sábado, 30 de novembro de 2013

Celebrar Angra


Fotografia Tiago Rodrigues
      No início dos idos anos oitenta do século passado, na Ilha Terceira, deu-se um enorme terramoto que arrasou com a cidade de Angra do Heroísmo e com uma das suas mais emblemáticas igrejas, a Catedral da Sé. Três anos mais tarde, em Setembro, a cidade acordaria com um aparatoso incêndio no interior da Catedral da Sé que lhe destruíria de forma irreversível o seu interior, especificamente a sua talha dourada dos altares, os órgãos de tubos e o teto em caixotões. O centro histórico de Angra seria reconstruído na sua forma original com o esforço das entidades públicas e dos cidadãos terceirenses. Esta urbe atlântica obteve a 7 de Dezembro de 1983 o galardão de Cidade Património Mundial da UNESCO, sobretudo pelo seu património edificado ao longo de séculos mas também pela sua capital importância no período das descobertas enquanto entreposto comercial dos impérios português e espanhol, tornando-se assim pioneira na atribuição deste título em Portugal, completando agora trinta anos desta efeméride.



quinta-feira, 28 de novembro de 2013

Em 1988 foi este livro e...este ano?

 

 

“Um manuscrito do Vitor é um suplemento de ferro, tomem lá, ó esquálidos. Qualquer textinho lhe sai uma beleza, como se saísse assim da boca dele, pardal de muita conversa e muito livrinho. Em suma, o mais antigo editor paralelo em Portugal é toda uma língua. Paralelo, e não alternativo, porque uma editora paralela nunca se encontra com as outras, faz o seu caminho ao lado. No caso do Vitor, ao lado e subterrâneo. Não é uma metáfora, é uma morada: & etc, rua da Emenda, 30, cave 3.” escreveu assim há dias a jornalista/escritora sobre o Vítor Silva Tavares e vencedora da edição deste ano do Grande Prémio de Romance e Novela da Associação Portuguesa de Escritores (APE) relativo a 2012, com o romance “E a Noite Roda” (Tinta da China).
       
         O seu nome é Alexandra Lucas Coelho, tem carteira de jornalista desde Janeiro de 1987 e da sua pena saíram dos mais belos escritos lidos na imprensa nos últimos anos sobre as várias ilhas deste arquipélago.Não, não sou só eu que o digo, há muito mais gente a dizê-lo. Há um artigo sobre as “Ilhas Desconhecidas” do Raul Brandão que ainda hoje releio com deleite. A jornalista realiza grandes reportagens para o jornal “Público” que podem abordar o tema dos morros e as favelas do Rio de Janeiro até às jovens que despertam para a sociedade de consumo em Pequim na nova China. Durante largos anos, ela foi especialista em assuntos relacionados com o Médio Oriente e conta por isso com vários livros publicados. O melhor que podemos fazer é continuar a lê-la.


quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Chicharros e Cordofones em Vila Franca do Campo

Selo dos 450 anos de Bento de Góis
Vila Franca do Campo está situada na costa sul de São Miguel e já foi a principal povoação desta ilha. Visita ao seu porto para avistar o ilhéu e onde há homens, descalços e sentados sobre antigas arrecadações, que consertam redes de cor castanha para mais logo, à noitinha, os seus companheiros irem à pesca do chicharro. A tarde de chumbo açoriana torna a preceito uma visita ao Museu, um solar imponente e repleto de pedra da pertença da fundação Viscondes do Botelho. Numa das salas, ali está uma colecção alargada e vibrante de cordofones, salientando-se o espólio de violas da terra, tendo como construtores os nomes de Luiz José Nunes, António José Sousa Melo, José Medeiros, Cirino da Cunha, José Luis Vicente, Miguel “Charuto” de Melo, entre tantos outros. Actualmente é o jovem Hugo Raposo quem se dedica à artesania e ao restauro destes cordofones, bem como são dele os moldes presentes na exposição.

terça-feira, 26 de novembro de 2013

Pão, Amor e...filmes italianos (1)


