sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Ideologia


       “Meus heróis/Morreram de overdose/Meus inimigos/ Estão no poder/ Ideologia!/ Eu quero uma pra viver/Ideologia!/Eu quero uma pra viver/Ideologia!/Pra viver/ Ideologia!/Eu quero uma pra viver.”
Cazuza
Cazuza, cantor brasileiro, morreu quando tinha apenas trinta e um anos de idade e oito anos de carreira musical. Na sua curta existência gravou 126 músicas, mais 20 na voz de outros intérpretes e mais de 60 canções inéditas. Ontem, na Travessa dos Artistas, em Ponta Delgada, o novíssimo “Acorde Ortográfico”, composto por William Maninho Nascimento e Nélson Cabral decidiu homenageá-lo ao cantar, em forma de dueto, o tema “Ideologia”. Bonito, sem dúvida!

quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

Dança dos Estorninhos

A cantora em pose nada avista
desimpedido  palco ao cair da tarde
compõe-se de baile o desenho a cada ocasião
comportamentos artificiais desbotoam
no voo escondem feições em rosto de cão
desatinam no celeste céu, negra alomorfia.

Iludem o horizonte com meneios harmoniosos
ao comprido da brisa marinha se estendem 
afagando oceano em ondulado enlace.


Rosto de Cão, São Miguel, 29 de Janeiro de 2014.

Canção para Martina e o Beliche

Reler clássicos poetas pela manhã
hidrogénio, hélio, lítio na tabela
alvo xaile no diverso festival
leituras e varandas do sossego
o sol a colar a sombra na voz
secar semente calar recordação
químico perfume das mangas na canícula.

Envio de missivas sem resposta
grafar nórdica desaparição
o terceiro mundo aflito
descem da escada o enleio inaudito
resgatar filmes sem cor nem abrigo
repetido relatório em comoção.

quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Calças Vermelhas

amanhã vou comprar umas calças vermelhas
porque não tenho rigorosamente nada a perder:
contei, um a um, todos os degraus
sei quantas voltas dei à chave,
sublinhei as frases importantes,
aparei os cedros,
fechei em código toda a escrita.

Amanhã comprarei calças vermelhas
fixarei o calendário agrícola
afiarei as facas
ensaiarei um número
abrirei o livro na mesma página
descobrirei alguma pista.

Ana Paula Inácio

terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Cidades de Passagem

Tenho viajado muito
nem sempre na melhor altura.
Em Bolama ninguém me acompanhou
na casa de chá em ruínas onde as chávenas
estremeciam sempre que uma granada
caía sobre a praia.
Passei por Trieste numa tarde triste.
Na sala do Hotel Garibaldi o pianista
amparava-se nos Nocturnos de Chopin, à meia-luz,
havia uma chuva fina e George Sand
não apareceu.
Del Giudice julgava ainda
poder encontrar-se com Gerti;
ela, porém , partira há muito levada
por um verso de Montale: i sedicenti vivi
non sono tutti morti.
Na estação o Anjo serviu-nos um café forte.
    D.G. partiu também por fim
pude ver o comboio perder-se
por entre a chuva e a noite.
Em Amesterdão
marinheiros mijavam para o céu
que não havia
e as estrelas caíam,
mesmo assim, nos seus cabelos. Um cantor rouco
de raivas e ternuras comovia-se até aos ossos
com a virtude das mulheres infiéis.

Urbano Bettencourt

segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Canção para Helena e a Pensão

Perdido o reencontro na estação
subsiste o reflexo de canais e diques
o  raso périplo à nação sem cortinados
as bicicletas ainda atravessam a lembrar
o varonil apelo em alcova de pitança
depois de incursões nas areias febris
a consumação da adultez  na decrépita Atenas
e as brasas a poisar no fogo das boleias.

Ao delicado endereço rumar
tão esticados passeios nas estradas
companhia de homens de bigode farto
aventura de tenaz  tulipa em sintonia
o girassol à chegada e a bicicleta.

Beatriz, Beatriz!

