terça-feira, 31 de março de 2015

Leituras em Voz Alta

  (design de Raquel Vila)
       O Teatro de Giz apresenta esta quinta-feira, dia 2 de Abril, o novo grémio literário faialense. Trata-se de um clube de leitura alargado e tem como objetivo principal a leitura de textos teatrais. Estes escritos que, podem ir dos textos clássicos até a peças contemporâneas, serão lidos por amadores de teatro e restantes espectadores, pois o propósito deste ensejo é privilegiar o modo colectivo de ler em voz alta sem qualquer tipo de constrangimento ou condicionalismo. O primeiro texto a ser lido é O Inspector, de Nikolai Gógol. Este dramaturgo russo, de origem ucraniana, escreveu esta peça em 1836. “O Inspector” é uma peça de teatro que retrata a realidade de uma aldeia que está prestes a ser visitada por um Inspector, num discurso transmitido à população por um presidente da câmara sem noção do ridículo, populista e, conviria dizê-lo, corrupto. Nessa visita anunciada do Inspector verificamos que isso é motivador de medos, farsas, intrigas e momentos hilariantes. Pelo meio da peça há um farsante que gosta de ser bem tratado. A peça, muito embora pertença ao XIX, é um libelo pelo valor da justiça e que podemos considerar bastante actual, pois muito embora a corrupção política grasse por toda a parte, os níveis de passividade da população mantém-se. De qualquer modo, é um bom texto para ficarmos a conhecer o período pré-revolucionáiro russo e comprovar a actualidade do humor de Gógol. Como curiosidade, a peça foi levada aos palcos pela primeira vez em Portugal pelo grupo A Barraca, a 6 de Março de 2009, numa encenação da actriz Maria do Céu Guerra.

Boiar

Há verbos assim: estendidos ao comprido, repletos de luz e de azul!

segunda-feira, 30 de março de 2015

Ilha de Sam Nunca

daqui:www.culturacores.azores
Era a dor de pensar que me impelia
(Meu rumo-aonde fosse Perdoar),
mas achei-me sem leme, à revelia
da lua de rezar.

Tremi de naufragar nesta verdade pobre,
e, entre vidas passando como raios,
contentei-me de ser o que descobre
sonhos-avós com piratas malaios.

Cheguei, por fim. Mal desperto da viagem,
acendi o cachimbo e empunhei a lira,
para compor um canto à minha imagem.
Entretanto, a praia fugira.

in A Ilha de Sam Nunca, Atlantismo e Insularidade na poesia de António de Sousa, organização da Antologia de Natália Correia

Poema de Bordo

A luz nova deriva do vento e do sol
afastada a sombra concedo à guardiã da fortaleza
o móvel reflexo do celeste céu primaveril
enquanto espero a fresca seiva da manhã
na aproximação de um outro corpo que não o meu
a comoção das velas e dos panos remendados
o lustre dos fios e a extensão dos cabos 
o fim da pequena morte e do sorriso refeito
as raivas naquele pontão silenciadas 
e as dores da desistência consumada 
para longe outro grito comigo levarei. 

O Grande Mergulho de António de Sousa

No fundo do mar
lá no fundo, no fundo
dum mar que não é 
nem do céu nem do mundo;
as velhas areias,
entre alguns feixes,
conchinhas, moluscos,
luzentes escamas 
de meigas sereias 
e rápidas flamas 
do arco-íris dos peixes, 
a chave lá está...

-Quem desce a buscá-la?
Cem anos, mil anos,
alguém que tecia
a mística rede
com sonhos humanos,
naufrágios e sede,
martírios e crimes,
geométricos gritos
e poemas sublimes,
cordinhas de viola
e nus de infinitos,
num pronto apanhou-a!

Se chega cá acima:
ao Cabo ou ao Pólo,
ao Havre ou a Goa,
ou mesmo a Lisboa!...

