quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Fim de Agosto

   Lembro-me de quando Agosto encerrava, quando este mês cumpria o derradeiro dia, os meus olhos humedeciam. Não sei precisar em que altura é que isto aconteceu mas sei que já possuía a consciência de que a felicidade tinha prazo de duração. A felicidade terminava no instante em que deixávamos de ouvir a palavra Agosto pronunciada amiúde em todos os lugares aí frequentados: na praia, na esplanada, no quiosque, no café, nas conversas entre amigos. Os últimos dias de Agosto eram vividos com tal intensidade que ninguém se lembrava das horas para almoçar ou jantar e o regresso a casa era feito quando o sol se despedia. O último dia de Agosto era o verdadeiro sinal de que todos nós morríamos um pouco, não que o verão findasse ali, mas porque de um momento para o outro tudo se esvaziava, o silêncio impunha-se de forma cruel e violenta, e já não sabíamos o que fazer quando Setembro entrasse de rompante. Recordo, também, um primeiro dia de Setembro em que a praia se encontrava deserta e por isso não quis olhar o mar, cerrei os olhos e voltei de imediato para casa. Esperava-me um calendário que ainda não tinha sido alterado e assim permaneceu até ao ano seguinte.

terça-feira, 29 de agosto de 2023

Azores Burning Summer: Chuva de Estrelas!

             
         O que seria de nós sem pés para andar na areia, caminhar no asfalto e galgar ladeiras? E ainda...o que faríamos sem sons, sem divas para ouvir, sem músicos e guitarristas para contemplar esta música que nos acalme este fogo interior?
       Aqui estamos nós, no final de Agosto, a perceber o significado de um festival que glorifica o contacto com a natureza e faz da música uma experiência única e inesquecível. Burning Summer Festival impõe-se, assim, como uma montra de valorização e engrandecimento da música que se faz em Portugal e da dita "world music", incitando ainda um diálogo com povos que nos são próximos, isto é, aqueles que partilham a mesma língua, para além de sessões de filmes que captam a atenção dos cinéfilos. A romaria, no entanto, é só no fim de semana dos concertos. 
        Falhada a presença no documentário "Entre Ilhas" de Amaya Sumpsi (desculpa, Amaya!), impunha-se o visionamento de "Cesária Évora", de Ana Sofia Fonseca. Foi muito interessante a descoberta deste trabalho documental exaustivo em torno da diva dos pés descalços e que nos conta o quão importante foi Cesária Évora para a descoberta da música e dos músicos caboverdianos. Cesária Évora atingiu um sucesso retumbante à escala global e viveu a música com tanta intensidade que somos contagiados pela sua forma de estar e sentir. Uma verdadeira explosão de emoções da cantora de Sodade, nascida na cidade de São Vicente, Ilha do Mindelo. 
         A noite de sexta feira trouxe os "Club Makumba", ainda sem sinal de chuva, com a presença de Tó Trips (guitarrista) e João Doce (baterista), dois conhecidos de outras andanças no território açoriano. Este concerto revelou-se uma aposta ganha com os típicos diálogos rítmicos, tribais, ora lentos ora acelerados. A adesão do público foi geral e no final não havia vivalma que não mexesse um pouco as ancas. Seguiu-se depois Selma Uamusse, uma moçambicana de alma e coração, numa entrega assaz emotiva, a lembrar o poema de José Craveirinha - "As Saborosas Tangerinas de Inhambane", dito por João da Ponte na Tascá da Rua de Lisboa, aquando da sua primeira vinda aos Açores. A cantora actuou com uma banda competente devota da sua alegria e versatilidade, evidenciada nas modulações da sua voz cálida num reportório dançável, vivo. Pouca sorte tiveram os "Arp Frique" que, apesar de demonstrarem um apetite imenso pelo groove e demais ritmos dançantes, entretanto o público afastou-se para a cobertura já que as chuvadas abundantes não deram tréguas, uma pena para Marilonah Copra que não parou de soltar slaps no seu baixo até ao cair do pano.
         A noite de sábado abriu com com a pop dançável e adocicada dos "Filipe Karlsson", banda que embalou o público com as suas canções relaxadas para quem gosta de som tranquilo e descontraído, à procura de baías com palmeiras e esplanadas com daiquiris. Seguiu-se esse monstro de palco, Paulo Furtado, inventor desse longevo projeto sonoro - "The Legendary Tiger Man"- que levou os admiradores à loucura, descendo, nos momentos finais, para junto dos fãs num grito incessante até que a sua voz se esfumasse - "Rock and Roll". Por último, os "Mirror People", projecto do ex-"X-Wife", João Maia, e que tinham como missão encerrar o festival com a sua electrónica limpa e escorreita, carregada de memórias e batida dos New Order, sem escusas para ninguém ficar parado. 
        A não esquecer que, pelo meio, antes ou depois dos concertos, tivemos a presença de dj set´s na praia e no interior do recinto, pois houve sempre música gravada a rodar pelas mãos de Isilda Sanches, Pedro Tenreiro, Laura & Mesquita, Quaresma & Galopim, Dj Piu Piu, Dj Zelecta, Dj Milhafre, Las Máquinas, entre outros, dado que com tanta queda de água, estes foram imprescindíveis para animar de sobremaneira este memorável aquoso festival na Praia dos Moinhos de Porto Formoso.

