quarta-feira, 16 de julho de 2014

Sol e ao Longe

Sol e ao longe  
é arriscado o regresso a uma casa abandonada,
começar jornal pela página última,
aos primeiros veleiros da manhã acenar,
conceber cócegas no pescoço da infância,
celeste azul do atlântico oceano por comprovar
e a janela com a alba de noite mal dormida
em pesadelo adolescente que ameaça rebolar.  

Sol  e ao longe  
abusas da exclamação e reticências,
o coração bate em silêncio devagar,
botões da camisa apertados  dois a dois, 
lamber selos demorados até chegar
no peito como tambores o cravar da meninice,
golfinhos avistados à distância do pulmão,
pingos deitados num bramido cá para fora  
e do torpor impertinente padecer
até caminhar descalço sem ver o chão.

Discos d´Estio

“When there's things to do not because you gotta
                When you run for love not because you oughta
                   When you trust your friends with no reason notta
                       The joy I've named shall not be tamed
And that summer feeling is gonna haunt you one day in your life”

 
 
"That Summer Feeling"-Jonathan Richman

Ontem, escrito numa parede da cidade

          "Raul Brandão não pôde conhecer as cores das alterações climáticas."

terça-feira, 15 de julho de 2014

Gostaria de ler o teu livro na minha língua

              Avistava-se a cidade da Angra com o cair da noite do debutante estio. Depois de quarenta e dois dias a vacilar com o corpo e o balouço do barco no mar, branco de tanto vomitar num veleiro de onze metros, quase no último trecho da viagem marítima e pedindo socorro às veias que sossegassem, clamando pelo findar da turbulência e acicatar das ondas que o impediam de olhar o mar na horizontal, Carl Andresen conseguia, finalmente, respirar. O próprio veleiro dava sinais de cansaço, constando um pequeno mastro partido e todas as velas por amarrar. Ainda que encantado por pequenos laivos do azul ferrete açoriano avistados amiúde, este velejador dinamarquês só pensava em regressar a casa pelo ar e não mais por mar. Para ele, mal colocasse os pés em terra, daria por terminada a expedição iniciada nas Caraíbas. Há vinte anos que ninguém desatava o nó daquele barco. E, após seis meses que ali esteve, a desfrutar das delícias da marina de Anse Marcel, no norte de Saint Martin, das cubas livres e do gin, conseguiu finalmente reparar o veleiro e lançar-se ao mar. Entretanto, chovia muito, muito, ininterruptamente, quando Carl atracou o veleiro na marina de Angra, na Ilha Terceira, pousando os pés em terra e lançando-se ao caminho para o jantar. Entrementes, quando subiu a rua viu um pequeno casebre com muita gente alcandorada na porta, entrando sem hesitar. Era uma taberna repleta de gente parecida com ele, sem pátria aparente. Identificou-se imediatamente com os presentes pelo olhar gasto e cansado de alguns homens, alguns um pouco mais velhos  mas que, tal como ele, despediam-se de mais um dia.
O que trouxe Carl Andresen aos Açores? Há trinta anos o seu avó Nils Andersen andou neste mesmo veleiro pela aquela ilha do grupo central antes de regressar à Europa e o que seria uma estadia de três dias transformar-se-ia em três meses, daí que que se conte que este se tenha perdido de amores pela ilha, muito embora se desconfie que outras “razões superiores” possam ter estado no prolongamento da estadia. Apesar do enjoo e da dureza da travessia, Carl fez-se acompanhar durante toda a viagem ao arquipélago de um manuscrito escrito em português, fazendo agora questão de o transportar para todo o lado onde ia. Para tornar mais simples o seu transporte, colocou aquelas páginas no interior desse livro navegante escrito pelo avó. Era um livro já muito gasto, amarelecido, com as pontas das folhas dobradas e retorcidas do seu uso e abuso. Durante aquelas três semanas, Carl julga ter lido estas duzentas páginas diversas vezes, tomou apontamentos, coligiu notas e tentou por momentos descobrir o significado daquele título enigmático: “Velejar em Solitário até aos Açores”. Ao contrário do livro e, com o devido respeito, nunca quis saber o que seu avó terá escrito naquele manuscrito na presença da sua família. De qualquer modo, ao contrário do livro, as páginas guardadas no seu interior não estavam escritas na sua língua, continha vários desenhos e perfis femininos que se julgava serem todos da mesma pessoa. Carl soube que aquando do seu regresso a Norjedland, após essa viagem ao arquipélago açoriano, trazia um sorriso do outro mundo e que de imediato guardaria aquela alegria de forma intensa, refugiando-se de forma incompreensível. O neto soube que durante algum tempo o avó respigava o nome Açores em qualquer enciclopédia e logo se punha a traçar rotas, a inventar mapas e destinos a visitar para futuras viagens. “Gostaria de ler o teu livro na minha língua” era o título da primeira página dos manuscritos pousados agora sobre a mesa. Carl, após jantar naquela taberna, prometeu a si próprio deslindar aquele mistério. (continua)

