quarta-feira, 24 de julho de 2013

Dino Risi filmou o verão italiano

     
Vittorio Gassman e Jean Louis Tritignant

       Il sorpasso ("A Ultrapassagem") de Dino Risi é, sem qualquer dúvida, um filme para (re) ver nas férias de verão. Podemos considerá-lo por diversas razões um filme estival, uma película leve, propícia a ser vista ao ar livre, se possível com manta sobre os joelhos, caso o frio incomode. Dino Risi filmou, há cinquenta anos, o verão italiano, a luz e o sol, a cidade e o campo, a praia e o mar, a amizade e o amor. Para isso muniu-se de dois actores: Jean Louis Trintignant e Vittorio Gassman e, muito embora com menor relevância, as actrizes:  Catherine Spaak e Mila Stanic.
     Dino Risi celebra o “Ferragosto” romano por ruas e estradas vazias, o comércio e as casas fechadas, servindo-se de um telefonema do fanfarrão Bruno Cortina (Vittorio Gassman) que  assim irá perturbar o tímido estudante de Direito, Roberto Mariani (Jean-Louis Trintignant). O Verão de 1962 italiano cheirava a boom económico, o país crescia a olhos vistos e o automóvel era o epítome de bem-estar. Vemos em ritmo frenético um road-movie -dizem que terá influenciado Easy Rider (1969) - e que nos leva a viajar e a escapar pela Riviera de Fregene de Capalbio da Castiglioncello até Quercianella, ao redor da capital e da sua costa. 
A actriz Catherine Spaak 
    O cineasta Dino Risi, com formação em Medicina, começa por dar-nos a conhecer essa célebre expressão italiana “Ferragosto”, um feriado italiano celebrado no dia 15 de Agosto e que é motivo de patriótica comemoração. Inicialmente, estava associado à celebração da metade do verão e do fim das colheitas nos campos. Com o passar dos anos, a Igreja Católica passou a adoptar essa data para comemorar a assunção da Virgem Maria. Hoje, Ferragosto é um feriado em que milhões de italianos abandonam as suas cidades origem e demandam outras paragens.
     Aqui “Ultrapassagem” não é só o acto de ultrapassar mas aquilo que se vive nas cidades desertas no estio e, que por aquecimento e lassidão, se inclinam, tombam, caem e se deitam literalmente sobre as praias, acampando e deambulando junto do mar. Logo nos momentos iniciais do filme, um homem pára o seu carro desportivo junto de um fontanário para beber água e telefonar, a cidade está completamente deserta em Agosto (quem não conhece cidades assim?), o silêncio abafado pelo calor e a fadiga que perpassa sobre os minutos e as horas do mês de Agosto, rendidos à rarefacção do ar e à largueza dos dias.
     Vittorio Gassman, que participou em treze filmes de Risi, encarna a personagem do fanfarrão, mestre na arte de saber viver, um homem de meia idade que se deixa ir com a ligeireza e a leveza da estação dos grilos e das cigarras. Sempre com a resposta pronta na ponta da língua, ávido dos prazeres terrenos e imediatos, acompanhado ao volante pelo som da mítica Klaxon e do seu Lancia Aurelia B24, ao qual imprime velocidade e um ritmo estonteante, quase sufocante. O carro é aqui a expressão da liberdade e da velocidade, inaugurando um tempo novo, repleto de comodidades, movimentações e deslocações. Como filmar a passagem do tempo que se nos afigura tão veloz quanto o desejo de querer viver?
Dino Risi a filmar Il Sorpasso
    Dino Risi filma esta ausência de limites sem moralismos, sem justificações óbvias para derivas comportamentais, abraça inclusive as contradições do campo e da cidade, impregna de sensualidade os momentos finais do filme e dá-nos a dose certa de tragédia num final surpreendente. Nota também para rodagem dos minutos finais na praia Castiglioncello, que é magnífica. Cinquenta anos depois, a actualidade deste filme prende-se com a rapidez da montagem e este filme consubstancia de forma quase carnal a transição de um tempo, corporiza e cristaliza uma estação que tem os dias contados, daí este renovado e auspicioso encontro do filme como novos e jovens espectadores.

terça-feira, 23 de julho de 2013

Vittorio Gassman

Vittorio Gassman enquanto Bruno Cortina em Il Sorpasso (1962)
Gassman: Acredito no amor, é uma das forças que sustentam o mundo e o fazem mover: o amor pelos filhos, pelos pais, pelos amigos e pelas mulheres que realmente marcaram a tua vida.

