quinta-feira, 31 de dezembro de 2015

2015: Entre as Sombras e a Luz

        Um ano passou e com ele os doze meses findaram. Partem assim sem querer mais nada com a gente. Continuaremos daqui a pouco, certamente, com a energia de sempre. Poderia ter gostado muito deste ano, mas há igualmente coisas para lembrar e outras para esquecer, semelhante a todos os outros anos. É sempre assim: desviemo-nos do supérfluo, o essencial permanecerá. Após destrinça, ficam as leituras de poemas de Alexandre O´Neill, Sophia, Ruy Belo, José Miguel Silva, Karmelo C. Iribaren, Leonardo, Marta Chaves, João Habitualmente, Joaquim Castro Caldas, Emanuel Félix, Rui Duarte Rodrigues, João Paulo Esteves da Silva, o recém desaparecido Herberto Hélder, entre tantos outros, lidos nas noites de poesia da Tascà. Segundo, as coisas boas do ensaio literário que me vieram ter às mãos: os livros de Alberto Manguel, deliciosos de ler, sorver, assim mesmo quando o prazer inicial da leitura se renova, ou ainda a curiosidade por ler e ouvir o filósofo esloveno, Slavoj Žižek. Pelo lado dos ouvidos, a música, cada vez mais sons em palco e em escuta:  a dupla Medeiros/Lucas no Teatro Faialense, dois príncipes da Atlântida que compuseram um “Navio” lindíssimo de ver ao vivo ou a ouvir enquanto se olha o mar. A presença de Zeca Medeiros na escola, os concertos na sede do Sporting da Horta e as respectivas recensões semanais para o Múma - Música em Março, no Tribuna das Ilhas, Ilha do Faial. Ainda o maravilhoso concerto de Mbye Ebrima na Academia das Artes, em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel. E também a audição da música de Dan Bejar, vocalista dos Destroyer, Selah Sue, Rodrigo Amarante e o surpreendente Benjamin Clementine. A publicação de dois poemas no Capítulos B, uma colectânea de poesia organizada pelo Luís Andrade com poetas a residir nos Açores. Os poemas eleitos para constar da súmula foram: “Uma Mulher em Férias é Bonita” e “A Melancia no Feno da Páscoa”. Este foi o ano em que voltamos a apresentar três capítulos (Ginecomagia, Tarantoterapia e Enomátria) das “Charlas Quotidianas do Doutor Mara”, postos nas tábuas do “palco” do Auditório ao Ar Livre da Biblioteca Municipal da Horta com as interpretações de Tiago Vouga e Aurora Ribeiro, replicando a representação por mais duas vezes para uma audiência de 150 pessoas. Foi também o tempo em que o cinema regressou ao ecrã do computador ou à televisão, por isso recorde-se "Nebraska", de Alexander Payne, "The Kid", de Charlie Chaplin, "Sinédoque - Nova Iorque", de Charlie Kaufman ou a curta-metragem "O Triângulo Dourado", de Miguel Clara Vasconcelos. Deve-se também guardar na memórias as viagens e as paisagens do Vale das Furnas, em São Miguel, o Vulcão dos Capelinhos e a Baía de Porto Pim, na Ilha do Faial, e a Fajã Grande, na Ilha das Flores. Por último, o maravilhoso jardim António Borges, em Ponta Delgada, que o funcionário Paulinho me deu a conhecer nas suas árvores mais do que centenárias, frondosas e vistosas – jacarandás, plátanos araucárias, bambu preto da China, figueiras australianas, eucalipto-limão, entre tantas outras. Tudo o resto é do domínio do indizível. Um feliz 2016!

quarta-feira, 30 de dezembro de 2015

Prémio Melhor Biobibliografia do Ano



"Num livro repleto de pormenores tão deliciosos quão arriscados, o jovem poeta Leonardo (n. 1993, Ponta Delgada) resolveu incluir uma bio-biliografia [algum motor] onde cabem amigos, leituras, influências culturais de ordem diversa. Tem tanto de bibliográfico como de agradecimento, este momento mor que termina assim: «as ruínas da casa primeira, o cavaleiro do apocalipse que regressa / ao império em chamas, mãe / e demais amigos e entidades e gratidões e artes e perícias e equívocos, / cegos, reordenados, parafraseados, orbitando, noite: / oxi oxi, eu bem sei que erro // (2013-2015) // ab imo pectore, // leonardo». A edição de âmbula [: pés, punhos, tórax: manicómio/manicórdio] (Outubro de 2015) coube à Companhia das Ilhas. Só ficamos a saber quem é o autor quando chegamos ao fim. Bom e estranho livro."
Henrique Bento Fialho
Daqui http://universosdesfeitos-insonia.blogspot.pt/

terça-feira, 29 de dezembro de 2015

Pela Tardinha...

