sábado, 31 de outubro de 2015

"Superfície" de Rui Xavier

   
"À Superfície" de Rui Xavier
       Agora que mergulhamos nas profundezas daquilo que julgamos ser os abrolhos da nossa humanidade – "quantos seres humanos é que morrerão ainda à entrada da velha Europa?" – conviria assistir, isto é, ver com olhos de ver, a curta metragem “Superfície”(2008), do realizador Rui Xavier. O pequeno filme, com a duração de uns curtíssimos treze minutos, parte de uma ideia bastante simples: um homem de meia idade chega a uma praia para dar um mergulho no mar! E a partir daí é como se todo um mundo se concentrasse naquela força e presença de um actor, sobejamente expressivo e tenaz, como é neste caso, Marcelo Urgeghe. "Superfície” é, sem qualquer dúvida, um filme que continua a interrogar-nos, não perdeu actualidade pois continua a revelar a sua enorme sensibilidade perante a nossa frágil humanidade, emergindo como vitalidade e resistência, condensando na sua poesia toda a sua força e o lirismo, ali bem espelhados naquela deriva pessoal, humana e estética. É, certamente, muitas vezes na ficção e…num determinado tipo de cinema que encontramos, de forma substancial e profunda, as imagens e a poesia que necessitamos para sossegar esta nossa conturbada condição humana! 

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

"4´33"

Evocação de John Cage a partir de Nils Frahm

Aguentas em silêncio?
As tuas mãos 
entre uma nota e a outra
espera mais um pouco
nem uma vulgar medida
ou gesto eloquente ainda
o teu piano em diante
vibra a melodia irregular
Escuta
a virtude e a ascese 
nos teus dedos foragidos. 

Uma Ida ao Louvre…Michaelense!

      A Louvre Michalense é já uma lojas representativas do revitalizado centro de Ponta Delgada, na Ilha de São Miguel. Com o seu estilo tido como antigo ou clássico não deixando, por isso, de ser visitada com um misto de novidade e curiosidade, perante um passado que é agora motivo de delicados e saborosos encantamentos. Este renovado espaço centenário, que já foi chapelaria e loja de tecidos, ocupou o lugar da primeira exposição do pintor Domingos Rebelo no século passado. Agora é também local de encontro para pequenos-almoços, lanches e compra de presentes e iguarias de natureza insular. Há também algo que chama a atenção em cima das mesas: os cadernos Albo. O nome vem com uma fita escrito como se de um presente se tratasse: Albo Açores. Está associado ao nascimento do dia, ao começar da vida, inspiração, certamente, pois são pequenos cadernos cozidos à mão e com a vantagem de serem todos eles reciclados. Apresentam-se aos nossos olhos com desenhos de pássaros (tentilhões, estorninhos, garças, etc.). Homenageiam com o seu traço as aves que frequentam o ar e os céus açorianos bem como os peixes, essencialmente, chicharros, que se avistam nos mares profundo do Atlântico. Há também cracas desenhadas para lembrar sabores e mergulhos salinos até ao fundo do mar. Estes cadernos podem ser avistados, tacteados e levados para casa. Um regalo para os olhos. 

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Black Gold


Who Knows Where the Time Goes é cantado neste Black Gold pela Nina Simone. Que voz, que fio de luz aqui vai, parece vir de um túnel que pretendemos nosso...com a saída um pouco mais à frente. É uma canção ao vento, cantada com toda a urgência, talvez com uma dolência maior do que o original de Sandy Denny. E lembro essa indefinição permanente daquilo que é o tempo, esse poder desavindo dos relógios, os desencontros e encontros que o tempo, a passagem deste provoca, o fresco cintilar e pulsar das estações a cada momento que passa. Até que o tempo nos encontre. Ou não. 