Mas, longa, a subida 
tão longa, a demora
a conta sabida:
A hora por hora 
é sempre uma vida...

in A Ilha de Sam Nunca, Atlantismo e Insularidade na poesia de António de Sousa, organização da Antologia de Natália Correia

domingo, 29 de março de 2015

Ontem escrito numa parede da cidade

Não me canso de dar flores a mim próprio.

Fado do Regresso

Voltei com a mesma fome…
Ai, como eu andara enganado!
A quem renega o seu fado
nem o Céu lhe sabe o nome.

Não achei o Paraíso,
e sei que tudo é pequeno.
Mas no teu rosto sereno
é cada ruga um sorriso.

Encontro as flores outra vez;
o sol perguntou por mim,
E foi sobre o meu jardim
que uma nuvem se desfez.

Na firme paz de quem ama,
acabei o meu desatino
Vejo os sonhos do menino
à roda da minha cama.

Adeus, ó ilhas desertas
velas à raiva do vento!
A cadeira em que me sento
é as minhas descobertas...

Nem mesmo o teu fumo quero,
Meu cachimbo de Xangai!
Agora, que já sou pai,
no meu filho é que me espero.

Oh sombra da minha sorte,
que traí com cem mulheres!
Podes vir quando quiseres,
Senhora da Boa Morte!

 in A Ilha de Sam Nunca, Atlantismo e Insularidade na poesia de António de Sousa, organização da Antologia de Natália Correia. (Faixa nº10 do disco “Mar Aberto” de Medeiros/Lucas)

“Que bom é partir, que triste é ficar.”

     Eram cinco da tarde neste início de Primavera, uma pessoa decide aventurar-se pelo interior adentro de um Teatro antigo. Escondido, escuto os sons que saem das colunas. Ao fundo no palco está um homem de cabelo e barba branca rodeado de músicos a disfarçar que tocam os seus instrumentos. Um outro homem de carapinha e bigode filma-os enquanto o cantor baloiça na cadeira como se fosse capitão de um barco agitado em pleno mar alto, rasgando a onda, cavando a vaga, agarrado ao leme, sem nunca o largar. Sente-se ali uma vaidade contida, inconfessável, gente que soube continuamente pertencer à ribalta, por muito que estime o silêncio e o recolhimento. É a segunda vez que presencio aquele cantor ao vivo, por certo naquele mesmo lugar. Os músicos repetem em playback as vezes que forem necessárias para filmar um videoclip daquela canção. O realizador solicita mais luz ao técnico e os músicos perderam já o travão da entrega emocional. Os jovens músicos cavalgam a encenação proposta pelo realizador do vídeo. Deito-me, entretanto, por terra. Não me contenho de tamanha agitação marítima e abandono por instantes a sala do teatro. Parto em direcção ao porto, ao lugar onde atracam os barcos e marinheiros. Parto à procura de outros homens que me devolvam esse olhar desprendido, uma mirada solta, um fitada que me leve, também eu, a querer partir. Há tempos conheci marinheiros que traziam esse ímpeto de errância, aventura, partida. Demorei alguns meses a esquecê-los. Homens que não conseguem ficar muito tempo parados no mesmo sítio. É desse desejo inconfessável de partida que partilhei sob a forma de palavras e interrogação horas depois à saída do concerto. Não sei se algum dia chegarei a perceber o porquê de tanta inquietação, somente a certeza de que é essa ideia de beleza que nos move, que produz este impulso de mudança, alterar, enfim, partir. Enquanto aquela voz  ecoa dentro do mais fundo da leveza e da esperança:“Que bom é partir, que triste é ficar"

sexta-feira, 27 de março de 2015

Hoje há “Mar Aberto” no Teatro Faialense

     
      O concerto Medeiros/Lucas é hoje à noite no Teatro Faialense. O mar está bravo, encrespado, com muita ondulação. Assim tinha que ser, não há marés ou correntes que acalmem esta agitação. A tripulação já se encontra no cais para entrar no Navio e começar a viagem. E que viagem. Foi há praticamente três anos que assistimos ao concerto do Experimentar Na M´incomoda neste mesmo teatro e, em que Carlinhos Medeiros e Pedro Lucas protagonizaram um dos mais belos momentos dessa noite, ao cantar sob a forma de duo o tema “Rema”, despedindo-se assim do público de forma triunfal, numa noite gloriosa e inesquecível. Que bom que exista música em que possamos cantar em conjunto, música de pertença emocional e, que durante uma hora de concerto, nos possamos reunir e aliar  a este tão belo mosaico sonoro que nos é oferecido. 