       "Pela tardinha, reunimo-nos e passeamos pela cidade, procurando os caminhos em que a cidade não nos atropela nem oprime. Entramos amiúde num café, porque nos cafés livramo-nos e escondemo-nos um pouco do injusto e do precário. Destino que nos persegue em casa e na rua. Se nos tempos de Caim tivesse havido um café discreto e dissimulado como estes que a gente escolhe, ter-se-ia até podido esconder  olhar daquele olho tão implacável."


Ramon Gomez de La Serna

sábado, 26 de dezembro de 2015

O Dia Mais Curto pelo 9500 Cineclube

          
"CÓDIGO POSTAL -A2053N" de Pepe Brix
         Antes da quadra natalícia dar início, o 9500 Cineclube de Ponta Delgada brindou os cineclubistas micaelenses com duas curtas metragens inseridas no Dia Mais Curto, uma iniciativa que ocorre por esta altura do ano. A sessão abriu com "CÓDIGO POSTAL-A2053N", curta-metragem do fotógrafo e realizador mariense, Pepe Brix, num registo documental em imagens sobre a sua presença curiosa e observadora durante quatro meses no navio "Joana Princesa", uma embarcação da pesca do bacalhau. O resultado desta sua dedicação e sensibilidade é o encontro com a mais profunda humanidade destes homens em crescendo de sacrifício e esforço. Pepe Brix traduz em imagens essa mesma dor em comunhão, a sua mais funda contemplação de seres em pleno acto de entrega ao seu labor. Ainda que em forma de "teaser" promocional, "CÓDIGO POSTAL-A2053N" é um fresco tocado pela contemplação de uma longa jornada com homens no mar, atraído pela vida a bordo dos bacalhoeiros nos mares do norte, o seu primitivo confronto com essa força da natureza: o mar. Este processo, ou mergulho, implica sempre dificuldades, renúncias, resistências aos limites de cada um. Bonita e emotiva é, sem dúvida, a convocação no final de todos os intervenientes nesta aventura, suportada com a música "Que Força é Essa" de Sérgio Godinho, e ainda a voz de José Mário Branco.


       
"Raimundo" de Paulo Abreu
        Quanto a "Raimundo", curta-metragem de um realizador interessado em combinar a pulcritude dos espaços insulares com a leveza dos personagens particulares que habitam o singular espaço das ilhas, tem aqui o seu ponto de partida e chegada. Anteriormente, Paulo Abreu brindou os cinéfilos açorianos com duas pérolas documentais na Ilha do Faial - "Adormecido" (2012) e "Varadouro", (2013), percorrendo com distinção vários festivais, acolhendo do público espectador encómios de súbita rendição, um considerável grupo galvanizado pelas suas derivações interiores e marinhas. Desta feita, Paulo Abreu entrega-se ao pícaro e ao jogo de forma deliberada, assumindo os riscos de pouco ou nada surpreender com este registo divertido e assaz fantástico. O realizador quis reunir uma família de amigos em torno de um "cineasta polémico" a residir em São Miguel e, por isso, "Raimundo" é, à sua maneira, um objecto fílmico extravagante, demasiado até, enxugado pelo universo que retrata, e marcado essencialmente pelo rol de personagens que apresenta - Comissário Bettencourt, Professor Malaquias, Professor José Mascarenhas, o pescador Gualtieri Filostrosa, entre outros - que tentam, cada um à sua maneira, justificar a existência de seres extraterrestres em território rodeado de mar por todos os lados. Talvez por isso, os estudantes da Escola de Cinema foram à procura destes conceituados teóricos ou figuras locais com os seus testemunhos estrambólicos de cariz obsceno e rebuscado. O próprio personagem principal, "Raimundo", na pele do produtor João da Ponte, possui tiques raros e manias de um isolado amante de cinema, imbuído de insistências, obsessões e tergiversações, acreditando mesmo estar possuído por uma missão de detectar vida para lá destas nossas consciências mundanas e existências muito terrestres. Este singular atestar de evidências extraterrestres é levado ao extremo pelos diferentes discursos desse leque alargado de personagens mirabolantes, que nos deixam exactamente na mesma sobre a existência ou não deste tipo de fenómenos, o que é pena. Por isso, a dúvida mantém-se e, à semelhança das figuras/soldado que surgem no final do filme, podemos dizer que o invulgar, o inesperado, culminado num inusitado riso, é, afinal, a mais sábia de todas as estranhezas que nos invadem e circundam.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