Forte combustível é o Fogo



Do natural calor, invariável pressão
o gás
a confluência e os elementos
há-de resultar energia 
fonte de vida.
Forte combustível é o fogo
A liga metálica conjuga
ferro e carbono,
inevitável fusão, 
o aço.
Ativos agentes da resistência,
por subterrânea matéria armazenada,
em forma de bolhas, espasmos,
lava vulcânica acumulada
decorrentes da combustão
e...queimam!

terça-feira, 27 de outubro de 2015

I Never Saw a Philco Fridge

Tu podias viajar comigo na noite
ver como se propaga o ar
não se pode negar a indiferença
enfiaram-te o amor na cabeça
os filmes, os livros e os poemas que leste
agora vai-te embora com as grafonolas
desampara a loja dos fantasmas da infância
e não voltes desconfiado
o gelo não se parte,
solidifica ainda mais
conserva-se para a eternidade
um coração despedaçado não sobrevive
fica desarmado com tanta frieza

Hás-de saber guardar para ti o medo e o cuidado
a leveza com que desapareces da fotografia
não sei muito bem onde aprendeste esse orgulho
esse pequeno ritual do desprendimento
vale o que vale a saúde e desatinas
uma casa em ruínas e o desapego
quando sofres devagar e logo adormeces

Repetes o frente a frente
sem nada conseguir expressar
madrugada adentro
até deitar tudo a perder 
antes da alba nascer

Âmbula chega às Livrarias

O Leonardo, que também já foi Leonardo Sousa, apresentará amanhã na Livraria Solmar,  Ponta Delgada, pelas 18h30, o seu segundo livro de poemas intitulado Âmbula. Este livro, com fotografia de capa de Fernando Resendes, tem a chancela da Companhia das Ilhas e surge depois de “Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”, editado pelas Letras Lavadas, em 2013.Pelo que já foi possível avistar em momentos de leitura improvisada, não é uma súmula de poemas fácil de digerir, tão pouco se gasta numa só leitura, pois à semelhança do que escreve o poeta: (…)“enfim/é isto que escrevo sussurradamente/ sentado em sítios que não me pertencem/sabendo/ que se não me levantar destas estações sensíveis/ toda a minha vida irrefutável e inútil vida será/ ver os outros partir. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Um ARQUIPÉLAGO na Ribeira Grande

     
    O Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas inaugurou no passado dia 16 de Outubro uma exposição intitulada “Um Horizonte de Proximidades”, permanecendo aberta ao público até ao dia 28 de Fevereiro. No seu interior e nos diversos espaços expositivos do Centro é possível efectuar o percurso de trinta oito artistas bem como apreciar as suas respectivas obras pertencentes à colecção António Cachola. Para além da diversidade e riqueza de perspectivas artísticas aqui expostas, é possível percorrer um edifício de rara beleza, com a imponência de uma estrutura sóbria e os seus diferentes dispositivos bem codificados, abertos assim para receber diferentes tipos e modalidades da arte contemporânea. Estamos, pois, na presença de um espaço pluridisciplinar, com múltiplas valências, um serviço educativo em funcionamento, espaço de livraria e biblioteca, e espaços propensos à ocorrência de residências artísticas. Curiosa também é a  proximidade do edifício com o mar e a sua interacção com a luz. 

sábado, 24 de outubro de 2015

Da Curiosidade

"Inventamos histórias para dar forma às nossas perguntas; lemos ou ouvimos histórias para perceber o que queremos saber. Nos dois lados da folha, somos levados pelo mesmo impulso questionador, pelas perguntas de quem fez o quê, e porquê, e como, para que possamos, por nossa voz, perguntar a nós próprios o que é que fazemos, e como e porquê, o que aconteceu quando se faz ou não faz alguma coisa. Neste sentido, todas as histórias são espelhos do que julgamos ainda não saber. Se for boa, uma história suscita no seu público tanto o desejo de saber o que acontece a seguir como o desejo contraditório de que a história nunca acabe: este duplo vínculo justifica o impulso de contar histórias e mantém a curiosidade viva."  

in Uma História da Curiosidade, Alberto Manguel, edições Tinta da China, 2015. 

Postal de Inverno para Miriam Manaia

Querida Miriam Manaia,

Amanhã retoma o horário de Inverno e eu sinto por mim adentro uma rara e obtusa melancolia, aquela coisa acintosa que me faz cair vertiginosamente no silêncio, afastando-me assim da voragem dos dias e do tempo, impondo deste modo um recolhimento interior que só terá ecos de si no relançar das folhas e das flores lá para os finais de Março com o advento da Primavera e da claridade dos dias. O meu ser quedará sombrio e triste, eu sei, nada a fazer.  
Curiosamente, amiga Miriam, encontro-me na sua cidade, habitando bem perto do solar dos Manaias, por isso não tardarei a bater-lhe à porta numa destas tardes da invernia onde farei tensões de me juntar a si  enquanto pinta ou escreve. Ou quem sabe ler os diários do Outono que tenho escrito por aqui.   
 Deste seu amigo, a frequentar novamente lugares de pendor natural e bucólico.

