quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Um Verso dos Zero Amarelo

 E trago o negro nos olhos pintado 

Aguarela Voadora


 

"Mandem Saudades" de Mário Augusto

   
Capa de "Mandem Saudades"
   "Presume-se que os nossos primeiros patrícios a ficarem pelas ilhas foram tripulantes dos baleeiros açorianos que ali chegavam para passar o inverno, recusando-se depois a voltar ao mar, até porque muitos deles tinham sido tornados marinheiros à força, resgatados em terra para reforçar tripulações dos barcos de caça à baleia.
    Em 1853, é referida em documentos a presença de 86 portugueses na ilha de Oahu, onde fica a capital, Honolului. Era ainda uma comunidade muito pequena, essencialmente oriunda de Cabo Verde e dos Açores. Dez anos depois, eram já 500 os homens portugueses, quase todos ex-caçadores de baleias que foram ficando espalhados pelas ilhas habitadas - na sua maioria, tinham desertado dessa perigosa perseguição dos cetáceos. No meio do Pacífico, aquele era o local escolhido pelas baleias grávidas, que aproveitavam o inverno para que as suas crias nascessem nas águas calmas de Lahaiana. A frota baleeira, sempre com muitos açorianos e cabo-verdianos, foi mantendo a rota até quase ao fim do século XIX. 
        Com tantos lobos-do-mar a chegar, não admira que aquele porto fosse terra firme para o prazer, o álcool, muita pancadaria de marinheiros e todos os excessos que as longas temporadas nos oceanos tinham interditado.
Quem também passou por Lahaina na mesma época, em 1843, tendo lá ficado seis meses - de boémia e inspiração - foi Herman Melville, escritor americano que em 1851 publicou o romance  Moby Dick, onde descreve os destemidos marinheiros portugueses. 
     É claro que o corrupio das mulheres nativas a entrar e a sair das embarcações criou alguns embaraços na comunidade mais conservadora e religiosa, tendo o assunto sido várias vezes discutido com o rei.     
    Na segunda metade do século XIX, a indústria baleeira entrou em crise, e foi nessa altura que se reconverteu a economia das ilhas com a plantação intensiva da cana-de-açúcar e ananás."
Mário Augusto in "Mandem Saudades", Fundação Manuel dos Santos, Maio de 2022.

terça-feira, 30 de agosto de 2022

Um Poema de Manuel `Fernando´ Gonçalves

 Dizem à noite,
que as casas são circulares.
Objetos que se vestem
de outra natureza, térmicos:
metáfora do Sol
que crispa as imagens.

in Caos,  Novembro,1987, Frenesi

sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Um Verso dos Sétima Legião

 Hoje, num vento do norte 

Velhos Hábitos

        O que acontece quando o jornal que pretendemos comprar não chega? É verdade que podemos ler o mesmo na internet, no tablet ou nesses écrans espalhados por todo o lado, pois há páginas de jornal online de todo o mundo disponíveis num abrir e fechar de olhos. No entanto, há também hábitos antigos que teimam em desaparecer. É difícil, mesmo muito difícil desistir desse velho costume diário de sair de casa com o propósito de comprar um jornal de que gostamos para assim poder lê-lo em algum café, balcão ou esplanada. É que nessa demanda está implícita a procura do seu local de venda em determinado espaço  citadino, envolvendo uma rotina que se repete quotidianamente que só uma grande paixão abarca, pautada pelo movimento e exercício de um determinado ritual, que ao longo do tempo foi resistindo e permanecendo. Até quando?

Poema de Joaquim Pessoa (3)

 Não sei como deveriam ser as coisas
Profundas como a sede de uma jóia ou
tão leves como nomeá-las simplesmente.
Mil milénios de feridas, mistérios e 
esplendor cabem devagar na fala. Tudo é
incalculável, a vida é incalculável, as
coisas serão a memória de si mesmas.
Existe tanta força no que não sabemos. É 
tão pobre a lembrança, vazia a luz das 
nossas mãos, sombria a superfície de todas
as vitórias. Que vale menos? O oiro
de cabeças sumptuosas ou os segredos
dos dias que se esgotam? O êxtase 
está em gastar a vida sem saber 
como deveriam ser as coisas. 

in "Por Outras Palavras", Litexa Editora, 1990.