Aguda Melancolia

Quando visível em diagnóstico
a aguda melancolia
Foste tu, declarante, a decifrar 
em sinal de comovente provocação
o riso frágil e o cigarro posicionado
eras o rosto, o indicativo prenúncio
enquanto porto de abrigo da denúncia
Esfinge em mágoa pronunciada
laço de elevada satisfação adquirida
talvez do domínio da química
o teu lenço e a dúvida a saber 
porque partem as cigarras em silêncio
quando lamentas a ausência de calor? 

sábado, 19 de dezembro de 2015

Um dia para comer e beber em PDL

        O dia começa cedo em Ponta Delgada e, ao cimo da bonita rua D´Agoa, fica o Café “3/4”, antigo Caziff, especialista em diferentes tipos de comidas ligeiras e sopas, sendo os pequenos-almoços recheados de bolos lêvedos, compotas, e outras iguarias que propiciam conversas saborosas e demoradas. Algum tempo mais tarde, procurar-se-á no centro da cidade um circuito de restaurantes mais sugestivo quando a fome ou a sede apertam. É uma cidade que só terá a ganhar se for cultivado o requinte e a diversidade gastronómica, podendo-se mesmo afirmar que granjeará bons clientes se houver de tudo e para diferentes gostos. Há, portanto, uma mediana oferta, ainda que variada, com várias opções para diferentes carteiras bem ou mal recheadas. O roteiro para o almoço pode ser inicialmente confirmado com uma ida ao Restaurante “Mané Cigano”, lugar tradicionalmente composto por pratos de peixe e com um ambiente bastante intergeracional e popular, no seu lado mais justo do termo. Da sua oferta gastronómica reina o prato de chicharros fritos, mas é essencial provar o polvo guisado ou o bonito. A acompanhar, como sobremesa, deve-se comer uma queijada da Graciosa. Uma visita de seguida ao jardim António Borges, composto por uma grande diversidade de árvores centenárias, poderá ser útil para alargar os conhecimentos de botânica e abrir o apetite para o que virá a seguir. Se acertar no dia e, quiser ver um jogo de futebol, especialmente do Sport Lisboa e Benfica ou do seu clube contra este, aproveitar para conversar, beber, petiscar e até mesmo cantar em uníssono hinos alusivos ao seu clube de eleição, esse lugar dá pelo nome de “Travassos”, ali na rua Dr. Guilherme Poças. Um espaço onde se sente e se vibra com as cores rubras do “Glorioso”, fazendo-se este imediatamente notar pela variedade de petiscos expostos ao longo de uma mesa. Na antevisão do jantar e, dado que o dia já foi longo e robusto, o melhor é mesmo preencher o estômago com uma pizza “Caprese” no restaurante a “Forneria”, um lugar que, para além da qualidade dos pratos de origem italiana num forno bem micaelense, recebe os clientes de forma cuidada e atenciosa. 

Rua do Colégio: Uma Rua Bonita

       















Ilustração de Hiomar para artigo publicado na edição do Fazendo 104, intitulado "Rua do Colégio: Uma Rua Bonita".

quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

terça-feira, 15 de dezembro de 2015

Verónica Melo: Arte Salina!