Scalfari: Tal como o acaba de descrever é um sentimento cósmico, mas eu pedia-te uma definição mais concreta, uma relação de casal homem-mulher como aquela que você viveu.
Gassman: Sempre desejei ter uma relação serena, uma coisa nada fácil porque exige que uma pessoa se supere de alguma forma a si própria e se ponha no lugar do outro, o aceite, o compreenda. Por sinal agora, ainda que ao fim de trinta anos, tenho essa relação de paridade, discutimos com frequência, mas isto não faz mais do que alicerçar a nossa relação e torná-la mais sólida.


Tradução livre, in Revista El Pais Semanal, 1 de Setembro de 1996

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Saraband

Liv Ullmann e Julia Dufvenius
Karin: Porque não posso viver um amor como o da minha mãe?
Marianne: Não tiveste medo que o teu pai se suicidasse depois da morte dela?
Karin: Não pensei muito na tragédia dele. Mas tentei cuidar da mamã o máximo que ela me deixou. A mamã nunca foi muito faladora. Mas num dos seus últimos dias, costumava dormir com morfina...quando estava junto dela, ela olhou para mim e disse muito claramente: "Sabes que te amo. Sabes que te amo, Karin". A minha mãe nunca usava esse tipo de linguagem. Uma vez o papá disse na brincadeira, isto já foi há muito tempo, "A Anna nunca diz "amo-te" mas está sempre a realizar actos de amor".

´
in "Saraband", de Ingmar Bergman (2003)

domingo, 21 de julho de 2013

Do Estio...

         Era Julho e à semelhança das cigarras ninguém dormia. O cabelo doirado das mulheres lembra-me agora a infância deitado ao sol sobre os barcos, um clarão de luz a incidir sobre a merenda, os cães a rondar a areia e um cheiro intenso de salitre com o estender das algas e sargaço a serpentear a orla. Não havia sono mas sim desenhos com giz sobre a lousa ou sobre a areia e os amigos que se sentavam em redor à volta da canícula, ansiando o toque e afago das mães que se tinham  retirado e ausentado por instantes para o recolher da faina e dos maridos.
Era verão e as cartas rondavam os adultos nas mesas das tabernas e esplanadas. As bicicletas encostadas, exauridas e expostas nas paredes das ruas vazias, os bichos a povoarem as ranhuras, o verde das ervas a irromper por entre frinchas e rachas nos muros para além da ferrugem nos raios das rodas em descanso. Os gelados compostos de gelo e de açúcar, as nódoas no peito das camisas, as unhas sujas e enfiadas na terra dos berlindes gastos e consumidos ou ainda o medo das sebes altas nos campos de espigas e das vinhas. Adormecemos em algumas ocasiões junto de girassóis inclinados, por vezes debaixo de chatas e de lanchas a servir de refúgio e esconderijo às tropelias cometidas, ilibando culpas de horas e brincadeiras intermináveis na praia do pescado ou ainda dos tesos mergulhos no mar de domingo sem digestão, com os avós ocupados com os labores das redes e resultados da bola.
        Dessas tardes soalheiras com a cabeça enfiada na areia, a lassidão e o suor dos corpos à beira-mar ganha-se consciência. Consciência dessa grata e feliz morada salina de luz e azul, uma casa vasta e farta onde podemos molhar sempre os pés e mãos do nosso desconforto da adulta idade ou da velhice. O estio é certo que findará um destes dias sem darmos conta mas é dele sempre este baloiço guardado e relembrado, o escorregão recordado de correrias eternas e os ponteiros do relógio que de tanta corda ficaram parados.”

Doravante o sol

Doravante o sol o céu o sal
o tempo a escoar pelas marés
voa um garajau como se ganhasse
às nuvens de passagem o vagar
caí refeito verticalmente
num tempo outro a restaurar
o nosso enredo reescrito
rodopio constante irrequieto
desejo conspirativo em movimento
a  harmonia secreta das espumas
o horizonte com linha a desvanecer
o brilho e o branco dos casarios
e o mar chão que nem um barco vislumbra
ali onde a cor da luz se agiganta.