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Sobre "As Pescas em Portugal"

        "Os Pescadores, de Raul Brandão, fresco literário publicado em 1921, ainda hoje constitui a etnografia mais conhecida sobre a pesca e os pescadores. É rara a sessão pública sobre estes temas onde uma bela frase do escritor não sirva de epígrafe a exaltações pitorescas ou grandiloquentes sobre as pescarias de Portugal.
     Nascido na Foz do Douro, em 1867, acostumado às lides e tragédias do mar, quando terminou a carreira militar Raul Brandão dedicou-se ao jornalismo e à literatura. Num tempo de transição para um mundo novo, de acentuada industrialização das pescas, Os Pescadores são uma prosa impressionista de múltiplos sentidos, menos literária do que parece. Assente na observação directa da paisagem litoral, a narrativa consiste numa visita guiada pelas praias e enseadas de pesca do litoral português. Com mestria literária e alguns arroubos mitificadores, o escritor realça a diversidade de uma paisagem geográfica e humana ameaçada de corrosão. As tensões entre uma pesca industrial em expansão e as velhas pescarias artesanais perpassam nos textos do escritor andarilho. As consciências dos desmandos pelas artes de embarcações depredatórias agudizam a concorrência em tempos de crise do abastecimento. Por isso, durante a República o Estado aperta os regulamentos que restringem os arrastos. Já em 1928, é proibido o registo de propriedade de novos galeões e traineiras que usassem redes de cercar para bordo e interdita-se qualquer alteração dos existentes."

 in As Pescas em Portugal de Álvaro Garrido, Fundação Francisco Manuel dos Santos, Maio de 2018.

segunda-feira, 22 de agosto de 2022

O Verão e os Jornais Estrangeiros


    Todo e qualquer verão pode ser um repositório e catalisador na evocação de memórias passadas. Aquele restaurante situado em frente à antiga escola secundária já não tem, ao lado do balcão, o pequeno quiosque onde se vendiam e liam jornais estrangeiros. É o filho do dono que conta que, após a morte do pai, já lá vai mais de uma década, as pessoas deixaram de procurar aquele quiosque para comprar os jornais que ali ganhavam destaque e exposição no mostruário: “El Pais”, “Le Monde”, “Le Figaro”, “La Reppublica”, Corriere della Sera”, “Die Welt”, o “Globo” ou a “Folha de São Paulo”, bem como tantos outros. Era comum estes jornais, após a leitura dos seus compradores, ficarem espalhados pelas mesas, misturados depois com os periódicos nacionais e dos desportivos. Comprar um jornal significava, assim, ler os outros todos e trocar opiniões sobre o conteúdo dos mesmos, sendo os interlocutores novos e velhos. É com saudade, talvez mesmo uma nostalgia funda, que agora deixamos de ver aqueles jornais estrangeiros espalhados pelas mesas, ao mesmo tempo que serviam de motivo de tantas conversas dos habituais frequentadores daquele café. Para além das línguas que se aprendiam, do conhecimento que se adquiria  e do desejo de viajar que, para muitos, começava ali a despontar.

"In God We Trust" de Miguel Mansilha

 Os portugueses de New Badford
ainda moram na ilha
E transportam a candura própria 
de quem respira o ar de São Miguel
Diferem dos credos, mesmo os cristãos,
pois tem uma relação menos materialista 
com o "american dream".
Quando olham as notas verdinhas do tio Sam,
chamam-lhe uma dólar 
com a ternura de quem faz amor
com uma couve tronchuda
depois das geadas de Janeiro (tão tenrinha!)

domingo, 21 de agosto de 2022

Falar da Vida

     "(...) O que é a vida se não fossem os livros, os espectáculos, se não fosse o cinema, a música? A vida é isso. A vida não é ir para uma praia e olhar para o mar. Esse é um lado melancólico da vida. Claro que é óptimo ir para a praia, seja no verão ou no inverno. A vida, na verdade, são as coisas que podemos fazer com ela, e a forma como absorvemos outras influências. As minhas influências não vêm da fotografia."