Atenciosamente seu,  

Doutor Mara

Da Injustiça

As nossas organizações sociais, no entanto, ainda existem rótulos, requerem catálogos e estes tornam-se inevitavelmente, hierarquias e sistemas de classe em que alguns assumem o poder e outros ficam excluídos. Toda a biblioteca tem a sua sombra: as infindáveis estantes de livros que ninguém escolheu, que ninguém leu, livros rejeitados, esquecidos, proibidos. E, no entanto, a exclusão de qualquer assunto da literatura, quer por arbítrio do leitor quer do escritor, é uma forma de censura inadmissível que degrada a humanidade de todos. Os grupos ostracizados pelo preconceito podem ser, e geralmente são, postos de parte, mas não para sempre. A injustiça, como já devíamos ter aprendido, tem um efeito curioso nas vozes das pessoas. Empresta-lhes potência e clareza, recursos e originalidade, que são todas elas boas coisas para se ter, se o que se pretende dor a criação de uma literatura. 
in "No Bosque do Espelho", Alberto Manguel, Tinta da China, 2013.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Ontem escrito numa parede da cidade...

I never saw a Philco Frige!

A Biblioteca Pública e Arquivo de PDL


       A recuperação do antigo Colégio Jesuíta para Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada (projecto desde 1989, e obra desenvolvida longamente entre 1992 e 2001), é de Carlos Duarte (1926 -). Embora obtendo uma imagem com pouca visibilidade desde o exterior urbano, o programa conseguiu incluir uma vasta série de novos espaços e a recuperação de outros, entre os volumes, as galerias e os pátios existentes.
        Este edifício articula-se com o da igreja, cuja fachada religiosa de expressão  barroca, é a mais impressiva e original da cidade, dentro do gosto afirmativo e monumentalizante da Ordem. A nave e espaços internos anexos foram recuperados recentemente para instalação do Museu de Arte Sacra (projecto de José Cid e Isabel Cid (concluído cerca de 2005). 


in Arquitectura Contemporânea dos Açores, de José Manuel Fernandes e Ana Janeiro.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Ainda estranhamente te espero

Ainda estranhamente te espero
depois do clima, da chuva e do verbo
a ilha, porventura, aguarda o momento
sei que amanhã é já outro dia
virás vestida de azul em demasia

Desse anunciado reencontro
divertida volta na passada
nada de ajuda ou alimento
difícil acreditar no milagre
provável regresso à origem

Sobre “Espelhos Naturais” de António Garcia Guerreiro

     
Exposição na Biblioteca e Arquivo de Ponta Delgada
   António Garcia Guerreiro apresenta um conjunto de fotografias à volta do arquipélago açoriano intitulado “Espelhos Naturais”. O visitante desta curiosa exposição, patente num pequeno compartimento da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada até Janeiro do próximo ano, poderá ser surpreendido com fotografias facilmente reconhecíveis - são fotografias realizadas em quase todas as ilhas açorianas - mas expostas de forma singular e estimulante aos nossos olhos, exigindo tempo e compreensão à nossa experiência sensorial.


     As fotografias de “Espelhos Naturais” revelam assim um fotógrafo sensível, fascinado pelos cambiantes da paisagem e entusiasmado pela policromia da natureza das ilhas atlânticas. Neste jogo implícito de luz e contrastes, já que são fotografias que usam e abusam do reflexo da água, o jovem fotógrafo – sim, esta é a sua primeira exposição!!! – apresenta imagens de cima para baixo, fazendo-as rodar os 180 graus, tendo por objectivo propor e revelar novos detalhes ou outros efeitos pretendidos, abarcando desta feita as dicotomias: real/irreal, céu/terra, vida/sonho. Relembrando ainda um literato argentino, Alberto Manguel, este escreveu em “No Bosque do Espelho”: “Somos criaturas arrumadas. Desconfiamos do caos. As experiências chegam-nos sem um sistema reconhecível, sem qualquer razão inteligível, com uma generosidade livre e cega. E, no entanto, perante todas as provas em contrário, acreditamos na lei e na ordem.” António Garcia Guerreiro contraria em “Espelhos Naturais” essa mesma lei e ordem, propondo deste modo um presente para os nossos sentidos, arriscando-se assim a encontrar beleza no caos e na miríade de reflexos e estímulos que a natureza em redor nos proporciona. Afinal, o belo pode ser caótico e desordenado, e, para que isso aconteça, basta estar aberto e, com absoluta clareza, atento.  