Desenho de Luís Roque

in Artes de Pesca Artesanal nos Açores 
Autor Luís Rodrigues 
 

Cahiers du Cinema

Capa da Change is God 
José Albergaria 
Colecção Designers Portugueses

 

Verso de A Garota Não

 Por um dia mais claro, por um tempo mais doce 

segunda-feira, 28 de agosto de 2023

Amor como em Casa de Manuel António Pina

Regresso devagar ao teu
sorriso como quem volta a casa. Faço de conta que
não é nada comigo. Distraído percorro
o caminho familiar da saudade,
pequeninas coisas me prendem,
uma tarde num café, um livro. Devagar
te amo e às vezes depressa,
meu amor, e às vezes faço coisas que não devo,
regresso devagar a tua casa, 
compro um livro, entro no
amor como em casa.
 

Centro Cultural Centquatre Paris

Cartaz Change is Good 
José Albergaria 
Colecção Designers Portugueses

 

À Memória de Otto Dix

         
      Já passaram cem anos da Gripe Espanhola - ocorrida entre 1918-1920 - onde sucumbiram cerca de cinco milhões de pessoas logo após a Primeira Guerra Mundial, com  quatro anos de duração, mais concretamente entre os dias  28 de julho de 1914 até 11 de novembro de 1918. Uma guerra que marcava a primeira metade da década do século XX, travada por duas grandes forças opositoras organizadas em duas alianças: os Aliados ( Reino Unido, França e Rússia) e os Impérios Centrais (Alemanha e Áustria e Hungria). A mobilização atingiu os sessenta milhões de europeus e morreram mais de nove milhões de soldados. Um desastre como se pode calcular! A primeira década de vinte fechou, assim, com uma mortandade assinalável. 
    Um desses soldados mobilizados deu pelo nome de Wilhelm Heinrich Otto Dix, nascido em Untemhaus, na Alemanha, e que veio mais tarde a tornar-se uma das figuras de proa do expressionismo alemão e onde seria imediatamente censurado com a ascensão do nazismo ao poder. Conhecedor dos horrores da Primeira Guerra Mundial, tornar-se-ia conhecido pela suas postura anti-belicista, materializada  na sua obra “A Guerra”, funcionando o seu trabalho visual, ainda hoje, como reflexo e símbolo de qualquer luta contra a irracionalidade e bestialidade da guerra.

Agosto com Cinema nos Cineclubes

       
            São apenas quatro quilómetros que separam as duas cidades nortenhas (Póvoa de Varzim e Vila do Conde) e onde sempre coexistiram cineteatros com longa tradição na exibição de cinema. Estamos, assim, no Verão e ambos os cineclubes oferecem sessões com filmes a quem está de férias. As ruas encontram-se novamente cheias de turistas com línguas diferentes, assim como o português do Brasil é agora de fácil de escutar em qualquer espaço de convívio. Há, como é tarimba cineclubística, filmes dos quatro cantos do mundo para ver e apreciar. Começámos pelo francês “Os Filhos dos Outros”, de Rebecca Zlotowski, que retrata a vida de uma professora de meia idade que um dia conhece Ali, com quem desenvolve uma relação afectiva, sendo este pai de Leila de quatro anos. Virginie Efira, no papel de Rachel, chega assim a questionar o seu percurso existencial: ser mãe ou entregar-se ao cuidado da filha do companheiro. Um belíssimo papel de uma actriz num filme comedido. Continuando no cineclube Octopus, espaço afirmativo de uma programação cinematográfica diversificada e eclética, agora a completar quarenta anos de idade, voltou a apresentar – “Tenho Sonhos Eléctricos”, de Valentina Maurel. Um filme costa-riquenho que nos transporta até uma adolescência virada do avesso pelo divórcio dos pais e que é um mergulho nessa inquietação juvenil com dores e crises de crescimento, ainda que repleto de lugares-comuns, sempre com muito ritmo e muita alma. Dias depois e, de regresso ao Solar de Vila do Conde, para assistir na noite de sábado ao ar livre a “Elis &Tom”, de  Roberto Oliveira. Cem minutos de pura maravilha, com imagens e depoimentos de João Marcelo Bôscoli (filho de Elis Regina), Helio Delmiro (guitarrista do disco “Elis&Tom”), André Midhani (diretor geral da Polygram em 1974), Beth Jobim (filha de Tom Jobim), Nelson Mota (escritor e compositor), César Camargo Mariano (pianista e arranjador do álbum), entre outros. Quase cinquenta anos depois vemos imagens inéditas, o relato e as incidências desse álbum considerado por muito boa gente com uma obra prima.  
          Por fim, ainda que dentro da programação estival do Cineteatro Garrett, houve tempo para visionar  “Oppenheimer”, de Christopher Nolan, que retrata o universo da energia nuclear e o conhecimento que deu origem à criação da bomba atómica, num filme recheado de efeitos visuais com uma forte componente sonora e que tem na presença fulgurante de Cilliam Murphy, o seu motivo explosivo. E, talvez por isso, num verão ainda que sobre aquecido...teremos sempre estas cidades costeiras amantes da sétima arte e da nortada bem fresquinha!