Excertos de uma entrevista da actriz Beatriz Batarda a Lúcia Crespo no suplemento Weekend do Jornal de Negócios, no dia 24 de Janeiro de 2014:

Beatriz Batarda em "Quaresma" de José Álvaro de Morais
I
        “Por vezes, sinto uma certa indecisão na forma de estar do portugueses, se devemos ser activos no desenhar do caminho do país ou apenas seguirmos, numa posição demissionária e ausente, responsabilizando os governantes e desconsiderando o poder individual. Eu tento participar, dentro daquilo que é o meu espaço e a minha limitação, no desenho daquilo que pode ser o futuro. A verdade é que não sei muito mais do que isto. Tenho, desde que me lembro, dedicado a vida à representação, à arte de contar histórias, e também ao ensino, esperando poder contribuir para a passagem de um testemunho.”
II
      “Não sei qual o caminho futuro que nos propõem ao sujeitarem-nos a tanto sofrimento. Seria muito injusto culparmos a geração dos nossos pais, mas não podemos deixar de pensar que eles são, de certa forma, responsáveis, porque nos foram passando o seu próprio desencanto.”
III
         “A cultura, por exemplo, é um dos espaços mais humanos e democráticos a partir do qual pode nascer a reflexão e diálogo, por ser interior, por ser íntimo. Às vezes, a vida corre e não nos permite fazer esse exercício do espelho, e a cultura devolve-nos esse momento. Não é, como disse, uma função moralizante, nem tão pouco pedagógica, mas é a de criar espaço de diálogo. A ausência, o vazio, o silêncio – que eu espero que não venha a acontecer de uma forma definitiva - é de facto uma perda grave para todos os portugueses. Acho legítimo dizer que a nossa sanidade está em risco."

sábado, 25 de janeiro de 2014

O Imaginário de Luís Brum

Ilha Terceira por Luís Brum
(desenho para capa do Fazendo nº85)

Gente Feliz com Lágrimas: 25 anos depois.

      “Se vires a minha boa estrela/ Diz-lhe que estou a naufragar/Diz-lhe que quero muito vê-la/Que estou perdida no meio do mar.”

Fado Sete Estrelo, letra de Zeca Medeiros e voz de Mariana Abrunheiro.

Há vinte e cinco anos o escritor João de Melo escreveu o romance. O músico-realizador Zeca Medeiros realizou, alguns anos mais tarde, a série televisiva tal como escreveu letras para uma banda sonora, que contou com a voz de Mariana Abrunheiro entre outras. A livraria SolMar reúne hoje João de Melo, Zeca Medeiros, Vamberto Freitas, Carlos Ferreira e Urbano Bettencourt para conversar sobre este trabalho literário bem como o seu eco tantos anos depois.

sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Envio para os Alpes Suiços da Missiva de Janeiro.