Oh as casas as casas as casas

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

Ruy Belo in Todos os Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

Espelhos Naturais de António Garcia Guerrero

Fotografia de António Garcia Guerrero

quarta-feira, 14 de outubro de 2015

Larva

Pelo tempo chamado do Outono,
quando a beleza é mais oculta e calma
e na face das coisas pesa o sono
das águas do desejo, fecho a alma
e fico sem estrelas e sem nome.
Humilde, vou tecendo meu destino
futuro de palavras e de fome.
Nesse tempo do Outono meu latino
esplendor é uma cinza paciente.
Meu espírito, um lago verde. Quente,
porém, a gota que leveda ao fundo
do silêncio. Depois serei o Dia,
e com poemas e sangue e alegria
nascerei, incontido, sobre o mundo!...

Herberto Helder, in in “Poesia MCMLVIII” [Pastinhas da Queima das Fitas], org. Campos de Figueiredo, Coimbra, 1958.

Tenros e Frágeis

     "Quando os homens ingressam na vida são tenros e frágeis. Quando morrem são hirtos e duros. Por isso, os hirtos e duros são, desde o princípio, mensageiros da morte e os tenros e frágeis são os mais credíveis mensageiros da vida."

Lao Tsé após leitura da crónica no Expresso de José Tolentino Mendonça.

Ontem escrito numa parede da cidade

Cinco euros por minuto...tendo em conta a duração da peça, propomos um cachet de 150,00€.

As Ruas de Ponta Delgada

       
     "As ruas de Ponta Delgada são estreitas e as casas amplas. A iluminação é feita com candeeiros de azeite, fixos em toscas pedras-favadas, vendo-se aqui e acolá, em frente das melhores casas, um apertado passeio. Noutros respeitos, assemelham-se estas ruas às estreitas ruas de Paris, com um escasso pavimento de pedra ao meio, que funciona como valeta, por onde, com tempo seco, passa um burro acompanhado do condutor, que vai correndo e vociferando atrás. O rés-do-chão das casas é utilizado para lojas, armazéns ou estrebarias. As lojas recebem a luz pelas portas e não teem montra. Não há aqui, portanto, aquela alegre variedade de frontarias e estabelecimentos, como em Inglaterra. Pelas portas abertas se vêem e prateleiras com as mercadorias. Os sinais indicativos dos diversos ramos de negócio estão indicados estão pendurados às portas. Numa, por exemplo vê-se uma dúzia de tiras de algodão estampado, presas a um pequeno pau e flutuando como as fitas do chapéu de um sargento-instrutor. Quer isto dizer que ali dentro está um negócio de fazendas, com os seus panos de algodão, cadarços e meadas. Mais adiante, um pequeno molho de achas, uma cesta de cebolas, algumas cabeças de alho e duas ou três velas penduradas noutro pau, indicam uma mercearia.Um sapateiro tem à porta um feixe de tiras de couro e uma chapeleiro um chapéu pintado na parede. Um talho ostenta  ao vento pedaços de tripa seca ou o grosseiro desenho de um boi ao qual serram um chifre, sendo a serra do mesmo tamanho do serrador. Tal como em alguns becos de Londres, por sobre a porta de um leiteiro, vê-se pintada uma vaca vermelha, arqueada. Um ramo verde de faia indica a loja de vinhos e se houver também um galho de buxo fica-se sabendo que ali se vende aguardente. Assim era na Inglaterra, onde se dizia que "o bom vinho não precisa de ramo". Noutras lojas, vê-se uma pequena tabuleta suspensa de curto pau, com palavras portuguesas significando "bom vinho e aguardente", grosseiramente pintadas. Ao contrário do que acontece entre nós, o nome do lojista não se vê sobre a porta.
      As janelas dos primeiros andares, logo acima das lojas e dos armazéns, são em geral guarnecidas com pequenas varandas de madeira entrelaçada, como nas janelas das nossas leitarias, pintadas de vermelho escuro, verde ou branco. Nas casas maiores vêem-se elegantes varandas de ferro. Pelas goteiras dos telhados escorre água em abundância e a telha da esquina toma frequentemente a forma de um pássaro de asas abertas, ou alonga-se para cima em comprida ponta. Os edifícios são caiados de branco e as ombreiras das portas, cantarias das janelas e cornijas ficam em geral da cor da pedra, cinzento escuro ou negra. Os sapateiros trabalham sentados à entrada das portas, os alfaiates estão acocorados, o ferreiro com o ferro na rua, em frente da porta, cobre carvões em brasa. Os que eu vi sentados em bancos no interior das lojas, pareciam haver sacudido aquela melancolia congénita que lhes atribui, entregando-se a ruidosa alegria."

