sábado, 29 de março de 2014

Guia Açoriano (II)

Fotografia de Tiago Rodrigues
        Cheguei à Ilha Terceira ao tombar da tarde, tudo me parecia absolutamente fascinante. E à cidade de Angra somente uma hora depois. Chovia. Encontrei um centro da cidade carregada de história e de património e à qual tinham acrescentado o dado mundial e, que ainda assim, não era causador de atracção turística. As suas casas e ruas tem um mistério de séculos e foi nessa ânsia de busca de conhecimento e passado que mergulhei através do “taxista-poeta” nas histórias de uma cidade aberta à minha curiosidade. Descobri no caminho para a cidade de Angra que bem perto do centro há um cemitério hebreu. Tomei um banho no hotel, jantei um amanteigado prato de lapas no Aliança e telefonei novamente ao taxista que me tinha acompanhado. Solicitei que me acompanhasse ao “Campo da Igualdade”, ao mesmo tempo que interroguei sobre a possibilidade de vir comigo ao tão afamado cemitério hebreu questionei sobre se este sabia mais alguma coisa sobra a passagem dessa comunidade em Angra. Este disse-me que quando terminasse o serviço nocturno que me ligava. Entretanto, munido do prospecto turístico que me tinha sido oferecido no aeroporto, caminhei em direcção à elogiada baía de Angra, inscrita em todos os roteiros turísticos. Após uma centena e meia de escadas, deparei-me com o antigo Mercado Dona Maria Pia, actual Centro de Ciência, situado no antigo caminho dos Côrte-Reais e tinha sido inaugurado a 23 de Agosto de 1884, ainda que neste folheto não diga quem foi o desenhador ou arquitecto de tão particular edifício. Minutos depois, o taxista ligou e, após duas ou três histórias caricatas da sua profissão, referiu que estava a caminho. Cheguei ao cemitério de madrugada e com ele trazia um folheto encardido, muito antigo, sobre a presença hebraica na ilha, escrito por um tal de Pedro de Merelim, e que me cedeu para ler durante essa curta viagem. Descobri de imediato que um Fortunato Benjamim, às portas de deixar este mundo e sem vontade de se juntar às almas inglesas no cemitério protestante, comprou à câmara municipal um terreno por 300 mil réis em 1832 com o intento de juntar por ali as almas da sua comunidade. Quando ali aportamos, ainda tentei subir o muro mas assustei a minha companhia nocturna, refreando o ímpeto constatei que o melhor seria voltar quando este se encontrasse aberto ao público. De volta ao hotel, passei a noite em branco a ler aquele livro emprestado com a promessa que o devolveria em mão na manhã do dia seguinte.

segunda-feira, 24 de março de 2014

Os Meninos Morrem Dentro dos Homens

“Os meninos/morrem dentro dos homens/ na volúpia escaldante de corpos pegajosos/ em negros e agudos penedos dos profundos abismos do desengano/ na luta do pão/ mel a escorrer das fontes da servidão/ os meninos/ morrem dentro dos homens/ à carícia cada vez mais nostálgica do sol-poente/ à descoberta do segredo guardado e resguardado/ e afinal efémero fortuito e banal.”

Rui Duarte Rodrigues, “Os meninos Morrem Dentro dos Homens” (1970)

quarta-feira, 19 de março de 2014

"Meu Pescador, Meu Velho" no Alpendre.


Meu Pescador, Meu Velho dia 20 no Alpendre
(Cine-Eco com extensão à Ilha Terceira pelo Cine-Clube)
  Amaya Sumpsi não faz parte dos conhecimentos deste escriba, tão pouco os pescadores de Porto Formoso, da Ilha de São Miguel. Não há também qualquer interesse escondido em promover ou divulgar este documentário, somente partilhar e querer estar próximo desta gente. No entanto, é caso para dizer que este foi o "o filme de 2013". Porventura, o filme surpresa, visto e apreciado nestes últimos tempos ou aquele que mais emoções causou. No fim deste filme a questão foi feita muitas vezes: para que serve a arte ou para que serve o cinema documental se não for para dar conta das pessoas que vivem em tempo real, isto é, que nos dê  a "ver" estes tempos conturbados que nos encontramos a passar e…a sofrer? Diversas vezes se questionou o facto de podemos ou não chorar quando vemos filmes com esta força e intensidade, com este poder de nos tocar e surpreender. Meu Pescador, Meu Velho é um documentário de uma riqueza por vezes indescritível e com um valor que podemos mesmo não estar à altura de corresponder. Portugal podia ter aprendido com "Os Pescadores" de Raul Brandão, escrito em 1923 e, quem sabe, talvez ainda possa aprender com este gesto de Amaya Sumpsi. Poucos filmes conseguiram ir tão longe e tão perto nessa busca da verdade  sobre o que cada um traz dentro de si. É certo que foi feito em sete anos, tempo suficiente para construir uma casa, mas que ainda assim vale a pena escutarmos o que estas pessoas nos dizem - e muito! - bem como guardar o legado e o lastro que este filme nos deixa para construirmos outro presente que não este. Ou, simplesmente, a alegria de estarmos vivos! 