Ao princípio, eram os filmes. Ia-se ao cinema ver filmes, e não, a pretexto de filmes, “ver Cinema”. Foi preciso passarem décadas, para haver História (do Cinema). Chegarem os “Cahiers”, para haver Teoria (do Cinema). Dos cinemas, salas escuras povoadas de cabeças e corpos, emoções e suores, ansiedades por um tempo esquecidas, mãos por um tempo entrelaçadas, passou-se ao Cinema, Arte 7ª, sem a presença da qual (ou o seu peso em estrelas) nos dizem hoje que não adianta ver filmes. Escreve-se em jornais diários como se o mundo fosse dos cinéfilos, teoriza-se aí à falta de lugares próprios, que por cá nunca medraram – a prova de que os cinéfilos sempre foram escassos, como quase tudo. Continua-se, pois, a ver apenas filmes, como a diferença – e não é pouco – que os cinemas perderam aquela ar de templos da escuridão e locais da cavaqueira nos imprescindíveis intervalos, para se tornarem cada vez mais, iscos de compras em centros comerciais: “o filme não prestava, mas comprei uma camisola nos saldos”. Mas cada um, como no princípio, leva uma vez por outra para casa uma história, uma ideia, uma frase, uma música, um plano que talvez não venha esquecer, tenha ou não estado perante uma credenciada “obra-prima”. Como leva também a ligação “daquele filme” a coisas da vida, desse tempo ou desse dia, a que a memória para sempre associará. Tudo isto são minúcias que a “Arte pela Arte”, hoje arrogantemente triunfante, teima em ignorar.
I Vitelloni de Federico Fellini (1953)
 
                 Quem viveu a vintena nos anos 50 e alvores dos 60, em Lisboa, sabe bem do que estou a falar. Mas não é mau relembrá-lo, quanto mais não seja para que os espectadores de hoje se libertem de complexos face às “estrelas” dos críticos, que tantas vezes podem viciar a nossa relação com os filmes, levando-nos à frustração de não ter visto neles o que nos foi inexoravelmente anunciado: “a não perder”.
               Víamos  westerns (a que chamávamos filmes de cow-boys) sem saber que eram do Ford ou do Walsh, musicais sem conhecer Bubsy Berkeley, comédias ou melodramas sem nunca ter ouvido falar de Mankiewikz, de Sirk ou de Lubitsh. Mas, à primeira, fixámos o nome do De Sica (com os “Ladrões de Bicicletas”, e logo depois, com o “Milagre de Milão”) e do Fellini (com “La Strada”). Rimos perdidamente com Abott&Costello ou com Danny Kaye, mas rimos e  pensamos ao mesmo tempo com o Toto e com o Fabrizi.
             Não esquecemos o Bogart ou a Bette Davis, mas nenhum dos seus filmes nos terá deixado as marcas de um “Arroz Amargo”, visto talvez num alvoroçado 2ºbalcão do Império. Quem o realizou? Sabemo-lo hoje, mas já não precisámos que nos viessem recordar  que era com a Silvana Mangano, que nos infernizou os corpos na altura. Como lembramos a Sophia Loren da série “Pão, Amor e…”, sem ainda sabermos que estava ali uma grande actriz, coisa de que nunca tivemos dúvidas da Alida Vali (no “Terceiro Homem” e depois no Senso”) e no da Magnani, que não víramos na “Roma, Cidade Aberta”, ainda andávamos de calções, mas admirámos na “Belíssima” ou em “A Comédia e a Vida”. Como guardámos fundo também o De Sica-actor nesse magnífico “Generale della Rovere”, filme que, talvez por demasiado sartriano (atributo nada recomendável nos nossos dias), está  hoje no limbo dos  objectos secundários nas histórias do cinema europeu.