in Um Inverno nos Açores e Um Verão no Vale das Furnas, de Joseph e Henry Bullar, escrito em 1838-39, numa edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores, 1986.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

Ponta Delgada: cheira a mudança o ar do tempo!

       
      Eis-nos em Ponta Delgada, a cidade de Antero de Quental, António Machado Pires, Tomás Borba Vieira, Zeca Medeiros, entre tantos outros, com o mês de Outubro ainda cheio de gente pelas ruas, com as lojas do centro a ganhar o colorido da estação outonal, com dias cada vez mais curtos e sombrios e a temperatura a solicitar outros tecidos, aquecimentos e agasalhos. O café Caziff, situado na Rua Dr. Guilherme Poças 12, detém uma pintura de uma deusa na parede, ao que parece pintada em estilo Art Déco por artista conceituado de origem nova-iorquina. É por aqui que se enceta o périplo citadino. Arrancamos, assim, sem temor à descoberta da luz e das sombras, à procura de medir o pulso à nova cidade que emerge desde a chegada das companhias aéreas associadas às Low Cost. A agenda cultural Yuzin está  espalhada pelas mesas deste espaço acolhedor, às vezes café, por vezes bar,  propenso a conversas e tertúlias, marcando desta feita o pontapé de saída e incursão pela cidade em mudança. A loja Louvre Michalense é visitada com curiosidade, perante um passado que é agora motivo de delicados  e saborosos encantamentos. Este novo recanto centenário, que já foi chapelaria e loja de tecidos, foi lugar de exposição do pintor Domingos Rebelo no século passado. Agora é também local de encontro para pequenos-almoços, lanches e compra de presentes e iguarias de natureza insular. Entretanto, houve um lançamento na Tipografia Micaelense –“Livro Árvore”, design de Nuno Malato e Júlia Garcia, pequeno objecto tipográfico no seguimento de muitos outros que um grupo de designers locais se têm dedicado a fabricar com materiais de encher olho e com as subtilezas da tipografia antiga.  As noites de poesia animam e, de que maneira, a Tasca da Rua de Lisboa nas noites de quinta-feira, pois por lá marcam presença Luís Andrade, editor dos “Capítulos A, B e C”- uma colectânea de poetas a residir nos Açores, ainda o jovem poeta Leonardo, autor do mais recente Âmbula, título que irá chegar em breve às livrarias nacionais pela Companhia das Ilhas, e com apresentação pública no final de Outubro, para além de outros conhecidos divulgadores ou activistas da cultura como João Malaquias ou João da Ponte. O dono de tão peculiar estabelecimento, Paulo Amado, é visto igualmente a ler poemas e a participar das sessões, por entre copos de tinto e presunto, não se esquecendo de arremessar uma ou outra farpa a poeta mais ardiloso. Incansável tem sido o trabalho da Galeria Arco 8, já com trinta anos no activo e com dez naquele actual barracão tão pertinho do mar. Há bem pouco foi tempo da dupla de músicos Medeiros/Lucas apresentar-se na Galeria Arco 8, momento para dar a conhecer as novas canções destes dois príncipes da Atlântida, desta vez com a companhia de Tó Trips, estando as paredes revestidas de fotografias da exposição “Código Postal: A2053N”, código de matrícula do arrastão “Joana Princesa”, do fotógrafo mariense Pepe Brix. Há poucas semanas estiveram por lá os músicos Zeca Medeiros e Rafael Carvalho, dois expoentes maiores do melhor que faz por terras açorianas, no que diz respeito à dicotomia musical entre a tradição-modernidade. Pedro Bento, responsável pelo Arco8, revela que tudo isto é feito com pouco ou quase nenhum apoio das entidades regionais. Neste momento, a fotografia é a rainha da sala de exposições com a reunião de diferentes autores em mostra designada de “OTIUM”. O Teatro Micaelense conta igualmente com uma programação profissional e regular, apostando essencialmente em nomes já afirmados no panorama musical, tendo sido ultimamente possível assistir aos concertos de Carlos do Carmo, do Sexteto de Jazz de Lisboa ou da açoriana “Bia”. Nesta incursão pela cidade, com francos sinais de renovação e vitalidade, houve tempo ainda para assistir na Ermida da Mãe de Deus à peça “A Passagem das Horas”, num texto de Álvaro de Campos, pela encenação e interpretação do actor Nelson Cabral. A peça seguiu entretanto para as Ilhas do Faial e Flores.
      O ar do tempo está, portanto, pulverizado pelo aparecimento de novos turistas através das companhias de baixo custo que começaram a operar desde Março passado! As pensões, pousadas e hotéis repletos e sem lugar para turistas pouco organizados. Estes que chegam ávidos de conhecer a cidade fazem com que os taxistas sejam incansáveis à chegada do aeroporto. Quase não há carros para alugar e o inglês é a língua que se impõe e vibra com a vontade de ganhar dinheiro rápido. É uma cidade em movimento, com muita gente curiosa para perceber e compreender que caminhos trilham o comércio, a vida social e cultural da pequena urbe insular, talvez entender até onde vai esta mutação ou o novo impulso dado ao centro citadino que até há bem pouco tempo se encontrava vazio e exânime. O que se pode pedir mais a uma cidade que está viva e se agita e balança no Outono e que vai mar adentro à procura do mais fundo de nós, até não mais parar?