Belarmino vs Linda Martini

-Após a banda sonora do Manuel Jorge Veloso, do poema do Alexandre O’Neill (Belarmino - Amigos Pensados”) e deste vosso tema, é caso para dizer que nunca um filme em Portugal gerou tanto entusiasmo e fulgor criativo. Qual é a vossa opinião sobre o filme enquanto expressão de um certo espelho lusitano?

-André: O filme é ainda hoje uma referência e à época foi uma pedrada no charco do cinema português. Está ali num limbo entre a ficção e o documentário que me agrada muito. É sem dúvida um espelho da época. Dá para ver toda a gente a olhar para o chão metido dentro das suas vidas e dos seus casacos. O Belarmino acaba por contrastar no meio daquilo tudo com aquele ar gingão e aquela pose de malandro.

Entrevista dos Linda Martini ao Boletim Cultural Fazendo nº 48(https://issuu.com/fazendofazendo) (29 de Outubro a 11 de Novembro de 2010).

sábado, 20 de julho de 2013

Il Sorpasso

"A Ultrapassagem" de Dino Risi (1962)

Roberto Mariani: Ti giuro che ho visto.

Bruno Cortina: -Ma che sei matto, te voi impiccia' con le testimonianze, voi passa' il ferragosto al commoissariato?

Emoções

        “Sem qualquer excepção, homens e mulheres de todas as idades, de todas as culturas, de todos os graus de instrução e de todos os níveis económicos têm emoções, estão atentos às emoções dos outros, cultivam passatempos que manipulam as suas próprias emoções, e governam as suas vidas, em grande parte, pela procura de uma emoção, a felicidade, e pelo evitar de emoções desagradáveis. À primeira vista, não existe nada de caracteristicamente humano nas emoções, uma vez que é bem claro que os animais também têm emoções. No entanto, há qualquer coisa de muito característico no modo como as emoções estão ligadas às ideias, aos valores, aos princípios e aos juízos complexos que só os seres humanos podem ter, sendo nessa ligação que reside a nossa ideia bem legítima de que a emoção humana é especial. A emoção humana não se reduz ao prazer sexual ou ao pavor aos répteis. Tem a ver, igualmente, com o horror de testemunhar o sofrimento e com a satisfação de ver cumprida a justiça; ou o nosso deleite face ao sorriso sensual de Jeanne Moreau ou à densa beleza das palavras e ideias da poesia de Shakespeare (…) A emoção humana pode até ser desencadeada pela música barata ou pelo cinema de má qualidade cujos poderes não podem ser subestimados.”

António Damásio in “Sentimento de Si”

Émulos

Foi com amor aquilo que fizemos
ou acto tácito? – os dois carentes
e sem manhã sujeitos ao presente;
foi logro aceite quando nos fodemos
Foi circo ou cerco, gesto ou estilo
o acto de  abraçarmos? Foi candura
o termos juntos sexo com ternura
num clima de aparato e de sigilo.
Se virmos bem ninguém foi iludido
de que era a coisa em si – só o placebo
com algum excesso que acelera a libido
E em palavrosa, injusta desconcebo
o zelo de que nada fosse dito
e quanto quis tocar em estado líquido

Margarida Vale do Gato 

Curiosidade

A cura para o tédio é a curiosidade. Não há cura para a curiosidade.”

Dorothy Parker  (1893-1967)

quinta-feira, 18 de julho de 2013

Na Silveira ao Cair do Dia

Incólumes julgávamos ter passado
por silvas, florestas, matas de assombro
pesam os nossos amores pelos caminhos
guiam-nos agora utensílios e cabos

Mergulhamos num mar de sargaços
amarrados ao ancoradouro ficamos
instauramos sagas, promessas e laços

Ofertamos quimeras, cartas e lemes
lilás exílio na casa das bonecas 
a vindimar  limites e vocações

Uma vital sombra das façanhas por vir 
retiramos máscaras enfrentamos o medo
erodidos de um tempo gasto sem ilusões 


Vitalizar as sombras

"A vida é um caminho de sombras e de luzes. O importante é que se saiba vitalizar as sombras e aproveitas as luzes."

Henri Bergson (1859-1941) filósofo francês.