                Pela distorcida imagem – todas  o são, de resto  que dou dos filmes que frequentámos naqueles anos não será difícil imaginar o papel que o cinema italiano ocupa na memória dos que então aprenderam a amar o cinema (com “c” pequeno, esse de que cada um tem a sua história privada), e a precisar dele como pão para a boca. Talvez me engane muito, mas acredito que nesses anos terá chegado a haver momentos em que eram italianos a maioria dos filmes exibidos nas salas de estreia de Lisboa. A que atribuir tão grande popularidade? Que teriam eles de tão particular?
                Boa parte deles passava-se na actualidade de um país destroçado pela guerra e pela ocupação, derrotado, com enormes carências no quotidiano, cada um a ter de recorrer a mil expedientes para sobreviver. Os cenários eram muitas vezes naturais, os actores muitas vezes não-profissionais. As histórias eram quase sempre de “gente comum”, dos seus dramas, grandezas e misérias. Universo de pequenos funcionários, de polícias e ladrões de meia tigela, empregadas domésticas, pescadores, trabalhadores agrícolas, desempregados, oportunistas e vigaristas, novos-ricos e biscateiros. Universo das “insignificantes” alegrias e tristezas de toda essa gente, de tantos heróis ignorados, de amores e ódios desmedidos ou caricatos, de violência das emoções e das paisagens (lembro “Stromboli”), de ternuras e generosidade sem fim, de lutas inglórias ou patética, de exploração e raiva. Numa palavra, universo de resistência.
                                                       

(continua)
 
João Martins Pereira

segunda-feira, 25 de novembro de 2013

Deste verde tão verde...

Meu caro amigo,

                Escrevo para si, Janeiro Alves, em Novembro, mês de castanhas assadas e vinho novo. Recebi com júbilo a sua missiva no fim de tão melancólica estação, já que é no Outono da minha existência em que me encontro, consciente dessa descida do Everest desta humilde biografia que agora lhe dou conta. À semelhança de Manaia Júnior, o mais aventureiro dos Manos Manaias, tenho procurado afastar-me dos olhares públicos, refugiando-me no sossego do atlântico e do mar e outras águas menos turvas, essa fonte de riqueza espiritual e, obviamente sonora, dado que também Shubert foi seu epígono quando decidiu compor a obra musical “A Truta”`, à volta de um lago. 
        Recentemente e, dada as condições miseráveis da prolongada sanguessuga financeira a que estamos condenados, decidi evitar saborear bivalves, crustáceos e demais peixes do oceano, pois não vá uma brigada anti-ácidos gordos e Ómega 3 se encontrar por perto e me obrigar a devolver as carapaças e as espinhas. Li, portanto, com uma inconfessável e desmesurada jóia, a sua missiva dando conta desse improvável e sangrento encontro com Vivaldo Manaia. Que horror, essa matilha de Vivaldo, confirmando assim a lenda que já no berço este distinto Manaia estava rodeado de espécies canídeas em redor. Ainda bem que não houve danos de maior e que o meu caro amigo ainda se movimenta. Entretanto, sabia o meu bom amigo, que me encontro a visitar a mais digna literata e filósofa dos Manaias, a Miriam, que está de volta ao clã para se dedicar de punho firme e desmanchada certeza a escrever uma biografia póstuma da família. A Miriam continua delicada e esbelta, tendo eu descoberto há dias, enquanto lavava os meus alvos dentes, que ela tinha vedado o “lava-pés”, já que não gosta de partilhar a água da torneira com que lava as cartilagens dos seus membros com mais ninguém…esta Miriam é incrível!
      Tenciono, por isso, dar-lhe conta desta minha aventura pelas terras do chã, das folhas de tabaco e dos ananases com maior brevidade. 

Seu servo, Doutor Mara.

domingo, 24 de novembro de 2013

Didi adora posar...