O Doce Canto das Caldeiras

A cantora Bia
Bia actuou neste último sábado, dia 10 de Outubro, no Teatro Micaelense, numa sala composta ainda que não totalmente cheia como seria de esperar. A cantora de origem micaelense, nascida em Ponta Delgada no princípio dos anos 80, veio à sua terra natal apresentar pela primeira vez o álbum “Xi-Coração”. De nome artístico “Bia”, o seu nome é Beatriz Noronha, começou a cantar aos catorze anos de idade com a “Art Band”, e a partir daí nunca mais parou. Entretanto e, após diversas aventuras musicais, fez parte do grupo Xaile em 2004, tendo só este ano aparecido com o seu projecto a solo e a título individual. A cantora surgiu em palco com a sua banda para cantar temas como “Monopólio”, “Ora Viva”, “Uma Canção Comercial”, “Meio a Meio” ou “Indecisa Decisão”, entre outros, fazendo assim desfilar os seus convidados que a ela se foram juntando palco: Henrique Ben David (percursionista) e os músicos Zeca Medeiros e Rafael Carvalho. Bia apresentou assim os os temas presentes no álbum como se de um regresso a caso se tratasse, não se cansando de agradecer a muitos presentes, pais inclusive, a sua trajectória e herança musical. O momento alto da noite, que viria a ser replicado em encore com a sua irmã (Ana Braz), foi a canção “Sou de uma Ilha”, momento alto para ouvir em tom maior : “Sou de uma Ilha, não há volta a dar/ Onde o princípio do fim é só mar/Sou sangue fogo que há na cratera/ Sou de alma e de quem navega.” Não esquecendo, porém, o dueto muito bonito que esta encetou com Zeca Medeiros no tema “Carta de Despedida”.

Quatro Poemas de Karmelo C. Iribarren

Ya Está

Ya poseemos
casi todo
lo que nos iba
a hacer felices
Puede decirse
que lo hemos
conseguido

Ya está.

Ahora solo
nos queda
comprovar
hasta qué punto
fuímos sinceros
conostros
mismos.

Retratos del Poeta Adolescente

Un paquete de tabaco
un libro de poemas
cuarenta duros
para tomar unas cervezas.

Poca cosa, es verdade:
pero para mi
era suficiente.
Y entonces aparecieron las mujeres.