segunda-feira, 14 de julho de 2014

À Procura de José Júlio Souza Pinto



José Júlio Souza Pinto (A Volta dos Barcos, 1891)
      Procurei por aqui, algures na cidade património, sinais da existência do cidadão José Júlio de Souza Pinto. Angrense de nascimento e de quem o historiador de arte, José Augusto França, disse ser "o mais brilhante dos paisagistas" - José Júlio Souza Pinto nasceu em Angra do Heroísmo, a 15 de Setembro de 1856, filho do Juiz de Direito, Doutor Lino António de Souza Pinto, natural de Valongo, e de Ana de Sousa Loureiro, da freguesia da Sé, no Porto. O seu irmão, António de Souza Pinto, também ele viveu a sua vida dedicado à pintura. Descubro, assim, que o pintor viveu nas ilhas atlânticas até aos catorze anos, para lá dos primeiros anos de existência vividos na Ilha Terceira, passou também pelas Ilhas de Santa Maria e São Miguel. Por aqui não há qualquer referência na obra deste à sua vivência na ilha Terceira, daí o provável desinteresse ou desconhecimento das entidades oficiais. E pergunto: o que é que terá acontecido? Primeiro, a ausência de alusões na obra do pintor ao seu local de nascimento e crescimento, por outro lado a inexistência por aqui de uma obra, uma rua, uma placa evocativa da sua origem terceirense. Soube-se que alguém da Bretanha, em França, onde o pintor viveu e viria a falecer em 1939, já quis conhecer algo mais sobre as origens do pintor português, pois à semelhança de Columbano, este possui um quadro no Museu de Orsay. É no mínimo estranho, que Angra não tenha adoptado este pintor como seu “filho” ou ainda os Açores não reconheçam a sua origem, ao contrário do que têm feito com tantos outros que partiram daqui tão novos ou ainda muito jovens.
         Não me canso de procurar "vestígios de vida" deste pintor naturalista e este interesse é muito simples de contar: há três anos deu-se um caso insólito na Ilha do Faial, quando fui surpreendido com a imagem de um postal à entrada do Museu Municipal da Horta, reconhecendo de imediato pertencer à capital balnear da zona norte. Mais tarde, ainda que fossem frágeis as razões da presença daquela obra por aquelas paragens, subi até ao seu interior à procura do respectivo quadro na sala de exposições do museu. Ali estava a pintura, com o título "A Volta dos Barcos", constando a indicação (Póvoa, 1891). Conviria recordar que no ano seguinte deu-se a maior tragédia marítima que há memória naquela cidade costeira e, provavelmente, no país inteiro: morreram mais de cem pescadores no regresso da faina. A partir de 28 de Fevereiro de 1892 as mulheres e os pescadores poveiros deixaram de poder usar para todo o sempre cores garridas, passando a vestir-se de preto como hábito. Um costume que ainda hoje mantém em “sinal de respeito pela perda dos seus entes queridos”.
         Sobre “A volta dos Barcos”, Adriano de Souza Lopes afirma que foi na Póvoa de Varzim que Souza Pinto pintou os seus melhores quadros de composição. O quadro está acessível a qualquer visitante do Museu da cidade da Horta, na Ilha do Faial. Foi pintado por Souza Pinto quando este tinha trinta e cinco anos, numa fase da sua vida de suficiente maturidade no desenho e onde era já um nome reconhecido junto dos seus pares artísticos. Esta obra é elucidativa da angústia, da incerteza e do desespero contido de quem espera indefinidamente por alguém que lhe é próximo, não sabendo se voltará. O olhar das crianças atenua o peso daquela mulher aflita e atormentada. Convém referir que o pintor José Júlio de Souza Pinto nasceu e viveu antes da invenção do cinema, e é, essencialmente, através desta imagem que hoje podemos imaginar, visualizar, recriar a vida dos nossos antepassados daquele tempo. Que prodígio! Da sua longa biografia sabe-se que começou a desenhar aos quatro anos de idade, por influência da mãe Anna de Souza Loureiro, também ela pintora, e que ficava com o coração despedaçado sempre que lhe tiravam a lousa com os seus desenhos. Um século depois, como seria interessante "procurá-lo" nas ilhas onde nasceu e viveu até aos catorze anos de idade. Será ainda possível?