     Didi adora posar para o seu amigo fotógrafo e encher as páginas do seu “book” com fotografias arrojadas, de grande pendor sensual, a roçar o  erotismo. As fotografias trazem sempre o cabelo ondulado e doirado de Didi e uma parte dele estende-se sobre o seu corpo delgado e fino, pontuado de linhas e curvas bem esclarecidas, acentuando a sua pele bem tratada, ainda que alguma rugas faciais denunciem já a passagem de Didi dos trinta e muitos, obrigando-a assim a alguns constrangimentos alimentares e ao cuidado exagerado com as combinações das roupas e dos seus vestidos com o tom de pele, apostando na delicadeza e suavidade das cores do baton nos lábios e as tonalidades certas de pó de arroz sobre as maçãs do rosto esgalgadas. O propósito de Didi é muito simples e eficaz. Didi quer muito que todos reparem nela e que cada vez que passe pelos representantes do sexo masculino, estes se dêem conta do que ela traz vestido e que a mirem de alto a baixo, como se de uma princesa inacessível se expusesse ali perante os seus lânguidos e lascivos olhares. O cuidado de Didi quando posa é tal que ela respira fundo quando ouve o click do seu amigo fotógrafo, em parte porque gosta de dar sinal do dever cumprido. O amigo fotógrafo de Didi também não deixa que nada lhe escape e, se vê que Didi está fora do plano, trata imediatamente de a admoestar ou avisar. E quer sempre muito que tudo fique como deve ficar, isto é, como ela aspira, para mais tarde recordar. A desventura de Didi é não poder usar todos os dias os seus óculos Paco Rabane, pois preenchem-lhe a cara mais do que é costume. O sol do lugar onde vive não ajuda e a invernia prolonga-se quase até à chegada do verão. Numa das fotos sensuais e audaciosas de Didi, ela está deitada sobre a areia numa praia deserta, com o mar ao fundo completamente desnudada ao cair da tarde, com o sol e a luz a desaparecer, sempre com o seu sorriso cândido e escondido, não tirando nunca os seus colares de mini bolinhas doiradas que se prolongam pelas costas. É impossível não pensar que Didi queira muito ser desejada pelo sexo oposto e que em parte o consegue dado que são muito poucos ou nenhuns que conseguem permanecer indiferentes à sensualidade do seu olhar doce e indolente. Falta saber se Didi quer ser amada pelos que vêem aquelas fotos no silêncio dos seus computadores, nos iphones da última geração, ou se ela gostaria que todas as noites alguém lhe narrasse estórias simples e verdadeiras, ou apenas alguém lhe desferisse o conto do bandido?  Nunca saberemos, Didi, certamente que não.  Por ora, é isso o que o olhar de Didi revela ainda que se apresente tão difuso, tão aéreo, porquanto tão sensual, não se sabendo ao certo se no momento da fotografia Didi está a olhar para o flash ou se para o público que passa naquele momento em que o seu amigo tira as fotografias. Didi sorri muito sem ser propriamente um sorriso inoportuno ou desproporcionado. Ela sabe que o resultado final nunca desilude, daí se expor tanto, chega  mesmo a mostrar-se de todas as formas e feitios, pois sabe que quanto mais pose tiver mais a sua imagem se alastra sobre todos os lugares onde ecoa o seu nome. Didi demonstra ser livre enquanto posa e essa liberdade ninguém a tira. Uma das fotos que  deu mais prazer a Didi e que ela narra a toda a gente ser a sua cara é aquela em que ela está em cima de um zebra completamente inclinada sobre o animal atenuando a leveza do seu peso sobre o seu dorso ao mesmo tempo que lhe afaga a crina. Didi, na verdade, adora posar ainda que todos saibamos que essa sua pose não tem fim, hora, dia, mês ou estação, pois alimenta-se de um oxigénio inesgotável. Didi tem consciência disso. Didi apenas desejaria posar. Cada vez mais.

sábado, 23 de novembro de 2013

Abre os Teus Olhos

Verrá la morte e avrá i tuoi ochi-
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, comme un vechio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi ochi
saranno una vanna parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Così li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello spechio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla

Cesare Pavese, Verrà la morte e avrà i tuoi occhi, Giulio Einaudi editore, Torino 1951

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Sonata do Outono

Ingmar Bergman (1979)

O Silêncio Habitado da Mente


"Há algo para além da nossa mente que habita em silêncio na nossa mente. É o supremo mistério que ultrapassa o pensamento. Apoiai a vossa mente e o vosso corpo subtil nesse algo, e não o apoiais em nenhuma outra coisa."