O Pianista

O Pianista (The Pianist) Roman Polanski (2002)


Wilm Hosenfeld: O que irás fazer quando isto tudo terminar?
Wladyslaw Szpilman: Voltarei a ser pianista.

Ontem escrito numa parede da cidade

Ele: E sentes inquietude?
Ela: Bastante. Compreendo que haja quem consiga exteriorizar, sei que para quem escreve isto pode até ser muito mais fácil, creio. Mas começo a ficar estranhamente inquieta.

quarta-feira, 17 de julho de 2013

A carência

“Aprendi muito cedo que se está nesta busca permanente do que não se tem”

Dulce Maria Cardoso

terça-feira, 16 de julho de 2013

Os Amigos

Os amigos são a única certeza que temos na vida, disse um dia um poeta açoriano. Os verdadeiros amigos são aqueles que ficam para o fim da festa quando já toda a gente se foi embora. Reconhecem-se à distância e mesmo quando estão longe sabemos desde sempre que estão próximos. Os amigos, ao contrário dos pais e irmãos, são necessariamente escolhas nossas. Por isso, uma boa amizade requer, na maioria das vezes, tempo para ser construída, exigindo encontros e interesse constantes, atenção, muita partilha, risco e, se possível, intimidade. Tal como o amor, a amizade nem sempre corre bem e, por isso há zangas, conflitos - muitas vezes violentos - amuos sistemáticos, separações, cortes abruptos e demoradas reconciliações. Muitas vezes não damos o devido valor nem significado merecido às coisas raras que temos diante de nós. Agora que voltei a falar com um grande amigo é que penso em tudo o que não lhe disse, o tempo que perdemos afastados, os momentos que não partilhámos, mas que, até que enfim, nos reconciliamos. Porque também acredito, à semelhança do poeta Rui Machado, os amigos moram no coração.

Três Poemas de Emanuel Félix

POÉTICA

Nada digo por hábito
tudo de novo vem de ti
nasce de novo

Nada digo de novo
sobrevoo
o deserto movente das palavras
em busca de um sinal
exacto e comovente do teu corpo

SINAL

Ergo nas mãos em concha
uma lembrança de água
oh presença subtil no deserto de um livro
a que uma folha dura

E que frágeis os trincos da memória
do que era teu e meu
a invisível tesoura
com que cortar os sonhos pela cintura

TRISTES NAVIOS QUE PASSAM

Tristes navios que passam
na hora da nossa vida
na hora da nossa morte

escuros vasos de guerra
cargueiros tanques paquetes
brancos navios de vela

levam óleo levam ódio
luxo lixo das cidades
levam gente gente gente

deixam ficar nostalgia

tristes navios que passam
na hora da nossa morte
na hora da nossa vida



Emanuel Félix (Angra do Heroísmo 1936 –2004) 

segunda-feira, 15 de julho de 2013

E o verão não é miragem

Esconde segredos e encontros
Tem o jorro sensitivo deslocado
Espera transbordante de virtude
Blandícia duradoura no círculo da nuvem
Ainda que o passado se intrometa
Sabe ser mistério ou imprevisto
Instante retomar das searas
Leve paisagem por descortinar
E o verão não é miragem 

July, Café Central


Four girls eat ice cream
giggling, three with blue hair,
identical specs, ankles thick
with age, schoolkids

Next time I turn round
they´re air, gone
grandmothers, women
of substance, melted.

Stuart Blazer


quinta-feira, 11 de julho de 2013

Estivalística

Um milagre tecnológico está prestes a acontecer…conseguimos uma charla com o Doutor Mara via skype. Como é que tudo isto foi possível, perguntará alguém de direito, mas hoje de facto tudo se tornou possível com estas novas tecnologias ao dispor de um clique. Aconteceu quando um fotógrafo subaquático, em fase de mergulho com jamantas no atlântico, se deparou com o doutor Mara em cima de uma rocha com a sua Olivetti Linea 103 a bater texto como há muito não se via. Admirado com semelhante atitude radical, bastante fora do que é usual, diga-se de passagem, o fotógrafo decidiu oferecer a Doutor Mara a sua tablet da quarta geração e, como contrapartida, este somente teria de encetar connosco mais uma magnífica, para não dizer estonteante charla sobre a beleza da vida e do mundo e, muito naturalmente, sobre o verão, as praias, a melancia, a soberania de Eros e da sardinha no pão.   