Conviene no olvidarlo

No hay nada
Grátis. Ni siquiera
lo que es grátis es grátis de verdad.

Siempre
te lo descuentan
de algun sítio.

Lo Difícil

Enarmorarse es fácil
Uno pude enamorarse
-sin demasiado esfuerzo –
varias veces al dia,
a nada
que se lo proponga
y se mueva un poco por ahí;
y si es verano,
ni te cuento

Enamorarse no tiene
maior mérito
Lo realmente difícil
-no conozco
ningun caso-
Es salir entero
de una história de amor.

60 Cêntimos e Pouco Sono

É aqui o fim da noite
crepitam linhas no papel
a insânia do teu esgar
devastado e danoso
como se anunciasse ao longe
o fogo das castanhas de Novembro

Os Dias Normais

Chegam
e vão-se
sem deixar rasto
   e tu ficas a vê-los
a afastarem-se sobre os telhados
-e com eles, os anos-
e apenas sentes nada
ou sentes algo, vago,
que não sabes decifrar
                  são os dias
normais, os de sempre,
os que parecem que passam
à distância,
os assassinos
do amor.


Karmelo C. Iribarren

quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Capítulo B

  
      A criação de colectâneas corresponde a uma vontade de dar a conhecer um leque alargado de autores. Há, por isso, neste Capítulo B um conjunto de poetas bastante diversificado e ainda uma variedade de poemas para vários gostos, ideias e estéticas, o que por si só é salutar e extremamente enriquecedor. As perguntas de hoje são evidentemente as mesmas de sempre: quem são hoje os leitores de poesia? Que eco tem a poesia na sociedade em que vivemos? Independentemente das respostas que possamos dar, o que há de importante neste impulso editorial é o facto de ser portador de uma ideia comum de comunidade poética. Estes autores surgem a partir de encontros semanais, quinzenais e mensais em actividades públicas de poesia: o Poetry Slam de Ponta Delgada, as quintas de Poesia na Travessa dos Artistas ou na TASCÀ, da Rua de Lisboa. Muitos destes poemas foram lidos em público, obtiveram timbre e diferentes ressonâncias junto dos seus ouvintes. Existe por aqui, tal como não podia deixar de ser, uma enorme cumplicidade entre os autores destes Capítulos, sendo este um bom motivo para uma maior divulgação desta compilação junto do público. É que a poesia é um género com pouca divulgação em Portugal e nas ilhas, os poetas editados são, na maioria das vezes, detentores de editoras, isto é, editam os seus próprios livros e editam os seus parceiros e amigos. São, portanto, poucos os poetas editados que não pertencem aos círculos da poesia amical, o que por um lado é sinal de cumplicidade e qualidade garantida, mas denuncia, não poucas vezes, sinais de estagnação ou cristalização estética. Ninguém quer, pois, arriscar uma edição de poemas se não conseguir pagar os custos da mesma. Deste modo, saúde-se a edição de colectâneas e, esta em particular, que conseguiu assim reunir dois poemas de Carla Veríssimo, Eleonora Marino Duarte, Fernando Nunes, João Malaquias, João Morais, João Quental Oliveira, José Soares, Júlio Ávila, Leonardo e Luís Augusto. Boa leitura!

Make do de Paulo Nozolino

Fotografia de Paulo Nozolino

terça-feira, 6 de outubro de 2015

Capítulos B – Poesia nos Açores

      

      A edição é de 150 exemplares e tem o preço simbólico de 2 euros. Luís Andrade coordenou, organizou e fez o grafismo deste projecto apoiado pela Direcção Regional da Juventude, através do programa "Põe-te em Cena". A colectânea reúne dois poemas dos seguintes autores: Carla Veríssimo, Eleonora Marino Duarte, Fernando Nunes, João Malaquias, João Morais, João Quental Oliveira, José Soares, Júlio Ávila, Leonardo e Luís Augusto. Os pedidos deverão ser feitos para: capitulospoesia@gmail.com

Furnas

“Diz-se que certos indivíduos, que ao chegarem às Furnas parecem montanhas de carne, no regresso a suas casas vão de tal modo magros que quase os desconhecem os seus amigos. O processo consistiu em permanecer de molho umas horas por dia em águas muito quentes, deixando depois que por espaço de mais uma ou duas horas se opere o suadoiro de expurgo, para o que o paciente se embrulha em grossos casacões de lã e envolve a cabeça e o pescoço em toalhas. Os banhos produzem nestas pessoas um desgaste de reservas corpóreas semelhante ao que a fome no Inverno causa num arganaz hibernante.”



in Um Inverno nos Açores e Um Verão no Vale das Furnas, de Joseph e Henry Bullar, edição do Instituto Cultural de Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, Açores, 1986.