Do Longo Mar de Poesia

Do longo mar de poesia
como língua de horizonte vaga
rima em linha no farrapo de nuvem cai,
ao claro verso apontado no debutante estio,
mói de verde o esgar das searas resguardado,
afastada bóia sem rumo nem claridade,
sob autênticos raios de sol mergulhado
em porto de abrigo das tardes idas.

Mar, Terno, Mar.

Fotografia de Eduardo Brito.

Falha

O arranque terá sido subtil promessa
em retorno de nuvem ao vulcão adormecido
descer degrau a degrau na encruzilhada
rota imerecida à cavidade distante
subterrâneo resíduo que já nada move
água quieta no vertical baque
combustão de laço em catacumba
um lapso profundo de finda melodia. 

domingo, 13 de julho de 2014

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.

Não se perdeu nenhuma coisa em mim.
Continuam as noites e os poentes
Que escorreram na casa e no jardim,
Continuam as vozes diferentes
Que intactas no meu ser estão suspensas.
Trago o terror e trago a claridade,
E através de todas as presenças
Caminho para a única unidade.

Sophia de Mello Breyner Andresen

sexta-feira, 11 de julho de 2014

As Bicicletas...






A primeira bicicleta com pedais (na roda dianteira) foi erigida, à volta de 1839, por Kirkpatrick Macmillan, um ferreiro escocês. Mas somente em 1885 apareceu a primeira bicicleta moderna reconhecível, com uma corrente fazendo a ligação dos pedais à roda traseira. Este modelo foi denominado "bicicleta segura", por ambas as rodas serem de tamanho igual, em vez do modelo anterior, no qual o ciclista se sentava no topo de uma enorme roda dianteira.



quinta-feira, 10 de julho de 2014

Boca Aberta

mergulha então por dentro de ti
no mar é onde se erguem os barcos com
suas proas femininas seus dorsos
esquivos no mar se convocam os ventos
alguém chama por ti no silêncio
ondas incham e desincham velas
cantam a canção do desejo oculto
entre as palavras só falta ao corpo
um mastro um rosto um poema
uma vírgula húmida um leme
para rasgar o mar uma língua
para lamber o sal que há nas coxas


Paulo Ramalho

Ontem, escrito numa parede da cidade

          "Nem os barbeiros andam diariamente com o cabelo aparado nem os filósofos dizem sempre coisas acertadas."

A Céu Aberto

Fotografia de Eduardo Brito

Poesia de Cardápio

Filete de Veja salteado com Manteiga de Limão e Sementes de Funcho acompanhado de Arroz  Selvagem e Salada da Horta.*

*Ementa do restaurante Cais d`Angra.