Tochapestana: o passado imita-os!

O último concerto desta primeira edição do Múma-Música em Março foi com o duo Tocha/Pestana. A Associação Cultural Música Vadia, com a co-produção do FAZENDO, despediu-se do festival com um balanço assaz positivo sobre aquilo que se passou nestas últimas quatro semanas. Durante estas sessões musicais na sede do Sporting foi possível assistir a dois concertos de “one man show” e os outros dois por duos musicais, por sinal, dinâmicos e bem divertidos. O público faialense aderiu a esta proposta da Música Vadia e, com maior ou menor afluência, manifestou atitude e curiosidade em participar neste evento. 
O duo Tocha/Pestana deu, portanto, o seu primeiro concerto em território insular, naquele que foi uma autêntica surpresa para o público açoriano que quis estar presente em mais um concerto do Múma, pois nunca se tinha visto nada assim por estas bandas, melhor, provavelmente já vimos mas não queríamos acreditar.
A banda apresentou-se em palco com uma componente visual próxima da feira popular, arraial festivo ou baile nocturno no final de romaria religiosa em dia de santos populares. Tochapestana trouxeram sons e música para um futuro nunca visto, fazendo de súbito uma declaração de interesses ao abrir a performance com a máxima:“o passado imita-nos”. Os músicos estavam, portanto, inquietos para dar o seu show cómico-cósmico, vestidos a rigor, ambos de óculos escuros como quem tinha acabado de sair de um desfile de Entrudo, com uma indumentária justa, a condizer com um cenário algo passadista, pronto para evidenciar uma música eléctrica e dinâmica em universo que de tão próximo, era muito difícil de catalogar.
Deste modo, o duo alinhou, para este seu primeiro concerto em terras açorianas, canções do primeiro álbum -“Música Moderna”, um disco composto por 13 faixas (11 canções e 2 interlúdios), gravado no estúdio “Arroios Music Machine”, entre Outubro e Novembro de 2013 e misturado até Março de 2014. Começaram pelo interlúdio “Balada 24” e de seguida Tocha explodiu de energia com a canção “Gasolina”, cabendo este tema de situar o público no carrossel musical que se seguiria. A estranheza de “Tara” e a vigorosa extravagância sonora de “Lírico” foram suficientes para aquecer e ganhar mais força e simplicidade lírica, alguns momentos depois, com o tema-hino intitulado de “Lisboa”. São raros os casos conhecidos cantados em português que nos remetam de forma tão imediata para um lugar de pertença emocional, como é o caso deste hino à capital portuguesa. Parabéns à dupla por esta canção de amor citadino, que ganharia outra expressão e público com a chegada do tema “Pratica a tua Fé”, já com a assistência rendida e com sinais de arraial montado. Seguiu-se o tema forte “Macho Masoquista”, provocando alguns risos e lágrimas, dado o enfoque na posição do instrumento, retomando o humor e a provocação com uma “canção de intervenção” intitulada “Plástico”, próxima dos manifestos ecologistas contemporâneos. Houve ainda tempo para uma versão do single de 1980 da cantora portuguesa Dina, o “Pássaro Doido”, em plena nostalgia evocativa. Ainda a fechar os sessenta minutos de concerto, tempo para o tema “Baila Comigo”, em refrão romântico e com o cantor no exercício e exaltação da sua própria voz. O público atónito cedia finalmente ao homem e ao seu teclado com guitarra e ia clamando por outro homem e a sua voz. O espectáculo chegaria ao fim, sacudindo por instantes os inúmeros incrédulos que tiveram receio de se entregar a esta música directa, popular e intensa. Para o regresso ao palco, o duo Tochapestana cantou novamente “Pratica a tua Fé”, numa evocação à marinhagem que frequentava o Cais do Sodré sete dias por semana, naquele roteiro de bares com nomes de capitais e países. A dupla regressou, por fim, ao palco para agradecer e despedir-se do público, por sinal, questionando a possibilidade de assistir a novo concerto do duo.
Algumas horas antes, o duo musical explicou que apreciam imenso fazer este tipo de música, próxima do “tudo é possível, nada está excluído”, focados que estão na exibição e transmissão durante o espectáculo de uma determinada energia. Os músicos referiram que não se têm cansado de “tochapestanar” pelo país inteiro, com prestações musicais em discotecas, bailes, colectividades ou agremiações culturais. Sobre a composição dos temas, TochaPestana recorre à guitarra e ao sintetizador, socorrendo-se de uma panóplia variada de beats e efeitos vários, como se pôde ver em “Macho Masoquista”. As letras, muito simples, roçam o minimal e a repetição, sempre apostadas em refrões fáceis ao ouvido e propícias ao trautear de canções em uníssono. Desta feita, não poderia ter sido melhor a escolha deste duo para fechar os concertos deste Múma, apropriado ao espaço do Sporting e proporcionando um serão vivo e alegre, muito por iniciativa e vontade de da interagir com público, preconizado pelo vocalista Tocha.
       Por último, uma nota muito positiva para a Associação Cultural Música Vadia pela iniciativa e pela capacidade organizativa evidenciada. O evento decorreu de forma superlativa, tendo ficado no ar a promessa de uma futura edição, já no próximo ano. Um merecido encómio à direcção do Sporting da Horta que está, também ela, de parabéns pela abertura e disponibilidade por demais demonstrada