                                                                                Solar dos Manaias, PDL, 24 de Janeiro de 2014
 Caro Janeiro Alves,
Despeço-me do mês em que o meu amigo dá pousio às letras e às divagações literárias. Sei que aproveitou para realizar viagens de comboio – o mais repousante e poético meio de transporte disponível – e ainda para se cultivar em bibliotecas diosas do sul da Europa. Espero, por isso, ansiosamente a sua missiva de Fevereiro vinda dos Alpes que me contará as suas novidades e mais recentes experiências orbícolas.
Na segunda semana de Janeiro desloquei-me com a maravilhosa Miriam ao nosso semanal mergulho de Inverno na praia do Pópulo - deserta, apetecível e estendida, tal como se deseja. Ao largo, um navio perdido no horizonte e os usais carneirinhos do mar. Aproveitámos essa solarenga manhã para nos banhar nas ondas e admirar a policromia existente. À tardinha, acompanhei também Miriam até ao aeroporto, pois esta partiria para a capital do antigo império para visionar filmes de um sueco de que já ninguém quer saber no seu próprio país: Ingmar Bergman. Miriam irá presenciar dezassete dos seus filmes no Nimas e comprometeu-se comigo a fazer o mesmo número de poemas. A minha relação com a Miriam tem sido, como deve calcular, bastante intermitente, muito por culpa destas ausências e solilóquios prolongados, tanto dela como meus. É de, facto, uma artista com letra maiúscula (ou caixa alta, como queira) e em que me sinto sempre a estremecer quando posso usufruir e partilhar da sua admirável companhia. Uma das minhas últimas descobertas é constatar que esta mulher incrível do clã Manaia pinta como poucas. Recentemente convidou-me para a cave do solar e, após nos termos afeiçoado mais um pouco, logrei finalmente observar a existência de três das suas obras plásticas mais frescas e estimulantes: “Farândola Poética da Rua do Colégio”; “Darandina” e “Caligem”. Que artista, esta Miriam!
         Entretanto foi na Pedro Homem – homenagem a esse antigo escrivão do reino - que, enquanto contemplávamos as suas cinquenta e quatro habitações do casario da rua, que confessei a Miriam o plano do seu primo: Vivaldo Manaia, há muito radicado de livre e espontânea vontade no norte italiano: Milão. O plano denominado de “Salvem os PPP´s” (Pensar e Planear os Portugueses) constitui em dedicar um dia para pensarmos e planearmos o país e os portugueses. Vivaldo assegurou que durante esse dia ninguém acenderá os televisores ou consultará computadores ou faceboques. Ele pretende que ao longo de vinte e quatro horas as ruas sejam novamente Ágoras de pensamento e de debate público. Com isto, Vivaldo acredita que pelo menos durante um dia a democracia será restaurada e assegurada, ao mesmo tempo que se permite que os cidadãos possam olhar nos olhos uns dos outros e pensar no que falta fazer bem como planear o futuro daqui para a frente. Vivaldo asseverou também que tudo fará para que durante esse dia ele não tenha qualquer ímpeto de se passear com os seus cães o que é para mim uma grande surpresa e causador de algum mistério e secretismo. Da mesma forma que não sei de que intenções e circunstâncias ele dispõe para pôr o seu plano em curso. Miriam recebeu a notícia com espanto, beijou-me e…retirou-se abruptamente para a  cave do solar.
         E, por agora, é tudo, amigo Janeiro. Aguardo impacientemente pela sua missiva e pelo regresso de Miriam Manaia.

Seu fiel amigo, Doutor Mara.

Ilha das Flores

Ilha das Flores
Fotografia de Tiago Rodrigues




terça-feira, 21 de janeiro de 2014

Documentar

"Um país sem documentários é como uma família sem álbum de fotografias."
Patricio Guzman

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Pública Poesia

                      "E portanto
                    antes que decidas trocar o silêncio
                         por novas tapeçarias – procura o
                         amor por entre o ritmo das folhas
                                                                 lá fora."



Ilustração de Pedro Valim
Leonardo Sousa
            
             Ler poesia é um acto que comporta alguma seriedade e justeza. Num primeiro plano é uma tarefa rodeada de alguma exposição e uso pessoal dos textos de outros, já que são poucos os que lêem a sua própria poesia, podendo e devendo  ser esta uma fonte de valorização e enriquecimento da palavra em verso ou não, nem sempre aceite ou compreendida pelos arredados das letras. Há, portanto, nestes  momentos de leitura de poemas em público em que a poesia pode sair a ganhar mas também é certo que muitas vezes corremos o risco de banalizá-la caso esta seja desvirtuada dos procedimentos com que foi realizada.
            É justo pensar que cada poema tem a sua organicidade, isto é, o seu próprio funcionamento interno. Não há aqui nada contra a leitura espontânea (o autor deste texto já a concebeu muitas vezes, evidentemente) de poemas junto do público. A não ser que quem o diga seja também o autor dos próprios poemas que se encontra a dizer. Quando se lê  poemas de  outros poetas penso que devemos tentar saber tudo sobre os autores em questão e o período em que estes foram escritos. Conhecer-lhe os modos e o tempo entre quem  escreveu os seus poemas e o tempo actual, descobrir-lhe os gestos possíveis ou imaginários, cruzar referências ou perceber os seus tempos, ingressar a fundo nos temas se os houver, e, a partir daí, encarnar um tom num conjunto de possíveis, essencialmente, experienciar individualmente os poemas antes de poder proferi-los publicamente. Um poema deve, sobretudo, funcionar para quem lê, trabalhá-lo enquanto ritmo, tempo e acentuação e só depois apresentá-lo aos ouvintes. Por isso, é importante mostrá-lo a alguém, sobretudo alguém atento que possa ser perspicaz na crítica da forma e do dizer, na exigência constante de uma boa leitura. Há, certamente, neste mundo da poesia, muito boa gente convencida que diz muito bem a poesia dos outros em público. Mas também não mentiria se dissesse que por vezes são raros os que, no meu entender, ganham novos ouvintes para a poesia e concedem aos escritores e poetas mais algum tempo de existência.