sábado, 5 de julho de 2014

An Happy Summer in the Azores

«Eis que, passados alguns dias após a nossa chegada, nos deparámos com os folklíricos, a mais curiosa espécie das Ilhas». Quem assim escreve (ressalvando-se, embora, os tropeços da tradução) é o Capitão John  B. Walkman, autor desse estranho e estravagante livro An Happy Summer in the Azores, em que entendeu deixar registo da sua passagem por algumas ilhas do arquipélago, a bordo do Seamaster.
Das razões e espantos do Capitão, erudito em demasia para a patente que ostentava, não cuidará o leitor e talvez faça mesmo por esquecer alguma sobranceria com que,às vezes, esta escrita nos olha; não deixará de anotar o intuito estilizador de Walkman, a tendência para alegorizar-nos a história e os seus fantasmas: «Os folklíricios chegaram com os primeiros colonos. Desembaracaram trazendo na bagagem o arsenal da paz construída com os mortos do futuro. Depois, através dos tempos revelaram-se de uma importância incalculável no processo de contra-subversão levado a efeito na história destes lugares: nos anos de seca, quando o mar se atirava à pedra ou as montanhas subvertidamente vermelhas se derramavam sobre as gentes, eles sentavam-se, Missionários da Ordem, nas tardes incertas lendo poemas importados, declamando literaturas mais que duvidosas às multidões que, rebentando de fome e de rezas não ouvidas, se deixavam entontecer de sono.»
Não voltou John Walkman a dispor de outro feliz verão como esse nos Açores; a morte atalhou-lhe o passo na primavera imediata, numa tarde em que levava à tipografia as provas revistas do seu livro. Nunca pôde, por isso, saber em que medida se reconheceria ou não no olhar que sobre nós lançou.
 
in Algumas das Cidades, Urbano Bettencourt.

quinta-feira, 3 de julho de 2014

“Pedra-Ilha” de Baltasar Pinheiro no MAH


       Quem foi que disse que uma pedra não "perturba" a nossa visão do mundo? Quem é que nos assegura que a energia que dela erradia não põe em causa este frágil equilíbrio ilhéu em que assenta a nossa existência? As respostas poderão estar na Sala Dacosta do Museu de Angra do Heroísmo onde estará patente, até Outubro, uma mostra de peças escultóricas de Baltazar Pinheiro. O autor das peças é terceirense, tem trinta e oito anos de idade, começou por tirar um curso de cerâmica na Casa do Sal, orientado por Renato Costa e Silva, frequentado durante muito tempo o atelier deste artista plástico. O escultor vive actualmente na Suécia, em Uppsala, estudou escultura no Gothenburg  Art College daquele país escandinavo e é lá que trabalha. O título escolhido para esta mostra foi “Pedra-Ilha” apontando assim para uma familiaridade e pertença dos materiais expostos com o espaço envolvente. O conjunto das peças exposto revela uma escultura com alma e criatividade próprias de quem pretendeu mergulhar nas raízes e aprofundar o berço que cada ilhéu transporta. É, portanto, uma escultura de afectos, memórias, força telúrica, exaltação artística de quem faz das formas vida e dedicação. A exposição transporta-nos para um mundo de revelação, tornando esse invisível que nos habita parte do mundo que é nosso. De origem vulcânica e fruto de laboriosa celebração da energia, as peças contém elementos naturais e culturais da sua ilha de nascimento. Desta feita, quem vê esta exposição interroga-se na razão do porquê da arte poder mudar e perturbar, exaltar a cada instante a beleza das coisas que se encontram em nosso redor. Destaque-se assim as peças “Anoitecer” e “Amanhecer” que reflectem o encontro com o tempo, esse testemunho individual da nossa relação com a visão fragmentada da mutação, da vida que nos escapa e segue a “inevitável marcha do tempo”. O que dizer ainda de “Celebração” ou “Pequeno monumento às memórias que se perdem”? Baltazar Pinheiro procura assim a comunhão das emoções com os materiais vulcânicos, tentando expressá-los e harmonizá-los com o que de mais táctil e depurado existe nos nossos gestos. “Pedra-Ilha” é, sem dúvida, um encontro feliz pois tal como o autor escreve no catálogo da exposição: “Tenho a necessidade de tornar visível o que sinto que existe, mas que nem sempre se compreende. A minha intenção não é acrescentar nada à natureza, mas sim conhecê-la como um participante activo, não tentando imitá-la, mas querendo que a sua energia seja o alfa e o ómega da obra de arte”. É possível, na arte de Baltasar Pinheiro tudo é possível. 

A Ilha em Frente

Fotografia de Eduardo Brito

Ontem, escrito numa pareda da cidade

- O que é o amor? 
-É um ofício diário de ociosos.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

Poema-Hélice

Na declinação do poema-hélice
um movimento oscila e afasta
aproximar esse possível veio, concentrar,
leme, luz, hipótese, rendição
êxodos diversos, pequenos círculos
à cardíaca semente perguntar
que olhos, que boca, que tez
o reclamado encontro irá abraçar?