DM: Doutor Mara é verdade que se encontrava em cima de uma rocha a bater texto com grande intensidade? E, já agora, podemos ficar a saber o que é que se encontrava a escrever?
Doutor Mara: Meus caros amigos, vocês sabem que as rochas podem ser sítios de evasão e de fuga e…para quem como eu que escreve muita coisa que pode ser má, as rochas podem ser um excelente sítio para evacuar. E como passo o tempo a deitar tudo cá para fora, vou escrevendo cada vez mais, guardo muita coisa, é um facto, ao mesmo tempo que vou escrevendo mais e mais, volto a guardar, e escrevo mais e muitas mais vezes e não sei o que guardar. Sofro do drama da folha escrita que é o contrário da folha vazia. Recordo aqui, o meu amigo Pietro Tarantini, cozinheiro de sons, que, quando pensou que escrevia alguma coisa de jeito, enviou-me uma carta com o seguinte conteúdo:Sei que tudo o que escrevo é uma merda, mas continuo a escrever, porque se não escrever rebento e se rebentar é merda por todo o lado". Apesar de se encontrar em auspicioso exílio musical, P. Tarantini continua a escrever numa espreguiçadeira como um desalmado…há quem diga que adormece com a caneta na mão…já vi coisas bem piores.

DM: Como por exemplo?
Doutor Mara: Gente que escreve em cima de árvores, outros em cima de telhados, outros no quarto dos fundos e há quem sonha que escreve alguma coisa. No entanto, conheço um escritor que escreve de pé, entre a casa e o trabalho. O seu primeiro livro obteve o curioso título de “O Palmilhador”. Ele colocou inclusive a imagem dos seus sapatos na capa, com as palmilhas muito gastas, por sinal.

DM: Desconfiamos que deve ter sido um sucesso, não?
Doutor Mara: Por acaso não, saiu das montras das livrarias logo na primeira semana. A imagem da capa é usada muitas vezes pelas empresas de calçado junto dos funcionários como um mau exemplo do uso da palmilha.

DM: Doutor, temos uma pergunta engatilhada para si: o escritor-filósofo alemão Johann Wolfgang von Goethe afirmou um dia que “Só o verão vale a pena”. Acredita realmente nisso?
Doutor Mara: Sim, sobretudo quando os invernos são bastante compridos e o verão aparece como a estação redentora, para nos salvar muito bem não sei o quê. A luz que incide sobre os seres humanos ajuda a torná-los mais airosos, desenvoltos e virados uns para os outros. O verão devolve-nos a infância por instantes, os dias são maiores, as cidades ficam completamente vazias, as praias atulhadas de gente, um calor infernal nas terras do interior, os restaurantes sem mesas para sentar, crianças e adultos a fazer xixi no mar…há aqui algo de pueril, para não dizer de telúrico ou mesmo selvagem. Recentemente vi o filme “A Ultrapassagem”, do Dino Risi, e, aqueles minutos finais passados na praia são hilariantes. Cinquenta anos depois, aquela “praia” do sul da Europa não mudou absolutamente nada: barulho, confusão, gelados, bolas no ar, refrescos e uma latina propensão para improvisar a festa e a sempre bem característica ribaldaria colectiva.

DM: Doutor Mara, dizem más línguas (ou serão as boas???)  que está irreconhecível, que para além de um equilíbrio interior conseguiu neste verão aquilo que os gregos designavam por ataraxia…o equilíbrio entre o desejo e a realidade circundante. Por acaso, não está apaixonado?
Doutor Mara: Como diria o nosso poeta português contemporâneo Herberto Helder, autor do mais recente "Servidões": “A energia é a essência do mundo”. De facto, se o amor significar energia, mola, despertar, movimento, aí sim, estou verdadeiramente apaixonado. Nesta estação também sinto o desabrochar dos tecidos, o suor latente nos poros, uma tensão permanente com a nudez do sexo oposto, o destilar dos líquidos e a beleza das searas que clamam por mais seiva e fluidez nos encontros. Enfim…a soberania de Eros no verão é uma constante.Mas sim, sinto-me bastante sereno, tranquilo na alma e no espírito, sei mais do que nunca como enfrentar a dor e as adversidades, aceito as contradições existentes na realidade.