Operação Baco

"A Guarda Nacional Republicana transformou o acto de beber num romance policial."
 

sábado, 18 de janeiro de 2014

Canção para Luísa e o Armário

Talvez existisse verão e não me recordo
o suor, antiga casa, correria 
a terra e sabor das mãos nos frutos  
uma corda com roupa a secar
depois da escola tantos saberes
dois minutos e uma canção para ti,
amada Luísa à beira mar,
clausura no armário, tanto requeimo,
inicial beijo principal assomo

Crescemos depressa sem saber
brincadeiras e folias em destroços
após infância outros contentamentos
decorados no corpo e na palma da mão
pedido de loucura e desatino
salto à corda  naquele friso suficiente
digo ausência e sombra no teu rosto
existência narcísica ao espelho
conciliados num armário e tanto calor
primordial afago fundacional amor

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Apetecia-me hoje tanto o Silêncio

Apetecia-me hoje tanto o silêncio
extinguir pelas ruas de caligem e de cinza
desfiar claves num piano de Arvo Pärt
afogar-me nas arrefecidas águas de Janeiro  
ave agoniada em sobressaltado mergulho
abolir darandina encomiástica do cacau
carguejadas estantes de letras por ler 
ou o torpor dos membros já alçada.


Apetecia-me hoje tanto a solidão
sério desapossar de provações
emudecer receios, cóleras desvairadas,
cochado deleite da escrita
dedicações, desalinhadas convenções,
júbilos cerrados sem remissão
fatalidade convertida em vela morta
ou a cidade apartada da táctil relação.


São Miguel, 16 de Janeiro de 2014

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

(Para quê Poetas em Tempo de Indigência?)

Levantar a gola do casaco,
Esconder os punhos já puídos
E defender, com os dentes cerrados, as palavras:
mas quem aguenta mais este murmúrio vão,
que não colhe mais as flores do mal nem a luz
radiosa na própria miséria?
Resistir, como sempre fizeram os humilhados.
Decorar palavras antigas.
Repeti-las, para que não sejam esquecidas,
aos vindouros.



Luís Filipe Castro Mendes in, "A Misericórdia dos Mercados", “Assírio e  Alvim”, 2013

(Fechou a Escola em Grijó)

Dantes enviavam-se as crianças a caminho da escola
e eram como pássaros de som nas manhãs de Grijó
Não eram muitas, mas as vozes joviais
davam sinais que a aldeia resistia,
continha à distância o deserto que as ronda
como a alcateia ronda uma rês tresmalhada.

Agora as crianças, todas as manhãs,
são acondicionadas como mercadorias
numa viatura com vocação de furgoneta.
Lembram judeus amontoados

em vagões jota a caminho de algures.
Vão aprender em terra o que os seus pais
E os pais dos seus pais aprenderam em Grijó.


A.M. Pires Cabral (Gaveta de Fundo, edição Tinta da China, Novembro de 2013)

segunda-feira, 13 de janeiro de 2014

"A História dos Açores" de Tiago Rosas

     Tiago Rosas realizou um pequeno filme de animação com o título “História dos Açores”, na totalidade dois anos de labuta continuada e intensa. Trata-se de uma curta-metragem de escassos dezoito minutos e onde podemos ver e ouvir em desenho animado uma visão/perspectiva histórica das ilhas açorianas através de diferentes épocas socioeconómicas. A voz da narração pertence a Zeca Medeiros que nos vai contando a cultura, as lendas, os mitos e as transformações ocorridas no arquipélago desde o povoamento até aos nossos dias. Saliente-se aqui a visão particular do autor do filme sobre a história do arquipélago – o retrato do período pós ciclo autonómico é nisso muito interessante e estimulante, tanto visual como narrativamente - conferindo assim um carácter e marca autoral à animação que é sempre salutar de manter. A produção é da Anfíbios e os textos de Magda Furtado são ditos de forma cuidada e atraente, não deixando por isso de ser rigorosos, o que seria pedagógico e motivo de curiosidade para a divulgação deste trabalho junto das escolas e dos centros de formação bem como junto de todo o público interessado nesta visão particular da História dos Açores.