Api

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Uma Missiva na Queda de Novembro.


Caro Doutor Mara,
         
     Espero que esta carta o encontre no máximo das suas capacidades físicas e mentais, e na habitual desordem provocada do seu pensamento futurista. Espero igualmente que o preço dos filetes de peixe esteja mais acessível do que da última vez, pois sei que é um verdadeiro apreciador.
       Para além de notas soltas da minha diária contemplação do maciço dos Alpes, e da permanente observação de fenómenos extra-planetários, nada teria para lhe contar, não fora a circunstância inesperada de me ter encontrado com Vivaldo Manaia, o mais Italiano dos Manaias, e que surpreendentemente reside muito perto do meu humilde habitáculo. O doutor Mara não imagina, nem lhe consigo descrever por palavras, a satisfação que foi poder conhecer o mais profícuo dos Manaias de S. Miguel, o mais internacional e consagrado elemento do clã, no seu habitat artificial. Tudo aconteceu numa tarde em que fotografava fenómenos espontâneos de situações que acontecem simultaneamente, numa rua movimentada de Milão, quando me deparo com um homem;
Gordo, de olhos castanhos, carão rechonchudo,
Mal servido de pés, também em altura,
Estragado de facha, pior de figura,
Nariz gordo no meio, olhar sisudo
         
        Ali estava Vivaldo Manaia, a antítese viva de Bocage, a apanhar o eléctrico nº 14 para o Duomo, com três cães, um grande, um pequeno e um outro que não era grande nem pequeno, e nem sei se seria um cão. Reconheci-o à distância a que se reconhecem os grandes homens, sem que eles nos reconheçam a nós.  Apressei-me para apanhar o mesmo eléctrico, e engendrava uma forma de poder registar aquele momento e conseguir algumas palavras do grande mestre Manaia. Sentei-me à frente do cão maior, que me fitava enquanto mostrava lateralmente a sua potente cremalheira pronta a afiar em caso de necessidade. Mantive-me calmo. Já com os olhos postos no chão conspurcado da carruagem, desprovido de argumentação, oiço: “Você não é o Janeiro Alves?”. Imagine, doutor Mara!
        Disse-me que me conhecia, mas que não podia dizer de onde nem porquê. Saímos e fomos beber uma garrafa de vinho Lombardo a um botequim da cidade, e discutir assuntos mundanos. Mas eis que no meio de divagações de menor relevância, o nosso ilustre Manaia me comunica que pretendia desvendar-me as linhas gerais do seu plano magistral, assunto de extrema importância para Portugal, um projecto de uma amplitude paranormal que iria definitivamente alterar o cenário nacional. Um plano para a crise, e portanto, para dizimar, com ou sem aspas, o velcro governativo que nos dirige. E nós sabemos do que os Manaias são capazes, doutor Mara, nós sabemos... Mas porque há momentos em que sucedem coisas indetectáveis em tempo útil, eis que a meio de um brinde, e em profunda ansiedade de querer saber mais, o cão que não era pequeno nem grande se atira a mim e me provoca ferimentos de alguma gravidade. Fui transportado para o hospital de urgência. O médico que me acordou no dia seguinte, esclareceu-me tudo. Fui atacado por um papagalo, uma espécie da floresta negra alemã, cruzamento entre um cão, um furão e uma cabra, e conhecido naquela zona alemã por comer galos inteiros à dentada. E assim terminou o meu triste encontro com Vivaldo Manaia.
       Mas a razão desta carta guardo-a para o fim. No bolso do meu casaco verde de veludo, ainda marcado de sangue e dentes caninos, encontrei um bilhete. “Caro Janeiro Alves, peço-lhe desculpa pelo sucedido. Saberá a breve trecho todos os detalhes do meu plano por intermédio do Doutor Mara...”
 Um fraterno abraço,
Janeiro Alves