DM: O que tenciona fazer nesta estação de diferente?
Doutor Mara: Em primeiro lugar, comer muita melancia, a reposição dos líquidos é essencial nesta altura e secos já bastam os bolos a partir das cinco da tarde. E, se possível, voltar a comer sardinha no pão – depois dos santos populares, esta baixa naturalmente o seu preço! Tenho o desejo ainda de ver um ciclo de cinema italiano da reconstrução (começarei com “Francesca, Um Amor Impossível”, de Alberto Latuada). Por fim, caso for ainda possível, montarei a minha égua de seu nome Lisa.

DM: Sozinho?
Doutor Mara: Penso que já estão a querer saber demais. E...se me dão licença vou deixar esta maquineta à prova de água na poça desta rocha que está mesmo aqui à frente. Não levem a mal, mas julgo que o que é demais é exagero. Não me habituo a este mundo híper-tecnológico. Adeus.

DM: Muito obrigado, Doutor Mara, por mais uma inolvidável charla…pois, infelizmente, nunca saberemos quando será a próxima.


Ofício de Viver

Cesare Pavese (1908-1950)

“Gli uomini non si lagnano del soffrire ma dell´autoritá che li supera e tiene e fa soffrire”


“Os homens não se queixam de sofrer, mas da autoridade que os supera, domina e faz sofrer.”



Cesare Pavese, in Oficio de Viver, 14/3/1946 

terça-feira, 9 de julho de 2013

domingo, 7 de julho de 2013

O primeiro voo no céu dos Açores


"Tempos houve em que a fábrica da Sé mantinha cónegos, arcediagos, chantres, arciprestes e beneficiados, vendo-se o vasto caldeirado totalmente ocupado pelo Cabido, a dar luzimento aos esplendorosos cerimoniais litúrgicos.
A completar tão faustoso conjunto de dignidades eclesiásticas, havia ainda os meninos do coro, rapazes que envergando largas saias encarnadas e brancas sobrepelizes, cantavam no coro e ajudavam à missa.
Conta-nos o Pe. Jerónimo Emiliano de Andrade, na sua Topografia da Ilha Terceira, um interessante episódio passado no século IX, tendo como protagonista um dos aludidos meninos, que embora de compleição franzina, se destacava entre os demais, a criar situações contraditórias com a compostura requerida e imposta pelos preceitos religiosos.
       Foi assim que, encontrando-se a Sé entre obras, com andaime armado até ao cimo das torres, o menino depois de cometer mais umas das suas traquinices, fugiu perseguido por um operário, atingindo os andaimes cimeiros.
                E como nesse dia soprasse rijo o “carpinteiro”, a causar estragos  de monta – carpinteiro que levaria alguém a dizer, com muita piada, ser a exportação de ciclones uma das maiores riquezas dos Açores – arrastou o menino de pouca carne e leve ossatura, enfunado nas largas saias.
Um clamor de terror terá perpassado por quantos assistiram a tão horripilante vôo.
Mas volvido pouco tempo dissipavam-se as mais tenebrosas conjecturas com o aparecimento do imprevidente e forçado argonauta, ileso no telhado do Convento da Esperança.
Mais uma vez ficaria comprovado o velho ditado: “Ao menino e ao borracho, põe Deus a mão por baixo…”

in o  “Filósofos da Rua”, de Augusto Gomes, pág.140, editado por Jaime Cruz, a impressão ficou concluída nas Sanjoaninas de 1984, com uma tiragem de 1500 exemplares.

Ontem escrito numa parede da cidade

Ele: As palavras mentem.
Ela: O corpo também!

sábado, 6 de julho de 2013

Soneto

Ilustração de Aurora Ribeiro
No céu duma tristeza cor de farda,
Uma angústia de nuvens se desenha.
O amor já morreu: que o tempo venha
Desmantelar o que a memória guarda.

Jogai!, jogai! Quem não jogar não ganha
Nem perde. É a última cartada.
Eu aposto na vida, mesmo errada.
Talvez outro destino me sustenha.

Avião de Lisboa para o mundo,
Apaga-me a tristeza com as asas,
Tão nítidas no céu em que me afundo!