À Deusa do Engano Hei-de Ir

A Deusa do Engano encena
atrai os incautos pela rua acima
pautados aventureiros do êxodo pela sede
cansados das agruras do mar
da labiríntica floresta cativos
a sedução não permite desistir
mensageira das delícias do bem-querer
desponta a luz na janela lá do alto
a casa iluminada cai
quase morre na artéria
Pedro Homem à medida desenhada
humana escala
loa à arquitectura
darandina presente de volantes
mínimos bordos sem vasteza
apelo e chegadaao leito da diva 
do demorado engano
à  sua pretensa 
infatigável morada

domingo, 12 de janeiro de 2014

As Nádegas

Picasso precisou apenas de quatro traços. Para desenhar o mundo.

Jorge Sousa Braga

Impressões

ao E.J.B

No Shopping Solmar dois poetas encontraram-se em pleno centro de cópias ambos possuíam problemas de impressão.

Autógrafos

1.

Eu acredito no meu pai
nascido em 1941
quando vem, de manhã, todo nu
tapar-me com um cobertor

Paulo Campos dos Reis

sábado, 11 de janeiro de 2014

NEPAL-A Verticalidade do Silêncio na Galeria Arco 8

     O  fotógrafo Pepe Brix, natural da Ilha de Santa Maria, nasceu em 1984 no seio de uma família com pergaminhos no mundo da fotografia. Recentemente viajou pela Índia e pelo Nepal acompanhado pela sua máquina fotográfica mais a sua determinação infinda de registar o que os seus olhos iam vendo e observando ao longo da viagem. Com o decorrer de tal empreitada foi descobrindo o aprumo dos gestos e do silêncio dos nepaleses, de tão magnificente geografia, bem como das suas paisagens e cultura. Pepe Brix apresenta agora as suas fotografias a preto e branco, patentes até ao dia 9 de Fevereiro na Galeria Arco 8. São imagens deste périplo nepalês com a entrega de quem viaja e a reciprocidade de quem recebe contando sempre com o particular ensejo de fixar os rostos e os olhares das gentes, do(s) modo(s) de vida à religião. O fotógrafo dá-nos a ler também os seus escritos bem como ainda o texto de apresentação desta exposição dedicada ao Nepal onde podemos ler que “o travo milenar da sua cultura confere ao país um núcleo magnético incrivelmente denso.”A abertura da exposição está marcada para as 22 horas da noite deste sábado.

Vânia Dilac: Cantora ou Diva?