terça-feira, 18 de março de 2014

Natália Correia: 21 anos depois!

Ilustração de Pedro Vieira
(retirado de Bibliotecário de Babel) 







“Sou uma imprudência a mesa posta/ de um verso onde possa escrever/ Ó subalimentados do sonho!/ A poesia é para comer.”



Natália Correia



domingo, 16 de março de 2014

O Guia Açoriano

       “Tu és a pessoa indicada para a realização de um guia à volta do arquipélago.”- declarou a chefe de redacção alagada de salamaleques identitários quando ouviu falar na diminuição de pessoal no jornal e uma adquirida reestruturação do quadro da redacção do diário. Eu pensei rapidamente que aquela era uma forma subtil de me dizer qual era o caminho mais fácil para a desocupação laboral. Num breve instante passaram-me pela cabeça todos os artigos e reportagens que tinha escrito para aquele diário em dez anos de jornalista com carteira profissional para além das noites que passei naquela minúscula sala a escrever como um vagabundo, sem rota nem destino, a acrescentar o álcool vertido e o odor do tabaco colado à roupa, andrajos que no regresso a casa iam directamente para a vetustíssima máquina de lavar. “Quanto tempo é que precisas para realizar tal tarefa?”- Repetiu de forma contundente a senhora redactora e de mim apenas saiu um esgar de cansaço e um sorriso furtivo e sem alma. Era garantido que uma visita ao arquipélago açoriano era, no imediato, o que se me afigurava no horizonte em perspectiva.

       
Fotografia de Tânia Santos
         A minha interrogação, no entanto, crescia a cada momento pois não parava de indagar sobre o que é que eu sabia sobre as nove ilhas açorianas deixadas a meio do oceano atlântico por um antigo império ultramarino? Outra questão era o que é que a senhora redactora terá visto em mim para me escolher como organizador de um guia turístico para sair em breve com o jornal, ao mesmo tempo que me retirava das funções de sempre, da rotina a que estava habituado há tanto, tanto tempo. Desliguei o computador, saí da redacção do jornal e indaguei qual seria a agência de viagens mais próxima, precisaria entretanto de saber o preço das viagens já que com a contenção tudo me seria pedido nos próximos dias. Numa primeira instância precisava digerir o anúncio do despedimento ou afastamento das minhas funções de jornalista durante algum tempo. Daí ter procurado o café mais próximo para ler o jornal concorrente e pensar no que me estava a acontecer. Não era grave. Pensava em todos os amigos que tinha tido das diferentes ilhas durante o período da Universidade e numa viagem em tempos longevos a quatro ilhas integrado numa comitiva de jovens estudantes de Biologia nos idos anos noventa.  

sexta-feira, 14 de março de 2014

Não é tarde

O amor é como o fogo, não se propaga
onde o ar escasseia. Mas não te preocupes,
eu fecho mais a porta.

Gestos e paveias, acendalhas, o isqueiro
funciona! Poderoso combustível
é o corpo. Acende deste lado.

Ainda não é tarde, foi agora anunciado
pela rádio, são dezoito e vinte cinco.
Respira-nos, repara, a ilusão

de que a vida não se esgota, como os saldos
de verão. E a morte, à medida que te despes,
vai perdendo o nosso número de telefone.


José Miguel Silva de Ulisses já não mora aqui; & etc, 2002 


quinta-feira, 13 de março de 2014

terça-feira, 11 de março de 2014

Sul

Fotografia de Eduardo Brito.