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Mergulho

Mergulhar talvez seja
um verbo aéreo, curvo, distraído,
ainda que com água no bico.

sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Da Pulcra Existência

          A faca que corta dá golpe sem dor…descobrir prováveis hipóteses e mesmo assim não detectar seja o que for. Ter o receptor pronto, iniciar o caminho das trevas, mover todos os propósitos e nada alcançar. Ter a sensibilidade pronta para captar a mais provável das suspeitas e admitir que o que vier a seguir é uma mera possibilidade. Esta é a circunstância de nada conseguir saber, ter a cabeça a prémio, juntar peça por peça e lentamente desconfiar do que foi feito. Vivemos ambos sobre ruínas e em breve também este tempo findará. Por isso há cada vez mais desmoronamentos, sobressaltos, mais devastação em redor. Reconhecemo-nos, no entanto, nessa dimensão da esperança, a tensão do encontro, a surpresa da coincidência ou da pulcritude simples. Convém, portanto, manter a curiosidade, a leveza e o desapego, desprovidos de cobiças e apegos vãos. Se no final de um dia, soubermos pronunciar as palavras que em nós pulsam com maior veemência, talvez encontremos aquilo que nos descerra e nos prende, aquilo que nos liga e deslaça, aquilo nos dá vida e nos mata.

Um olhar...

Marine Vacht actriz de "Jeune et Jolie" de
François Ozon (no papel de Isabelle).

Flor no Pântano, Luz nas Catacumbas.


         "Flor no pântano, luz nas catacumbas" escreveu Vitorino Nemésio sobre a obra de Raul Brandão. Curiosa expressão ouvida pelo boca do doutor Machado Pires, especialista na obra do escritor da foz do Douro e que não se importa, até concorda ser boa ideia, este ter escrito sempre o mesmo livro. Brandão e Nemésio viajaram - ainda que por motivos diferentes- tal como travaram conhecimento na viagem que deu origem ao livro "As Ilhas Desconhecidas". Brandão tinha 52 anos e Nemésio 22. Desconfia-se assim que o "Corsário das Ilhas" terá nascido dessa vontade diarística. O que é certo é que, tanto um como outro, escreveram essencialmente sobre a passagem do tempo. E o que escreveram é, ainda hoje, tão relevante de ler.

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

A Mão no Arado

Feliz aquele que administra sabiamente
a tristeza e aprende a reparti-la pelos dias
Podem passar os meses e os anos nunca lhe faltará
Oh! como é triste envelhecer à porta
entretecer nas mãos um coração tardio
Oh! como é triste arriscar em humanos regressos
o equilíbrio azul das extremas manhãs do verão
ao longo do mar transbordante de nós
no demorado adeus da nossa condição
É triste no jardim a solidão do sol
vê-lo desde o rumor e as casas da cidade
até uma vaga promessa de rio
e a pequenina vida que se concede às unhas
Mais triste é termos de nascer e morrer
e haver árvores ao fim da rua

 É triste ir pela vida como quem
regressa e entrar humildemente por engano pela morte dentro
É triste no outono concluir
que era o verão a única estação
Passou o solitário vento e não o conhecemos
e não soubemos ir até ao fundo da verdura
como rios que sabem onde encontrar o mar
e com que pontes com que ruas com que gentes com que montes conviver
através de palavras de uma água para sempre dita
Mas o mais triste é recordar os gestos de amanhã
Triste é comprar castanhas depois da tourada
entre o fumo e o domingo na tarde de novembro
e ter como futuro o asfalto e muita gente
e atrás a vida sem nenhuma infância
revendo tuido isto algum tempo depois
A tarde morre pelos dias fora
É muito triste andar por entre Deus ausente
Mas, ó poeta, administra a tristeza sabiamente.