         Vânia Dilac é diva das cantigas e das antigas pois tem o dom e a dádiva de encantar para quem tiver intenções de se deixar render e cativar pelo seu canto. Esta é, sem qualquer dúvida, uma voz desmedida, solta, com rédea livre de quem sabe que nada nem ninguém  pode travar aquele curso de águas cálidas que na sua voz habita na máxima energia e vitalidade. Por isso não lhe peçam grandes teorizações sobre os seus temas que interpreta – apenas que cante no auge da sua sinceridade vocal. Por mais que ela enfeitice com a sua voz este centro histórico da cidade de Ponta Delgada, em plena Travessa dos Artistas, com música sem muros nem ameias e, essencialmente, com o fervilhar da interpretação de temas de outros autores:“Blue Moon” de Frank Sinatra, “Fever”, de Peggy Lee, “Summertime”, de George Gershwin, “Sodade” de Cesária Évora ou “Halleluyah” de Leonard Cohen, é nos temas cantados em português que este ardente canto em tons de veludo ganha velocidade, espessura  e rumo. Acompanhada por Paulão (bateria) e Clayton (teclados) é, portanto, uma voz que propaga com rapidez  calor e chama neste Inverno frio e húmido. Ouvi-la a cantar Amália Rodrigues (“Barco Negro”), Paulo de Carvalho (“Mãe Negra”) ou Jorge Palma (“Frágil”) é acreditar que há um vulcão interior em ebulição pronto a expelir sons e trovas carregado dum eco feminino dolente e magoado, profundamente negro como a maioria das vozes da soul, a carimbar o timbre da sua alma africana. É de arrepiar quando  eleva a sua voz nas canções de Amália ou Jorge Palma,  naquele português misturado, modelado e mélico para de imediato lhe sentirmos a garra,  o enleio sonoro, o sentimento pujante em cada frase melódica. Uma pérola, evidentemente.
         Escutar Vânia Dilac é também um privilégio por podermos imaginar o quanto estará por vir já que aqui há qualquer coisa de vidro fino, delicado, um diamante em bruto por lapidar, e que é necessário preservar e cuidar enquanto ele irradia de fulgência e de brilho. A cantora  vive em São Miguel, bebe muita música soul e o blues num arquipélago que fica não muito longe do local de origem destes géneros musicais, sendo normal que  almeje voos mais altos ou  deseje cantar em outras paragens, palcos  e destinos. Entrementes, para uma cantora que absorve as águas cálidas da ilha há mais de trinta anos, ela nasceu em Moçambique, bem como sabe de cor e salteado as dores e as mágoas das nossas maiores cantoras que a precederam, bastava que cantasse e fizesse um disco pessoal com uma dezena de poetas ou cantores nesta língua que nos une para firmar e confirmar o seu talento neste tempo e espaço, o emergir de uma grande voz em território insular, tantos anos depois da fase de oiro das vozes femininas de 80/90 da música açoriana.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Filmes de Ingmar Bergman nas salas

Ingmar Bergman, Sven Nyqvist, Erland Josephson e Liv Ullman
     A Leopardo Filmes promove em Janeiro um ciclo de filmes do realizador sueco Ingmar Bergman nas cidades de Lisboa (Nimas) e Porto (Teatro do Campo Alegre). O país e os portugueses, agora apelidados de “suecos do sul”, terão uma oportunidade sem par de conhecer a obra deste superior criador da sétima arte. Dez filmes restaurados e um total de dezassete obras do realizador para ver em tela e depois passar  os dias e as noites a falar sobre eles. Está lá tudo o que é possível pensar sobre a alma humana e ainda as suas mulheres, todas elas de uma beleza singular e expostas enquanto actrizes como só ele as soube filmar, e por isso adivinharam ser as personagens que ele quis nos papéis mais dolorosos, intensos e impenetráveis –“Mónica e o Desejo”, “A Sonata do Outono”, “Lágrimas e Suspiros”,“Máscara” entre outros. Que júbilo poder (re) ver Liv Ullmann, Anita Björk, Ingrid Thulin, Harriet Andersson, Bibi Anderson ou Ingrid Bergman em papéis tão diferentes e desiguais mas com a nítida sensação e alguma certeza ao constatar que o cinema deste sueco, malgrado o seu desaparecimento recente, continua a ser uma excelente poltrona para pensarmos a vida e o mundo.

Entrevista, poema de Mircea Dinescu.

Aqui no campo está tudo bem e bonito
os princípios envelheceram um pouco
mas o álcool medicinal passado pelo pão rejuvenesce
e o médico recomenda-o para "uso interno".
Aqui o adro da igreja foi devolvido à agricultura
o porco mastigou a criança esquecida no berço
(de qualquer modo um e outro eram do Estado)
em geral está tudo bem aqui no campo
os pequenos vêem televisão de caneca nas mãos talvez dê leite
na rádio acabámos há muito a colheita
e em breve a acabaremos nos campos
em geral está tudo bem aqui no campo temos betão é bonito
se comprares o ovo na city
se a fábrica de chouriço deixar de piscar
o olho aos cavalos.

Aqui no campo está tudo bem
os bombeiros em geral põem fogo às casas é bonito
o tractor abre entre uns e outros
entre uns e outros um sulco profundo
está tudo bem e bonito.