Depois desaparece atrás das casas
E deixa-me o azul, o azul profundo,


E duas nuvens de razão tocadas.

Alexandre O´Neill  (Lisboa, 19 de Dezembro de 1924 - Lisboa, 21 de Agosto de 1986)

A Melhor Juventude

Marco Tuglio Giordana(2003)



Matteo: Que palavras enchem a tua cabeça?


Georgia: ...

sexta-feira, 5 de julho de 2013

"As Ilhas Desconhecidas" no Palácio dos Capitães Generais

No dia de apresentação da exposição fotográfica, logrou-se, a propósito da visita às fotografias, ler o seguinte texto do fotógrafo Jorge Barros sobre “As Ilhas Desconhecidas” exposto numa vitrina da sala: "A sua leitura originou sempre novas descobertas, permitindo ir fotografando ilha a ilha, lugar a lugar sempre com o sentido de ir de encontro ao espírito do texto entre o impressionismo da paisagem – luz e silêncio – e sobretudo, o humanismo daqueles povos que Raul Brandão de forma excelente descreveu em 1924." A exposição estará patente ao público até ao fim de Novembro.




Annie Hall

Annie Hall de Woody Allen (1977)

"Voz de Alvy: eu pensei naquela velha piada, sabem, daquele tipo que, vai ao psiquiatra e diz: "Doutor, hum, o meu irmão está maluco. Pensa que é uma galinha." E, hum, o médico pergunta: "Bem porque é que não o interna?" E o tipo responde: "Eu internava-o mas preciso dos ovos". Bem, creio que é mais ou menos isto que penso sobre as relações humanas ou entre as pessoas. Sabem uma coisa? Elas são completamente irracionais e loucas e absurdas e, mas, hum, creio que continuamos a mantê-las porque, hum, a maior parte de nós precisa dos ovos."
 Woody Allen in Annie Hall

Via

Na via da natureza /distinta és/ para lá da folha/ acácia ou mimosa/ insanamente / tanto faz.

Ana II

    "O mar não é tão fundo que me tire a vida/ Nem há tão larga rua que me leve a morte/ Sabe-me a boca ao sal da despedida/ Meu lenço de gaivota ao vento norte/Meus lábios de água, meu limão de amor/ Meu corpo de pinhal à ventania/ Meu cedro à lua, minha acácia em flor/ Minha laranja arder na noite fria."

Vitorino, (com arranjo musical de João Paulo Esteves da Silva) – álbum “Eu Que Me Comovo Por Tudo e Por Nada", 1992, Letra: António Lobo Antunes(Homenagem a Jorge de Sena).

quinta-feira, 4 de julho de 2013

Mercado do Duque por Augusto Gomes

Augusto Gomes

"Mercado Duque de Bragança, que a nossa gente chama simplesmente de Praça, antiga cerca do Convento da Esperança, possui três entradas, a saber: pela Rua da Sé, prolongamento da rua de Jesus; pela rua da Esperança, junto do Teatro Angrense e ao norte pela rua do Rego, tornando-se assim facilmente praticável o seu acesso aos utentes vindos de todos os lados da cidade.
Antigamente, tal como hoje, era este mercado fechado, com a diferença que no lugar das actuais portas existiam cinco imponentes pórticos encimados pelas armas da cidade, existindo junto dos pórticos fronteiros à rua da Esperança, um chafariz.
O centro do recinto era ornamentado por frondosas árvores, podendo-se ver, amarrados aos troncos, vários cães de fila (cruzamento do pastor alemão com o bulldog inglês), de cujo pormenor anatómico, iria originar a alcunha picaresca de “rabos tortos”, com que ficariam conhecidos os terceirenses.
Com a extinção do mercado do peixe (casa do peixe), situado junto à Prainha, passou a efectuar-se a venda deste produto na parte oeste deste mercado.
Presentemente, além da carne, do peixe, dos produtos hortícolas e frutíferos, existem barracas que vendem pão, leite e mercearias, vestuário, e utilidades domésticas."



n o  “Filósofos da Rua” de Augusto Gomes, pág.138, editado por Jaime Cruz, a impressão fica concluída nas Sanjoaninas de 1984, com uma tiragem de 1500 exemplares.

quarta-feira, 3 de julho de 2013

Lost in Translation (O Amor é um Lugar Estranho)

Fotograma de Lost in Translation de Sofia Coppola (2003)



Charlotte: O John acha que eu sou arrogante.

