resignação e permanência. O olhar pousa agora sobre o cinza da paisagem e dos telhados citadinos. Desta feita são as memórias que evitam que o desencanto se instale. Parte-se assim pelo interior dos dias adentro até à indagação de cantos e vozes deste tempo confuso, difuso, repleto de oportunidades por cumprir. Outro tempo é também  enviado pelo Alexandre, exímio guitarrista, que aprendi ouvir desde muito cedo, revelador de trilhos e veredas, que nos esclarece em suplemento de espectáculos  as vias com que agora se cose as malhas da sua criação: “Quanto mais avançamos no tempo, mais recuamos também, porque conseguimos ler melhor, descobrir mais informação sobre as coisas que já passaram há muito tempo, como se elas ficassem mais próximas.” Exagera-se, é certo, e assim talvez se acredite que é fora de portas que escutamos o clamor do mundo, que pressentimos esse coro inquieto de um universo criativo partilhado.
             Em suma, prometemos não recalcitrar do estado das coisas, incutiremos loas à encantadora  noite de sons e luzes que se avizinha. Promete-se ligar os sentidos, todos sem excepção. Respiraremos  mornas, prolongando sabor de cocadas e o verter do "quentão" e do "grogue" num auditório com nome de excelso poeta quinhentista. É testamento e herança de uma cultura que  se vive de forma misturada, alegre, intensa. A cidade, essa, vai descendo o seu cenário até ao mar. E anoitece...

segunda-feira, 21 de novembro de 2016

domingo, 20 de novembro de 2016

La Voz a ti Debida

Para vivir no quiero
islas, palacios, torres.
¡Qué alegría más alta:
vivir en los pronombres!

Quítate ya los trajes,
las señas, los retratos;
yo no te quiero así,
disfrazada de otra,
hija siempre de algo.
Te quiero pura, libre,
irreductible: tú.
Sé que cuando te llame
entre todas las gentes
del mundo,
sólo tú serás tú.
Y cuando me preguntes
quién es el que te llama,
el que te quiere suya,
enterraré los nombres,
los rótulos, la historia.
Iré rompiendo todo
lo que encima me echaron
desde antes de nacer.
Y vuelto ya al anónimo
eterno del desnudo,
de la piedra, del mundo,
te diré:
«Yo te quiero, soy yo».

Pedro Salinas (1933)

sábado, 19 de novembro de 2016

Ontem, escrito numa parede da cidade

"Ao desejo de partir soma-se uma resignada permanência"

Morte ao Meio Dia

No meu país não acontece nada
à terra vai-se pela estrada em frente
Novembro é quanta cor o céu consente
às casas com que o frio abre a praça

Dezembro vibra vidros brande as folhas
a brisa sopra e corre e varre o adro menos mal
que o mais zeloso varredor municipal
Mas que fazer de toda esta cor azul

Que cobre os campos neste meu país do sul?
A gente é previdente cala-se e mais nada
A boca é pra comer e pra trazer fechada
o único caminho é direito ao sol

No meu país não acontece nada
o corpo curva ao peso de uma alma que não sente
Todos temos janela para o mar voltada
o fisco vela e a palavra era para toda a gente

E juntam-se na casa portuguesa
a saudade e o transístor sob o céu azul
A indústria prospera e fazem-se ao abrigo
da velha lei mental pastilhas de mentol

Morre-se a ocidente como o sol à tarde
Cai a sirene sob o sol a pino
Da inspecção do rosto o próprio olhar nos arde
Nesta orla costeira qual de nós foi um dia menino?

Há neste mundo seres para quem
a vida não contém contentamento
E a nação faz um apelo à mãe,
atenta a gravidade do momento

O meu país é o que o mar não quer
é o pescador cuspido à praia à luz
pois a areia cresceu e a gente em vão requer
curvada o que de fronte erguida já lhe pertencia

A minha terra é uma grande estrada
que põe a pedra entre o homem e a mulher
O homem vende a vida e verga sob a enxada
O meu país é o que o mar não quer.


Ruy Belo                                                              

sexta-feira, 18 de novembro de 2016

terça-feira, 15 de novembro de 2016

Bilhete

Fui-me embora, não esperes por mim.
Se alguém der pela falta, diz apenas
que estou bem, continuo a fazer o mesmo
de sempre, trabalho, casa, trabalho, casa.

Só não mintas às filhas, diz-lhes que fui
procurar na distância outra forma de solidão,
talvez convencido de que longe de tudo
poderei vir a sentir falta do que já tenho.


Henrique Manuel Bento Fialho in Estação 2012