Postal de Miriam Manaia da Capital

          Como vai o senhor doutor?
       Aqui vai um postal da Costa do Castelo onde aluguei um pequeno apartamento para absorver a luz da cidade. Ultimamente tenho passado as noites às claras já que me tenho dedicado a rever documentários de Cris Marker e de Patrício Gúzman. Desta forma, acabo por não sair o que me traz alguma paz de espírito mas que torna o desassossego artístico e criativo cada vez maior. O que fazer?
        Soube, entretanto, que o Doutor tinha sido deslocalizado - na magnífica expressão e adjectivação desse momento pelo seu amigo de longa data, Janeiro Alves. E, talvez por isso ou não, decidi prolongar a minha estadia na cidade das sete colinas. Caso o Doutor Mara passe pela capital não se esqueça de visitar esta sua amiga que não esquece os dias de farândola noctívaga e darandina cultural – vivida e fruída em PDL – tendo por pousio o solar dos meus familiares mais próximos, os insuportáveis mas sempre fraternos, manos Manaia.

Sempre sua amiga,

Miriam Manaia 

quinta-feira, 6 de março de 2014

Mestre da Improvisação

João Paulo
Fotografia: Ana Nobre
-Estiveste há três anos na cidade da Horta, Ilha do Faial, numa oficina de improvisação musical. Que recordações guardas dessa actividade e da passagem pelo arquipélago?
João Paulo Esteves da Silva: Excelentes recordações. Ambiente fantástico, muito talento e abertura de espírito por parte dos participantes, jovens e menos jovens.
-Por fim, quais são os músicos e as músicas que te acompanham para todo o lado?
JPES: Como a lista seria interminável, proponho o seguinte jogo: Vou improvisar os primeiros dez nomes que me vierem agora à cabeça. Então, cá vai, Mozart, Bach, Beethoven, Chopin, Bob Dylan, Kate Bush, Joni Mitchel, Keith Jarret, Ornette Coleman, The Beatles...

Excerto de uma entrevista a João Paulo Esteves da Silva.

quarta-feira, 5 de março de 2014

O Miró pintor do Mundo!

Carnaval de Arlequim de Juan Miró (1924-1925)
                            









-Quem é o Miró?
-É o Miró pintor do mundo...
 in Bailinho da Ribeirinha, Carnaval da Ilha Terceira (2014) 

A Valsa Quase Anti Depressiva - Quiteto Tati (2004)




“Dança comigo a primeira valsa da Primavera/dança sem sonhos/ esquece as promessas/ ninguém nos espera/”


J.P.Simões

segunda-feira, 3 de março de 2014

90ª edição do FAZENDO

O boletim cultural FAZENDO(https://issuu.com/fazendofazendo) já tem cá fora a edição número 90 e está de pedra e cal no seu sexto ano de existência. Diga-se que o "Fazendo" conseguiu reunir os apoios necessários da comunidade leitora para manter a sua actividade mensal, continuando assim independente e gratuito. Neste número noventa, que pode ser lido em cinco ilhas do arquipélago, é possível ler um resumo do que aconteceu nessa ano do século XX, um artigo sobre o banco de Portugal e de artistas na cidade da Horta, apreciações ao trabalho musical dos Lulu Monde e de Vânia Dilac de São Miguel, textos sobre as espécies marinhas que habitam as águas açorianas, ainda uma canção de Chico Buarque, o ciclo de cinema cabo-verdiano na Ilha Terceira, as várias resenhas de livros por ler, a conclusão da crónica "As aventuras de Ezequiel Malaquias no Paraíso", etc. A tiragem é pequena, apenas quinhentos exemplares, mas que ainda assim vai tornando o Fazendo cada vez mais insular e plural. 

Anna

Fotograma de "Anna" de Alejandro González Iñárritu

sábado, 1 de março de 2014

Março Adentro

Fotografia: Tiago Rodrigues
Entrar por Março e também pelo mar adentro. Permanecer por ali, a ondejar com o peito completamente gelado e a dominar a vaga e a esconder os pequenos dedos hirtos dos pés. Um corpo ocupa demasiado espaço na água límpida por romper. Descerrar as mãos pela água salgada, abri-las para acreditar que à superfície tudo é credível, por instantes saber que são profundas as águas em que cada um se move e enfiar a cabeça nesse abraço e em todo este azul em redor. Daquele lugar guardar-se-á quase todos os mergulhos que ficaram por dar neste inverno fugidio e com o monte defronte só dá para espreitar o fundo destas águas, que são límpidas, realmente cristalinas. E a espuma é como se fosse um sopro no interior dos pulmões, em silêncio, onde podemos viver e mergulhar durante mais algum tempo. Respiramos. O mês de Março pode começar.