Ruy Belo

sábado, 9 de novembro de 2013

“Menina”- Márcia Santos e Samuel Úria


Imagem retirada daqui:www.som-directo.com 
É mais uma parceria luminosa e bem-aventurada esta de Márcia com Samuel Úria para a interpretação do tema “Menina”, segundo single do álbum “Casulo”(Maio de 2013). Os cantores assinam a composição da música e da letra desta canção que tem harmonia, melodia e uma alma que transborda, sobressaindo assim o texto da  letra que contém finura e um delicioso requinte poético, acrescentando-lhe a tensão necessária com a entrada em cena de Samuel Úria, numa exaltação de vozes aventureiras e apaixonadas, em tributo digno e verdadeiro à língua de Alexandre O´Neill. A pele musical de Márcia já vem desde os seus 13 anos e é de transporte para uma iminente dança imprevista e louca, numa luta sem medos, que esta cantora e Samuel Úria anunciam o desejo de querer dançar a quatro pernas e ventos, evidenciando uma vontade emancipatória de nos movermos, soltemos…sem receios ou complexos: “Desfaz o Nó/ destrava o pé/ desmancha a traça e avança./Chocalha o chão,/esquece os que estão,/rasga o marasmo em ti mesma./Vê corações,/ na cara que pões,/ vira do avesso esse enguiço./ Desamordaça a dança pra te convencer./O teu coração/ sem querer dispara/força e simpatia ao Ser que te vê dançar./O teu coração ainda pára,/ forçando a apatia p'lo medo de dançar.” Parabéns à dupla!

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

quarta-feira, 6 de novembro de 2013

O Regresso do Fazendo


Ilustração de Luís Silva para o Fazendo nº57
O Fazendo(https://issuu.com/fazendofazendo) é o jornal que eu adoraria ter  feito e fundado quando tinha vinte anos. Com essa proveta idade, aquilo que consegui foi editar um fanzine intitulado Espanta-Pardais e que, com a colaboração de vários amigos e amigas, fui também responsável pela maioria dos textos, grafismo e venda deste. A aventura persistiu durante dois anos e seis números, todos eles suportados pela algibeira piscícola da minha afável e inesquecível avó, que raramente viu cobrir este investimento financeiro ao seu neto dado às poesias, filmes e afins. O fanzine era vendido essencialmente de mão em mão e não me lembro de nenhum quiosque ou café recusar a venda do Espanta-Pardais, no entanto na minha mente não há qualquer recolha de qualquer verba dos fanzines lá deixados. Quando descobri um designer gráfico e a possibilidade de realizar um grafismo, mais cuidado e mais atractivo, decidi apelar a apoios públicos e ao Pelouro da Juventude local, mas este não viu qualquer interesse em custear aquele objecto editorial, provavelmente porque a sua tiragem rondava os cem exemplares. De qualquer modo, passadas duas décadas sobre tal desiderato, é com tamanho júbilo que olho para aquelas edições e aqueles nomes de pessoas das mais diversas áreas que escreveram e colaboraram naquela pequena façanha, reencontrando por ali o mesmo gosto, paixão, dedicação e a mesma generosidade que reencontro agora nas páginas deste jornal feito no gerúndio. À semelhança daqueles dias, também ninguém ganha qualquer euro por escrever ou paginar este boletim cultural que tem funcionado como barómetro e boletim cultural das ilhas do Triângulo, contando com os contributos de gente de todos os lados, credos ou classe social. Por isso, tenho a profunda convicção que os contributos particulares irão devolver o Fazendo ao espaço que este soube alegremente criar, isto é, à fruição e leitura de cada um: (https://issuu.com/fazendofazendo)