O Festival de Artesanato “Prenda” iria fechar portas daí a instantes e Celina da Piedade ensaiava com a sua banda os temas musicais para as horas seguintes. E enquanto as pessoas passavam pelos expositores, os músicos afinavam ritmos e instrumentos de cordas. As oficinas decorriam a bom ritmo e por ali havia uma cadeira vaga para escutar o prenúncio das canções bem como distrair quem se encontrava concentrado a efectuar desenhos e linogravuras, sem ter noção do que se estava a passar. A oficina resultava em trabalhos finais e, Verónica, que ministrava a oficina pacientemente, ia incentivando quem chegava a participar, denotando uma facilidade em tornar as imagens úteis e funcionais para quem se encontrava em dificuldades ou sem grandes soluções criativas. A oficina terminou e Verónica não se ficou por ali, pois quis oferecer parte do trabalho a quem por lá estava, resultando deste modo a curiosidade. Quem é esta artista?
       Verónica Melo nasceu na Ilha de São Miguel, em 1990. A criatividade pertence-lhe e sabia que depois de terminar o seu curso na Faculdade de Belas Artes, na cidade do Porto, o mundo podia ser possível a meio do atlântico. Arriscou.Verónica gosta muito do mar e por isso de imediato se pôs a fazer ilustração científica, pois sabe que uma das riquezas das Ilhas dos Açores passa pelo fauna e flora existente. Sendo hoje exequível trabalhar e criar a partir das ilhas para todo o mundo e para isso basta ter as ferramentas e tecnologia ao seu alcance. Ela vai tendo, por isso, convites para trabalhos no exterior e continuar a desenvolver um trabalho constante para “Os Amigos dos Açores” e dar resposta ao que vai aparecendo pela ilha verde, caso do último Walk and Talk em que realizou uma "Oficina de Carimbos". Entretanto, a artista plástica esteve na Louvre Micaelense a dar mostras das suas gravuras tal como foi fazendo carimbos para “embrulhos” que vão brotando da suas mãos e imaginação. Uma pergunta impõe-se: o que virá a seguir?

segunda-feira, 7 de dezembro de 2015

Fazendo 104

     


      O número 104 do Fazendo que acaba de sair em Dezembro já se encontra online: (https://issuu.com/fazendofazendo)
      A edição do boletim cultural, com sede no Faial e distribuição nas Ilhas Terceira, São Miguel e Pico, tem as capas do artista gráfico Gonçalo Cabaça e ainda muitas páginas dedicadas à actividade cultural e científica existente no arquipélago dos Açores. Boas leituras!

quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Ler e Conversar

      Está ali sempre sentada. Basta-lhe uma mesa livre e sossegada numa biblioteca pública sempre actualizada. Ela senta-se e, tal como numa silhueta próxima das “Meninas”, de Velasquez, fica quieta a ler. Quem a vê, julga que está perante uma imagem muito antiga, parece avistar uma pintura de um quadro de um século remoto, uma fisionomia singular ou parecença de um vulto de um outro tempo. Não que ela queira ser avistada, ou que use as leituras para se afirmar, mas sim porque aquelas leituras são o sinal da sua existência, a sua vitalidade enquanto ser pensante, existente. É como se ela estivesse ali a cumprir uma função, por vezes parece incumbida de uma missão ou no alcance de um desígnio maior para uma vida rica e sábia. Vê-la ali a ler é deveras um privilégio, pois são raras imagens com esta força, com esta subtil presença. Uma leitora ávida numa biblioteca, só pelo gosto, pelo prazer de ler. Não há bolsas para leitores mas, depois de vê-la tantas vezes a ler, bem que podiam muito bem existir e que ninguém levaria a mal se ela a tivesse, se ela pedisse. Ela lê mais que qualquer um de nós, ela já leu o que nós nem sonharíamos alguma vez ler e por isso devíamos ter orgulho nisso. Nós, pobres leitores. Esta leitora lê tudo: jornais, livros, revistas, boletins, anúncios e o que mais houver para ler. A esta leitora tudo lhe interessa e por isso a vida continua, mesmo que o tempo ou a juventude arrogante diga o contrário. Descobrir assim uma leitora é reviver o prazer inicial da leitura. A curiosidade não tem fim. Esta leitora lê em silêncio, a maior parte das vezes numa mesa sozinha, com os seus apontamentos, as suas notas, os seus provérbios, os seus pensamentos, a leitura em modo voraz. Tem nome de flor e os seus cabelos parecem ondas de mar revolto, agitado, num rosto cavo, frágil e umas feições que acusam o passar do tempo. As suas rugas contam muitas vidas, muitas histórias. Ela foi professora a vida inteira, daí que não possa perder tempo com minudências, com coisas sem importância. Ela diz mesmo: “O que eu gosto mesmo: ler e conversar”. Sem mais.

Mbye Ebrima: a Kora Inebriante!