Harris: Não és um caso perdido.

Ao mais leve ímpeto ferial

Ao mais leve ímpeto ferial
Nasce dentro de ti um rumor
Gesta de outras lides e delícias
Relançar de gentes à solta
Amantes da farra e do vento


Tal prenúncio do círculo

Tal prenúncio do círculo
Esferas a que se destinam
Sobejam líquidos na pia
Casam em sonoros apelos
A alba cumpre-se de rolamentos

Será verdade?

"Pensem que as palavras a que não se segue nenhuma consequência são ditas para nada."

Demóstenes (-334/-322), político e orador da Grécia Antiga.

terça-feira, 2 de julho de 2013

Ontem escrito numa parede da cidade

"Uma vez deparei-me com o silêncio de um peixe. Ainda hoje o sinto a gorgulhar..."

Bailão Musical

O preconceito é sempre uma ideia, uma imagem, um conceito pré-adquirido que resulta da ignorância ou de falta de conhecimento. Esta medida podia-se usar, por exemplo, quando habituado que estamos aos papos secos da mercearia pela manhã esta passa a ter, por exemplo, bolos lêvedos ou carcaças. Para além de incompreensível, toda a gente começa de imediato a questionar a inexistência dos típicos e tradicionais papos-secos e o porquê dessa nova coisa requintada e única dos bolos lêvedos, sem que alguém saiba as razões desta súbita alteração. Isto vem a propósito da alteração e composição do programa de bandas deste ano nas Sanjoaninas 2013, um programa de contenção económica, aberto às novas tendências da nova música portuguesa, e que não atraiu multidões e que, provavelmente, pode não ter sido muito famoso do ponto de vista comercial. No entanto, convirá questionar o grande público sobre a curiosidade e os caminhos que este toma sempre que alguém decide romper com o que está estabelecido ou apresentar alguma coisa nova. Não é fácil agradar a todas as faixas etárias, nem as diferentes camadas da população, por outro lado o momento de crise requeria um outro entendimento dos preços gerais ou bilhetes apenas para uma noite. Parece-nos exagerado para um programa musical sem grandes "estrelas" que se exija trinta e cinco euros para o bilhete geral (e anda bem que se fez a promoção dos 25 euros), o mesmo se pode dizer que nos parece excessivo pedir para uma noite dez euros por “Macacos do Chinês” e “Paus” ou “October Flight” e “X-Wife”. Não se trata destas bandas terem ou não valor de mercado, o valor é mesmo musical, mas sim por que estas ocupem nichos de mercado bastante segmentados e querer que o grande público sem grandes referências,as descubra por essa quantia, parece-nos no entanto exagerado. Cinco euros por noite seria a quantia módica que muito gente parecia disposta a dar e contribuir para esta grande festa musical pautada pela diferença e pela descoberta.


 Deixando de lado essas questões do foro das movimentações de massa e de cariz profundamente económico, o balanço musical é bastante positivo e promissor pois é necessário podermos ouvir os temas hipnóticos e vibrantes dos “X-Wife”, as viagens etéreas dos “Paus” ou “Salto”, as canções e a folia dos “Diabo na Cruz”, bailar e cantar com os “Ronda da Madrugada”, reviver os temas arrebatados e incandescentes dos Sétima Legião e terminar com o reggae teso e esfoliante de "Patrice". Se é certo que estas bandas não encham recintos ou pavilhões, creio que o valor pedagógico que esta festa musical possa ter tido, foi assim ter dado a possibilidade e oportunidade de podemos ouvir e dançar ao som destas músicas. E, acreditar, acreditar sempre que a curiosidade e a vontade de descobrir resistirá ainda mais algum tempo.

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Rosas

Rosas (1925), Fotografia de Tina Modotti

Difícil de dizer

Difícil de dizer que tudo é sem sentido
para um homem que sabe que um sentido
viria a mudar tudo.

Um dia o teu nome será ungido
pelo mar!
O mundo perdeu o seu teor salino
mas a tua boca tem um gosto a sal.

Lars Forssell

*tradução de Vasco Graça Moura.