terça-feira, 5 de novembro de 2013

Varadouro

 "Varadouro", de Paulo Abreu e João da Ponte
    Quem viu o documentário “Adormecido” de 2012 - interessante e exaltante poema visual e sonoro à volta do vulcão dos capelinhos – sabia de antemão que alguma coisa de maior poderia estar em germinação. Por isso, assistir à sessão inicial de Novembro do cineclube de Ponta Delgada e, concretamente à apresentação pública de “Varadouro”, só podia confirmar os melhores augúrios. 
          “Varadouro” é o segundo filme de Paulo Abreu filmado em solo açoriano e novamente na Ilha do Faial, revelando desta feita uma descomunal sensibilidade na captação da pulcritude dos espaços insulares e dos sons da “natureza extrema” que habitam esta ilha e de que o arquipélago é pródigo. É claro que muitas das instigantes soluções videográficas do “Brel nos Açores”, espectáculo de Nuno Costa Santos, pertenciam já a Paulo Abreu, confirmando assim o seu sentido estético e desalmado gosto pela experimentação, para lá do risco que as paisagens e os barulhos insulares lhe sugerem. Este documento fílmico apresenta somente dez minutos de contemplação dessa piscina natural, desde o azul do atlântico até às suas profundezas, e, na verdade, é como se estivéssemos deleitados na capital de veraneio faialense, em plena costa ocidental, acompanhados por ilhéus a banhos, numa paisagem formada por rochas basálticas de lava incandescente e a memória de forasteiros de relevo que por ali passaram (Jacques Brel esteve lá em 1974, ou ainda sir Peter Ustinov e o escritor Mark Twain), acrescentando-lhe narrativas e ensejos pícaros com essa evocação. No fundo, tal como eles, é fácil deixar-se encantar por aquela fajã de clima ameno, quase tropical e dada a novos arrastamentos, à semelhança da vida do caracol, o popular tema musical açoriano cantado aqui pela excelsa voz do terceirense Carlinhos Medeiros. Este objecto cinematográfico contou ainda com a colaboração na realização de João da Ponte, conhecido cineclubista micaelense, tratando-se dum contributo desta dupla para o Doc´s Kigdom, seminário internacional sobre cinema documental realizado recentemente na Ilha do Faial. Por fim, “Varadouro” obteve os contributos solares e presenças mitológicas de Norberto Serpa, Tiago Afonso, Maria Emanuel Albergaria, Frederico Lobo, André Laranjinha, Sérgio Gregório, João Pedro Gomes, Tomás Melo e Aurora Ribeiro. E é bem provável que, com a ajuda dos cineclubes, este  postal do estio com sabor a documentário, seja exibido numa sala bem perto de si.

sábado, 2 de novembro de 2013

Há 30 anos...


Um arquipélago a meio do atlântico.

"Há três cidades à beira-naufrágio,/ e muitas outras sem rosto nem memória./E nomeavam: Horta, Angra, Ponta Delgada/e arregaçavam mais as calças, os pescadores de algas/ e silêncio.”                                                                                                                                                                                 Santos Barros
Mural de Luís Brum na Rua de Lisboa
     Reencontrar uma outra ilha, avançar tantos anos depois com um nó na garganta, percorrer a sua periferia e a paisagem escutando a voz e o sorriso da Nelly Furtado cantar: “But the smile is bigger than the Atlantic sea/It happens to bring out the Atlantis in me/Island of wonder/Where do you come from?/Is it the way the sun hits my face/Or is it your memory which I cannot trace, I cannot trace.” Poucas vezes importou o lugar de onde vimos. O espectáculo de beleza do Outono tão pouco. Na chegada a São Miguel e, à entrada de Ponta Delgada, é impossível não dar conta  da presença de gigantescos cartazes do concerto de “O Experimentar” bem como dos mupis espalhados pelos diversos cantos da cidade. Finalmente, uma promoção de uma banda insular como deve ser. Será do cosmopolitismo dos seus elementos? O luminoso concerto deu-se no Teatro Micaelense, com o florentino “Rema” a ser tocado já sob o signo da confiança e da euforia pela nave açoriana que regressou aos palcos com gente de tantos lados e a retomar o concerto sob ovação de uma plateia fiel e rendida. À saída concerto e na descida da rua de São João há uma loja com os sumptuosos iogurtes da Ilha das Flores bem como na Rua de Lisboa há um desenho do terceirense Luís Brum, o que reforça a ambicionada ideia de que estamos num arquipélago a meio do atlântico. E é tão estimulante que assim seja.