terça-feira, 24 de março de 2015

[li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios]

li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios,
quando alguém morria perguntavam apenas:
tinha paixão?
quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua paixão:
se tinha paixão pelas coisas gerais,
água,
música,
pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos,
pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória,
paixão pela paixão,
tinha?
e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,
se posso morrer gregamente,
que paixão?
os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,
os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem,
homens e mulheres perdem a aura
na usura,
na política,
no comércio,
na indústria,
dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera,
trémulos objectos entrando e saindo
dos dez tão poucos dedos para tantos
objectos do mundo
¿e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,
pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,
e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes,
palavra soprada a que forno com que fôlego,
que alguém perguntasse: tinha paixão?
afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia,
ponham muito alto a música e que eu dance,
fluido, infindável,
apanhado por toda a luz antiga e moderna,
os cegos, os temperados, que não, que ao menos me encontrasse a paixão e eu me perdesse nela,
a paixão grega

Herberto Helder in A Faca não Corta o Fogo 

terça-feira, 17 de março de 2015

Uma Ilha diferente

       "Finalmente chegámos a uma ilha diferente das outras. Parecia um jardim que se tinha desprendido de um dos lados do Paraíso e se estabelecera no mar. E aqui o nosso navio ancorou e nós desembarcámos."
  Edmund Dulac, Sinbad o Marinheiro e Outras Histórias de As Mil e Uma Noites 

Desenhos de Agnes Juten

Estudo "Cyclon/1"- 1990

domingo, 15 de março de 2015

Tarde de Domingo

Um brinquedo na língua em rodopio
tal brado o nome
desaforo e o desatino
rimos da luz a ostentar o sol
ainda esta longínqua distância
num braço de madeira a dividir
défice de vida e cinema pronunciado
a maré continua a encher
se no fim do dia tal for possível aportar.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Uma Carta Marciana de Janeiro Alves