      Acabou Novembro, findou musicalmente da melhor maneira. E com ele foi tanta música pelo espaço sideral embora, bastou por isso ver o músico gambiano, Mbye Ebrima, a tocar a sua Kora na Academia das Artes no Festival “O Mundo Aqui”, organizado pela AIPA. É bom, maravilhoso até, comer as comidas de países com gentes que vivem e trabalham por cá. É mesmo muito bom, desfrutar da cachupa, do sushi, da chamussa, beber um grogue, provar uma caipirinha, degustar uma sobremesa como o bolo de coco ou uma cocada, saborear tanta gastronomia variada. Sabe bem, sabe sim senhor. Apreciar a mistura, reconhecer a nossa história comum, as diferenças que ainda existem e que em estado harmónico progridem. Conceber, portanto, essa hipótese de um património conjunto. Ao mesmo tempo viajar com os maravilhosos sons extraídos da kora de Mbye Ebrima, sempre com o seu riso, a sua altura e figura esfíngica, os seus apelos à paz e ao amor, juntando com ele no final Alexandre Gualdino, músico cabo-verdiano, sabendo que aquele momento terá sido único, para mais tarde recordar, ainda que preparando o espaço e o tempo para a doçura cálida do canto de Vânia Dilac, com nova companhia e visual. Esta é a mistura que une, não a guerra, a música que é arte e que é fértil, que fecunda a esperança de um mundo outro, possível na sua diferença e diversidade, expressa por países e lugares tão distintos – Cabo Verde, Brasil, Moçambique, Portugal, Açores - enfim, a memória e a liberdade de um entendimento possível pelo canto e pela barriga. Assim seja. 

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

Dario Fo pelo Teatro de Giz

       Um bairro que se revolta; uma casa de operários que desencolhe à medida que se expande a consciência colectiva dos seus moradores; uma comunidade que recusa a injustiça da pobreza e compreende a força da sua união.
          Uma sala de teatro pode ser palco de uma revolução? A interrogação pode ser o motor da mudança, sim, e é essa a proposta do Teatro de Giz neste seu regresso aos palcos. Luciano Amarelo, o encenador convidado para nos ajudar a construir esta nova produção, criou uma espécie de jogo de espelhos que reflectem (sobre) a realidade do nosso País, da Europa e do Mundo; uma realidade que vem da rua, que por sua vez invade o teatro, que por sua vez está também na rua. Não se Paga!, Não se Paga!, o texto original de Dario Fo a partir do qual nasce este novo trabalho do Teatro de Giz, mantém-se actualíssimo - apesar de ter sido escrito há mais de quarenta anos -, tanto na ambição de defender os mais frágeis da sociedade como na lucidez de o fazer através da comédia. Porque o riso, como disse o próprio Dario Fo, liberta o homem do medo.                                                                                   
                                                                           Texto pelo Teatro de Giz, Ilha do Faial.

    "O riso. Sempre o riso. Quando uma criança nasce, os pais não descansam até conseguirem provocar-lhe o riso, fazendo-lhe caretas. Porquê? Porque o momento em que ela ri significa que a inteligência nasceu. Significa que ela soube distinguir o verdadeiro do falso, o real do imaginário, a careta da ameaça. Significa que ela soube ver para além da máscara. O riso liberta o homem do medo. Todos os obscurantismos, todos os sistemas ditatoriais se alicerçam no medo. Assim, toca a rir!" - Excerto da uma entrevista de Dario Fo ao L'Express, em 2006.

terça-feira, 17 de novembro de 2015

Sala de Embarque

Rapariga Aluada: Eu gosto tanto de olhar pelas janelas do avião. As nuvens parecem-me farrapos brancos a voar pelo céu.  E todas elas têm nomes curiosos, há a cumulus, a congestus, a Cumulonimbus, a Stratocumulus, a Nimbostratus, a Altocumulus, a Cirrus, a Cirrocumulus...