Cantar com a Patti Smith…

     “Talvez seja uma utopia do contra, mais uma para a oposição do que para um governo, mas votar também é dizer não (como não votar pode ser) e, ainda que eu não votasse neles para o governo, vários candidatos, do Livre ao PCP, passando pelo Bloco, me parecem óptimos para essa resistência: zero retrocesso na lei do aborto, direitos plenos para os homossexuais, defesa do Estado Social, barreira contra os desmandos da Banca, a antítese de uma cultura agradecida, decorativa, ufanista. A propósito, Pàf assenta como uma bofetada nesta coligação. Portugal à frente de quê e para quê? Da quantidade de portugueses que esta coligação fez sentir a mais? Será a diferença entre patrioteiros e patriotas, mas sobre isso não me alongo. A ideia de pátria não me interessa, o nacionalismo não ama mais, confina e distingue. Interessa-me a ideia de amor a um lugar que se liga aos outros por isso mesmo, não tem medo de se perder, está em toda a parte: partir porque é bom, ficar porque é melhor. A vontade é que faz a casa. E aí podemos todos cantar com a Patti Smith "people have power". Somos nós e não há outros.”

Alexandra Lucas Coelho in P2, dia 4 de Outubro de 2015

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

As Charlas...Versão Itinerante.

Tiago Vouga em "As Charlas Quotidianas
 do Doutor Mara" (Agosto de 2015)
      O meu amigo, Tiago Vouga, regressou hoje ao continente português. O Tiago Vouga é o actor das "Charlas Quotidianas do Doutor Mara", excelente representação, por sinal. Sim, sou suspeito para dizer que este teve uma brilhante representação nas três vezes que a peça foi apresentada no Auditório ao Ar Livre da Biblioteca Municipal da Horta, durante o mês de Agosto. O Tiago Vouga e a Aurora Ribeiro actuaram para cerca de cento e cinquenta pessoas e, à semelhança de elementos do Teatro de Giz, também ele leu as Charlas na rádio Antena 9. 
   Agradeço-lhe, por isso, a generosidade, a humildade e simplicidade com que de forma voluntária, gratuita e empenhada se dedicou a este trabalho, a este texto e encenação colectiva. Durante este último mês, dedicámo-nos também a enviar propostas para dezenas de lugares que se ocupam destas coisas do teatro, da cultura e dos apoios a itinerâncias culturais. Gostaríamos, deste modo, que mais pessoas possam ainda assistir a este trabalho conjunto que nos deu tanto trabalho a realizar e levar adiante. O teatro tem este lado efémero, vive do momento em que assistimos e, por isso, tem que ser apoiado, divulgado, compreendido, valorizado. Em breve, contamos dar conta desses palcos em que terão lugar as Charlas do Doutor...Mara! Aqui: https://www.youtube.com/watch?v=0m_9pwmHtqc

Da Brumal Estação das Aves

Eis o marítimo Outono das aves,
seca noite da cidade fria,
nuvens viajantes até ao infinito,
por rotas dos ventos e do mar,

As flores nas águas sorvendo,
teu perfil de ardente utilidade,
A infância de frente: envelhecendo,
convenção presente esclarecida
agora habitada.

Desfeitos elos envoltos 
iluminado ócio da humanidade.

quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Tudo o Que é Novo é Belo

De tudo o que é novo nasce um novo prazer, 
mas eu sei que não é boa a jovem morte,

Ela fere pelas costas, e não é doce como o açúcar,
nem é como o vinho, nem como o sumo das uvas. 

(Al-Hountay`a)

in Quatro Poemas Árabes, "O Bebedor Nocturno" - Versões de Herberto Helder

Barcos


























Melancólico

"Quem nasceu melancólico realça a tristeza em tudo o que acontece."

Sigmund Freud in Correspondência (1873)