Flirt da Galeria Zé dos Bois

Projecto do Atelier Barbara Says
José Albergaria 
Colecção Designer Portugueses 



 

Design de José Albergaria

José Albergaria
Colecção Designers Portugueses 
    Os livros recentes "Nuvens" e "Chá nos Açores Uma Tarde na Gorreana", que versam o arquipélago açoriano, foram desenhados por José Albergaria, a convite da Araucária edições. José Albergaria é açoriano (Ponta Delgada, 1970) e vive na capital das luzes: Paris. É por lá que desenvolve actividade gráfica de puxar pelo olho e atenção do leitor, tendo começado muito novo a desenvolver o grafismo em revistas, jornais e afins. Na pesquisa  da sua obra encontrámos trabalho ou projectos gráficos efectuados pela “Chang is Good” em publicações distintivas como o jornal “Libération”, a revista “Cahiers de Cinema”, ou mesmo a marca de cerveja “Vedett”. Recentemente desenhou o catálogo “Tudo o que eu quero — Artistas portuguesas de 1900 a 2020”, pondo em relevo a obra de 40 artistas mulheres, oriundas de percursos e gerações distintas. 

sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Da Paisagem Sonora

         "A paisagem sonora portuguesa é singular. Singulares são os seus silêncios. Há muito que fazer para os compreender para lhes dar perspectiva histórica. Singulares são os seus sons e o modo como esses sons são por nós interpretados no quotidiano e usados no trabalho. Há um património sonoro importante a preservar. Singular é também o problema do ruído. A legislação existente, por muito generoso que possa ser o seu carácter e por mais competente que seja tecnicamente a sua construção, não contribuiu para resolver o problema. As sucessivas medidas regulamentares que foram sendo publicadas ao longo dos anos não parecem ter contribuído significativamente para uma solução aceitável. O ruído continua a constituir uma das causas principais ou mesmo a causa principal de reclamação no domínio do ambiente, a surdez profissional é hoje a primeira na tabela das doenças de trabalho e os números absolutos não parecem cessar de aumentar. Há um trabalho urgente a fazer para compreender as origens do problema do ruído em Portugal e dar-lhe uma efectiva solução. O que foi feito até agora é manifestamente insuficiente." 

Carlos Alberto Augusto in Sons e Silêncios da Paisagem Sonora Portuguesa, Edição FFMS, Maio 2014. 

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

Da Biblioteca

       "Talvez a inspiração me venha da luminosa ideia de Rui Tavares que gostaria de ver construída, em Lisboa, "uma grande biblioteca pública de dimensão europeia internacional, aberta a toda a gente e a todas horas": Talvez seja a noção de que este torpor de Agosto nos deixa a todos indolentemente desinteressados da política. Ou talvez seja, por uma vez, simples, pura e inescapável preguiça. Seja como for, uma coisa é certa: tenho já a cabeça e o coração no "meu" Pico, esse imenso "torresmo" que sei que é azul e verde, mas que Raul Brandão chamou "roxo e diáfano, violeta e rubro" e onde, por esta altura do ano, me recolho há quase uma vida, na companhia da família e de uma boa pilha de livros."