Caro Doutor Mara,

                   Encontro-me preso numa casa de banho de um centro comercial, e aproveito para lhe escrever. Já tentei escapar por debaixo da porta, mas quando tinha o corpo já quase todo do lado de fora, a cabeça não passou. Foi por pouco. Já bati à porta, já gritei por ajuda, e acabei de ligar para o 112, pois estou na posse de um telefone. Infelizmente não me levaram a sério. De resto ninguém me atende o telefone, e aqui estou. A olhar para quatro paredes sentado na sanita. Há alguns minutos entrou um indivíduo a assobiar, fez de conta que não me ouviu. Não entrou mais ninguém. De repente as pessoas deixaram de vir à casa de banho, de propósito, para me deixarem aqui.
                   Há já alguns dias que pressentia que me andavam a preparar alguma. Mas eu finjo que estou bem, que não é nada comigo. Já nem faço barulho. Não lhes quero dar o prazer de observarem a minha angústia com um prazer perverso, como quem vê o National Geographic e se deleita a observar um herbívoro galopante a ser encurralado por uma cambada de leões esfomeados. Não dou o braço a torcer. O Doutor Mara sabe como sou um osso duro de roer. Enfim, a noite aqui é garantida, pois já é uma da manhã, e os poucos que ficaram para o cinema já saíram concerteza. Os seguranças devem estar a enviar mensagens, aborrecidos por não se passar nada. E eu aqui. Eles sabem que eu estou aqui, eu sei que eles sabem. Mas não querem saber, de propósito. Eu também não quero saber, tenho mais que fazer. Tenho assuntos para tratar. Não lhes vou dar o prazer de passar pela vergonha decorrente de uma libertação ridícula, de me virem salvar como se fossem uns heróis. De ser o bombo da festa enquanto eles são condecorados com medalhas de mérito. Já me convenci que passarei aqui a noite. Na verdade isto é uma espécie de suite desprovida de quarto.
          Apesar desta situação embaraçosa, escrevo-lhe para saber de si. Como tem passado o meu amigo? Já tive conhecimento que figura de novo no portfolio das ilustres figuras Fayalenses, que regressou à casa partida, que deu uma volta de 360 graus, que afinal o filme era uma saga de duas partes, que suprimiu o espaço físico que o separava da origem, que se voltou a banhar nas águas tropicais da exótica baía de Porto Pim, e que o Pico agora o volta a perseguir como um vulto incontornável.
          Também sei que aguarda ansiosamente novidades dos Manaias. Estão falidos. Filomeno Manaia, o gestor de toda a herança acabou por investir acções num banco que faliu e falaciosamente mudou de nome. Neste momento, alguns Manaias já estão a trabalhar em call centers, enquanto que outros fazem espera na fila do centro de emprego. Uma calamidade social, Dr. Mara. Todo o património da família está agora nas mãos de gestores de insolvência, homens vestidos de negro, com barbas escorridas e pasta na mão, que cheiram a môfo e levitam à volta dos velhos Manaias. Miriam soube disto em Inglaterra, e regressou de emergência a Viseu, a tempo de evitar que Clemêncio Manaia pusesse termo à vida com uma corda ao pescoço. Passou por Lisboa logo após. Almoçou comigo e pôs-me a par de toda a história. Filetes de pescada, junto ao rio, em sua homenagem, Dr. Mara. Miriam confessou-me que tem saudades dos velhos tempos, quando passeava consigo de mão dada pela Matriz, e dos choques que apanhavam quando tocavam em metal. Ela quer visitá-lo em breve. Registe.
          O Solar dos Manaias está agora à venda. É uma machadada na história, Dr. Mara. É o fim de infindáveis acontecimentos antológicos, do baluarte de muitos serões que figurarão nos anais da cultura nacional. É o fim do próprio Dr. Mara, produto de fino recorte, intelectualmente renascido e recriado no Solar. É uma catástrofe Dr. Mara, e por isso lhe escrevo, preocupado consigo. Presumo que ainda não soubesse desta notícia, e dou-lha com pesar. Antes presidiário de uma casa de banho pública do que estar na sua situação, Dr. Mara.
          Bom, está a acabar a minha bateria, e portanto vou dormir. O chão está coberto de papel higiénico de folha dupla, e encostarei a cabeça ao sanitário.
          Peço desculpa por esta escrita de retrete, um tanto ou quanto atabalhoada, fruto da situação embaraçosa em que me encontro. Dentro em breve, já no meu apartamento, tratarei de lhe enviar impressões sobre as minhas vivências citadinas, assim como algumas situações que ando a preparar de forma a alterar o curso dos acontecimentos. Os projectos estão em efervescência, e porei o Dr. Mara a par de tudo. Até lá, não cometa nenhuma loucura!