Entrevista a Daniel Blaufuks por Cristina Margato, in Revista Expresso, 19 de Agosto de 2022. 

Ontem, escrito numa parede da cidade

 A esperança é um avião atrasado 

sexta-feira, 12 de agosto de 2022

"A Bicicleta" de Mário Rui de Oliveira

" Já não assobias à passagem dos barcos. Cada vez mais, as mãos recolhem aos bolsos. A bicicleta repousa, talvez para sempre, na velha garagem. Os húmidos campos amarelos sucumbem às queimadas. Os dias, esses, impiedosamente, azuis.
Só a música de um fiozinho de luz te sustenta." 

in "O Vento da Noite", Lisboa, Assírio & Alvim, 2002.

Duas Melancias Acordadas


 

quinta-feira, 11 de agosto de 2022

quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Poema de Joaquim Pessoa (1)

Toda a alegria brota
de uma escolha: ouvir discos,
ordenar papéis, fazer amor.
O teatro da dúvida tem a porta
aberta. O actor acredita à sua
maneira - o grande actor tacteia -
como madeira ardendo. Meto
conversa, o roupão cai. A nudez
é uma nova máscara. Deixo passar
indignações, as palavras secam
no altar da boca. Mozart 
sou eu. 

in "Por Outras Palavras", Litexa Editora, 1990.

Versos Estivais de Sharon Van Etten

When every time the sun comes up 
I'm in trouble

"Outra Vida Para Viver" de Theodor Kallifatides

    "Diz-se que a sociedade não pode proibir opiniões, mas apenas atos. Parece lógico, mas não é. As opiniões não são vistas como actos, sendo imaterais, existem no tempo e no espaço um pouco como fantasmas. Nada mais do que ar comprimido. Ao passo que os actos são visíveis. Mudamos uma cadeira de sítio numa sala, e estamos a mudar a própria sala.
    A minha avó, que não era jornalista nem filósofa, costumava dizer: «A língua não tem ossos, mas ossos quebra.» Ela sabia o que sabemos quase todos: que as nossas palavras podem provocar mais danos do que uma faca afiada. Dizer uma coisa é fazer uma coisa." 

Theodor Kallifatides, in "Outra Vida Para Viver", Quetzal Editores, Junho de 2022. 

"Correspondências" no FAIAL

Cartaz do Grémio Literário Faialense


segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Da Crítica

     Há pessoas que me dizem: “Estás a ler? Vai mas é ler uma peça ou o filme. Não percas tempo a ler ou a formar uma opinião”. Mas então não posso ler a opinião de outra pessoa? “Não, não te deixes influenciar “, insistem. Mas é um dado da civilização humana, ora que porra! Teria alguma hipótese de descobrir sozinho tantos autores? E os professores e as aulas? Haverá coisa mais importante do que ser influenciado? Devemos é poder escolher quem nos vai influenciar. Estão a destruir a crítica ou já a destruíram. E com a crítica, cai a civilização toda.

Entrevista a Miguel Esteves Cardoso por José Marmeleira, in Ípsilon, Jornal Público, 5 de Agosto de 2022.

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

A Criação do Mundo

          "Ao abrir a janela do carro um estranho ventou soprou com ímpeto. Os papéis no banco de trás saltaram de contentamento, ergueram-se e rodopiaram como pássaros numa gaiola, sedentos de vida e do mundo. Um deles, mais astuto e ébrio de felicidade, soltou-se pela nesga da janela entreaberta e correu louco pelo Ar de repente infinito. Voou pelo vento adentro como se pela primeira vez provasse o sabor da liberdade. 
            Carrasco de papelaria, fechei a janela e expulsei o vento intruso. A alegria dos papéis de imediato cessou. Pareceu-me ouvi-los murmurar entre si um lamento fundo, cada um em seu canto, espalhados como coisas mortas pelo habitáculo."

Bruno Santos in "Sursum Corda - Voando à Superfície", Grácio Editor, 2019.