Pedro Norton in O Paraiso, como dizia Borges é uma espécie de biblioteca, 8 de Agosto de 2023. 

terça-feira, 8 de agosto de 2023

Santo Amaro por Alberto Péssimo

in Santo Amaro Sobre o Mar
Urbano Bettencourt 
 

Da Religião dos Livros

         "A organização ocupa parte da vida do bibliófilo e é também uma das suas maiores aflições. Há quem arrume livros por épocas ou por ordem alfabética - há até um cliente famoso entre os alfarrabistas que organiza os livros pelas livrarias em que os comprou  - e quem opte simplesmente por uma organização afectiva. No entanto, ninguém, viva numas minúsculas águas-furtadas na Mouraria ou num castelo no Vale do Loire dispõe de espaço suficiente para os livros. Não há bibliófilo que não compre mais livros do que aqueles que cabem no espaço disponível, e que não sofra com a compra dos 11 volumes do Dicionário de Morais ou com os 65 da História de Espanha por Menéndez Pidal por não saber onde os há-de pôr. Alguns livros jazem  assim indefinidamente em escritórios e armazéns à espera de qualquer milagre da multiplicação do espaço que permita ao bibliófilo ter a sua biblioteca finalmente reunida e organizada."

Carlos Maria Bobone, in A Religião dos Livros, Fundação Francisco Manuel dos Santos 

domingo, 6 de agosto de 2023

Cinema ao Ar Livre: Curtas no Solar

         Uma noite de sábado deste início de Agosto para ver o Melhor da 31ª edição do Festival Curtas Metragens de Vila do Conde ocorrido no último mês de Julho, entre os dias 8 e 16.  A sessão começou com Rosemary A.D. (After Dad), do realizador estadunidense, Ethan Barrett. Uma pequena história ilustrada sobre o amor e a morte, animada pelo humor e a beleza dos desenhos explorados subtilmente por um narrador irónico q.b. Seguiu-se Natureza Humana, da realizadora portuguesa, Mónica Lima, detentora do Prémio do Público e Prémio Sociedade Portuguesa de Autores, tratando-se aqui de um sugestivo quadro sobre a espera e o desespero de um casal à procura de descendência. A realizadora soube contrastar a infertilidade com a explosão da natureza e a vivacidade das crianças em redor. Certamente um filme de alguém que adora a fotografia e o desenho arquitectónico. Outro filme foi Il Compleanno di Enrico, do realizador italiano, Francesco Sossai, conta-nos a chegada e presença num aniversário de uma criança e é, através do seu olhar e da sua procura de aceitação e compreensão, que o seu mundo se nos apresenta tão desconhecido e extravagante. Apesar de toda a estranheza, eis-nos perante um bonito gesto cinematográfico sobre a diferença e diversidade. Por último, foi exibida a curta 2720,  do realizador luso-suíco, Basil da Cunha, que obteve o prémio para Melhor Realizador Português. Trata-se de uma curta-metragem trágico-cómica de um bairro periférico de Lisboa em que a língua é o criolo mas a indiferença e a vergonha é toda nossa. No fundo, um filme enérgico, movimentado entre o interior e exterior, mantendo sempre o humor e a música como elementos de uma cultura maior.

Provérbio

Lua de Agosto dá no rosto

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Fuga em Dó Menor de Ana Paula Inácio

o tempo passa 
os dragoeiros ficam 

assim com os anéis 
os múltiplos dedos 

in Anónimos do Século XXI, edições Averno, Outubro de 2016

terça-feira, 1 de agosto de 2023

Sobre Um Pouco da Alma de Rui Machado

      “Apesar de não serem, entendidos de forma literal, poemas do lugar, são poemas marcados, inevitavelmente, pelo lugar. Quero dizer, são poemas de mim no lugar, poemas da maneira que são porque eu era daquela maneira ao estar ali. Afinal de contas, não se pode fugir disto: somos o que somos, e fazemos o que fazemos, também por causa dos lugares que habitamos. Cada um a seu modo, tal qual como a uva da vinha, somos frutos de um terroir (risos). Um Pouco da Alma não seria o que é, ou talvez nem sequer existisse, em parte ou no todo, se não fosse a experiência de viver aqui, na cidade da Horta e na ilha do Faial. Seja pelo ritmo ou pela respiração, seja por aquilo que é dito ou por aquilo que é somente insinuado, este livro tem, inevitavelmente, a marca do lugar. Isto apesar de evitar os localismos. Não se trata de uma questão de escolha, mas de um processo natural. Vivemos em lugares e neles é que respiramos e o vento nos sopra no rosto, ou não é assim?”

Entrevista a Rui Machado, Tribuna das Ilhas, Maio de 2023.