Mircea Dinescu,  poemas , 1950, tradução de Rosa Alice Branco

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Batel

Não cheguei a roubar o coração
que fez mover o teu batel
juro que não fiz por mal
deixei-o intacto e sem mácula
talvez assim encontre o rumo
descubra finalmente sua rota
afinal era um barco de papel

Mosteiros: a Vera Ilha.

      “(…) mas estamos tão pouco
onde estamos”


José Tolentino Mendonça

         Foi inesperado e surpreendente aviso de poeta, pensei. Mas que havia de visitar um dia os Mosteiros, a vera ilha. E numa circunflexa e solarenga manhã de Janeiro cumpriu-se a visita a tão recôndita povoação. A negrura e o recorte dos Ilhéus e um céu pintado de azul claro mais o branco da espuma compõe a veracidade de tão magnífico lugar. O motor e o barulho das vagas na invernia e a proximidade das nuvens solidificam o cenário de um adormecido porto e com ele os seus barcos à espera que da bonança se possam aproveitar um dia  – um dos "boca aberta" tinha a denominação de Aristóteles – e a visão daquele rochedo  com o desenho de uma casa abandonada, a lembrar o Ilhéu das Cabras (agora percebo, amigo Rui), o sol de oiro ali derramado a lembrar a tua Terceira, a neblina que cai sobre as águas límpidas e cristalinas, como se tivessem a mesma forma  das rochas dos Biscoitos e a certeza de um tempo e inspiração que a qualquer momento retomem o seu curso, ainda que sem máquina fotográfica e apenas um bloco de apontamentos.

Aquoso

A minha cabeça é vagamente sólida
respiro como os golfinhos
afundo velhas carcaças no mar
é de prever que a quilha meta água.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2014

Meia Praia

para o António Perdigão


Tentei ser pintor e o que vejo
não chega para uma única tela
atravesso o horizonte de olhos fechados
e escrevo o teu nome pela metade

segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Um Homem Sonha Deitado Sobre Nuvens



Fotografia: Eduardo Brito
Um homem sonha deitado sobre nuvens. Quando um homem abre os olhos tem a cabeça pousada sobre as nuvens. As nuvens não precisam de almofadas. As nuvens por vezes escolhem a cor em que os homens se deitam sobre elas. O vento sabe escolher as circunstâncias que sopram sobre o homem que cresce a pensar as horas do dia em nuvens. Um homem que vive e sonha nas nuvens é um nefelibata. Um homem que está nas nuvens não é deste mundo. O homem que aprende a olhar as nuvens arrisca-se a cair. Um homem que gosta de nuvens há muito que escolheu viver acima das suas possibilidades. O homem que sabe distinguir as nuvens há muito que descobriu que o tempo não é bom conselheiro. Um homem que sonha com nuvens sabe que a qualquer momento pode chover. O que existe para lá das nuvens do homem que sonha? 

Um homem que sonha com nuvens só acredita num único gesto que lhe restituia a direcção desejada. Assim de uma única vez, num único trago, de uma assentada. Como se o mundo parasse para a ver passar. Ponto final, sem vírgula. Mudar de rumo, alterar a direcção, intuir o movimento, alcançar a velocidade desejada. Há momentos na vida de um homem que ele quer agarrar a nuvem e nem sempre consegue. Um homem deseja abraçar a nuvem e ela desfaz-se. Um homem tenta por todos os meios acomodar-se e a nuvem desliza, derrapa, escapa-se-lhe. Um gesto apenas e bastava. Largar tudo o que se tinha feito até então, largar como se fosse um barco no mar, abandonar as coisas desejadas apenas pela metade, pelos interstícios, pelo meio. Sem intervalos. O que se começou e se abandonou, assim sem mais. O que se começou e nunca se terminou. E assim se calaria no céu azul para sempre como a última nuvem. Em silêncio. Sem rumor, apenas. Nem mais um som a ecoar, uma frase à superfície. Nem mais uma metáfora para justificar o abandono das coisas pelo meio. Nunca mais o ensejo de deixar todas as coisas pela metade, pelo meio, sem nunca chegar ao final. Da cabeça aos pés, dos pés até à cabeça, do tronco até à folha, nem mais uma palavra caída no Outono da vida.