Com Amizade,
Janeiro Alves

segunda-feira, 2 de março de 2015

Há Asas Feridas nas Vozes que Vêm do Mar

     
Medeiros/Lucas (Mar Aberto, 2015)
  "No porto deserto/ Só há um navio/Já triste e cansado/ O resto é vazio/ No velho costado/O mar escreveu/Com algas e búzios/O que ele sofreu/O que ele passou/Sulcando oceanos/ Cruéis temporais/ Por anos e anos/ Nas horas sem fim/ Por noites e dias/ Das rotas distantes/ E das calmarias/ Navio parado/ Em frente do mar/ Que bom é partir/Que triste é ficar/ Mistério de longe/Chamando, chamando/Adeus que me vou/Deus sabe até quando.”

Armando Côrtes Rodriguesin  Mar Aberto (Carlinhos Medeiros e Pedro Lucasfaixa nº11, "Navio")

       Conta-me um pescador que todas as manhãs, muito cedo,vai alimentar um cagarro com uma asa ferida no porto da Horta. Diz-me isso neste início do mês de Março, com  alegria, emoção e o brilho dos olhos que eu não consigo descrever com exactidão. Porventura, até sei, mas a realidade neste caso supera em larga medida a ficção. Tudo isto se passa num pequeno café, apelidado de Vinte, com uma vista tão ou mais bela para a Baía de Porto Pim como a história deste biólogo inventado. É um conhecedor profundo de aves marinhas e que se podia fundir com todos os outros seres que habitam no fundo do mar, já que carrega consigo uma voz que é semelhante ao som de um búzio. Por vezes, ao fim da tarde, confirmo com clareza quando me saúda mal me encontra ou avista e é tal e qual como se fosse sempre a nossa primeira vez, pois parece que aquela voz vem do fundo dos tempos, um eco tão antigo que me faz relembrar velhos amigos ou familiares de outras histórias e épocas. Ouço a sua história, omitirei o seu nome, como devem calcular, e desato a recordar imediatamente o “Cantar Na m´Incomoda”, editado em 1998, por Carlinhos Medeiros e produzido pelo Luís Gil Bettencourt. Foram raras as vezes que ouvi os temas desse seminal disco, essencialmente o “Rema”,“Santiana”,ou, concretamente, o “Marujo”, oriundas do cancioneiro tradicional da Ilha das Flores, em que não me devolvessem por instantes a vida difícil desta gente ou que de súbito me reavivassem os seus dias duros e difíceis da faina e a dolorosa existência  destes homens enquanto vivembaloiçam no alto mar. Não raras vezes também que é através do som do mar, no que este tem de mais instintivo, primitivo e primordial, que se misturam em mim as suas vozes com a dos cagarros num linguajar imperceptível entre homens e aves marinhas, impossível de distinguir. Tenho uma admiração indefectível por estes homens corajosos e rudes. Por eles e pelas suas reduzidas palavras, arrancadas com um anzol do tamanho da sinceridade. Ouço-os várias vezes, sempre com atenção, é apaixonante. É como se todo o tempo se condensasse numa única frase melódica, num singular timbre inaudito e criptado, assustador, numa articulação de sons desconhecidos por desvendar. Uma magia viva e transmissível. Acabadinho de ouvir o "Navio", faixa presente em "Mar Aberto", e é exactamente a mesma e deslumbrante emoção. São asas feridas que cavam fundo a dor de querer voar.