Assim o homem que sonha com nuvens fosse como uma seta que atravessasse e mudasse todo e qualquer rumo, alinhamento, direcção. E que o caminho pudesse agora ter um fim, até à morte, e que esse final apenas estivesse para lá da linha do horizonte. Até ao fim da estrada. Até ao fim da vida. Nenhuma coisa, nenhum olhar, nenhum gesto, nenhuma nuvem negra desse outro tempo pudesse ficar. Nada. Porque já nada interessa. Porque o homem que sonha com uma nuvem renasce nos braços de outra nuvem, num outro sítio, num outro lugar.      

sábado, 4 de janeiro de 2014

Homenagem a 4 poetas e 1 cineasta

Livra-me das tentações
de fugir ao fisco
e que em Fevereiro pague sempre
os meus impostos.
Afasta-me do supérfluo e
da vaidade e recorda-me sempre que
um dia hei-de ter hemorróidas.
E não me deixes cair em pecado
da ideologia
para que não leve com o proletariado nas trombas.
Guia-me pelos caminhos do amor
até um centro comercial
onde o amado me acompanhará
a experimentar um a um cada vestido.
E, por último, faz com que
todo o iogurte que coma seja
- foda-se! -
de morango.

Ana Paula Inácio

Resumo. A poesia em 2011 [antologia]. Lisboa. Documenta/FNAC. 2012.

Retratos da Crise no Teatro Micaelense

        Hoje à noite uma açoriana e um grego sobem ao palco do Teatro Micaelense para um concerto intitulado “Retratos da Crise”. Trata-se de um espectáculo multidisciplinar em que um duo de compositores/intérpretes improvisa a partir da projecção de imagens do início do século passado explorando sons em tempo real. O duo 21KHz é constituído por Ângela da Ponte e Dimitris Andrikopoulos.

Sul

Cada qual no seu silêncio
transporta versos limpos lisos luminosos
em praias nuas brancas desertas
com pedras nítidas quentes transparentes
noites insónias luas sem lógica
versos palavras paisagens
rompem como gritos espadas e tiros
explodem faúlhas flores frutos
poemas beijos canções desejos
serenos sejam o sul o sol e a solidão

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

88



      
        Este é o número com que o Fazendo retomou a sua periodicidade, isto é, às suas edições mensais. Saúde-se, portanto, o regresso do boletim cultural à comunidade leitora açoriana e não só, pois está já disponível a sua edição online: (https://issuu.com/fazendofazendo). O design é novo e pertence a Ambas as Duas. O núcleo editorial é da responsabilidade do Tomás Melo e da Aurora Ribeiro e ao que tudo indica está a ser distribuído em quatro ilhas do arquipélago açoriano: Faial, Pico, Terceira, São Miguel. Continua, portanto, a ser comunitário e gratuito. Uma curiosidade: o número 88 corresponde à sorte e bem-aventurança para a cultura chinesa.


Cantador(a)

        O álbum "Torna-Viagem" de Zeca Medeiros completará dez anos em 2014 desde a sua edição e foi prémio José Afonso em 2005.Ontem, ao serão, para além do repertório habitual, ouviu-se o “Cantador” na Travessa dos Artistas: “O cantador/ chegou de madrugada/ venceu a noite/ pelas praias do mar/ na sua voz/ teceu uma balada /amanhecer/ que havemos de cantar/ O cantador/ rasgou as nossas penas/ num canto moço/ que havemos d'acender/ na sua voz/ ergueu vilas morenas/ Maio maduro/ que havemos de colher/ Ergueu cidades/ sem muros nem ameias/ lançou sementes/ na terra de ninguém/ cantou o sol/ rompeu nossas cadeias/ trouxe consigo/ outro amigo também/”. E não é que "irrompeu um amigo" no feminino que transportava consigo a luz e o fogo na voz? O seu nome: Vânia Dilac e vive no arquipélago há mais de três décadas, após ter nascido em Moçambique. O seu português misturado, modelado e mélico encantou e entoou pelas ruas do centro da cidade, com pingos de chuva e lançando a semente de um próximo concerto que se aguarda, para já, com a maior das expectativas e curiosidade.