sábado, 14 de novembro de 2015

Resposta a Janeiro Alves no Mês das Castanhas

Caro Janeiro Alves,

Escrevo-lhe de uma nuvem de sonho em que estou imerso, por sinal de seu nome: Altocumulus. Ultimamente só frequento nuvens e, como é do seu conhecimento, chafaricas urbanas de grande nível. É por lá que me vou alimentando de sopas de alho francês e me dou ao trabalho de dar duas ou três de conversa antes de regressar novamente ao meu estado nefelibata.
Recebi a sua missiva com muito agrado e pertinência. Esta foi-me lida em voz alta pela minha mui amiga Miriam Manaia enquanto me amaciava os pés com água bem quente polvilhada pela erva-dormideira. Fico deveras admirado com tanta verborreia da sua parte que a meio da sua epístola encravei uma unha na frincha da bacia e tive de retirar o dedo mindinho com um alicate. Isto só possível após o relaxamento do músculo e da polpa do dedo dado ter ficado petrificado com o seu discurso. Tenho, sem dúvida, plena consciência que face ao momento crítico e caótico que estamos a atravessar são necessários homens rijos e valentes. No entanto, há muito que a comunidade de sábios da numerologia não conta comigo para decifrar os mistérios da alta finança e do bolo-rei. Tenho muita pena, portanto.
Permita-me que lhe demonstre a minha total disponibilidade para esse nosso encontro há muito aguardado, responsabilizando-me pelo transporte dos dossiers do célere e afamado Congresso da Fajã bem como levarei comigo moedas de um cêntimo para o crónico jogo da moeda. É possível que inicialmente não me consiga reconhecer pois faço questão de me apresentar de túnica helénica e de óculos de mergulho, já para não falar que irei com a cabeleira do Mancha. A palavra de código será – Darandina!
Saúdo, portanto, o meu caro amigo com um copo de tinto – palavra que em sânscrito significava amado – e revelo assim a minha sensação ilusória de felicidade momentânea que aguardo em breve podê-la partilhar consigo.
Com as respectivas saudações marianas,

Doutor Mara

(Embora Tenha o Sol...)

Embora tenha o sol para me alumiar
e a lua e as estrelas depois do sol se pôr 
sem a luz dos teus olhos negros
é sempre negra a noite em meu redor.

Bhartrhari, Índia, séc. V. d.c
(Tradução de Jorge Sousa Braga)

quarta-feira, 11 de novembro de 2015

O Beijo

Um rapaz beijou-me ontem à tarde
E o seu beijo era um vinho perfumado
Tão longamente bebi nesses lábios o vinho do amor
que ainda agora me sinto embriagado

Anónimo, Grécia, Séc. I a.c
Tradução de Jorge Sousa Braga. 

Rapariga Seduzida

Embalou-me - eu era tão inocente -
com vinho e palavras de amor

e todas as juras. Ao acordar
qual não foi a minha surpresa

A seda que cobria os meus seios e o ventre
desaparecera e com ela a minha pureza

Deusa lembra-te que estávamos sós
e ele era forte - e eu tão indefesa


Hedylos, Grécia, séc. II. A.C
Tradução de Jorge Sousa Braga. 

Da Poesia...


      "A poesia não oferece respostas, a poesia não pode apagar o sofrimento, a poesia não trará um ser amado de volta à vida, a poesia não protege do mal, a poesia não nos vinga as vítimas nem castiga os que as vitimam. Tudo o que a poesia pode fazer, e só quando as estrelas são caridosas, é emprestar palavras às nossas perguntas, ecoar o nosso sofrimento, ajuda-nos a recordar os mortos, nomear as obras do mal, ensina-nos a reflectir acerca das consequências da vingança e dos castigos, e também da bondade, mesmo quando essa bondade já não existe. Uma velha oração judaica recorda-nos humildemente: “Senhor, retira a pedra do meio do caminho, para que o ladrão não tropece durante a noite.” 

in Uma História da CuriosidadeAlberto Manguel, edições Tinta da China, 2015.

domingo, 8 de novembro de 2015

Escrever versos...

       Escrever versos é um acelerador extraordinário de consciência, do pensamento, da compreensão do universo. Quem experimentou uma vez essa aceleração, nunca mais será capaz de recusar a possibilidade de repetir essa experiência; torna-se dependente do processo, como outros se tornam dependentes da droga ou do álcool. Aquele que verifica que está dependente da língua é, creio, o que se chama um poeta."
Joseph Brodsky

sábado, 7 de novembro de 2015

Ontem, escrito numa parede da cidade

"Diz-lhe que vais da minha parte."

Orpheu por Armando Cortes-Rodrigues

         "Conheci Fernando Pessoa quando cheguei a Lisboa para frequentar o antigo curso superior de Letras. Já não sei quem me apresentou no Chiado, como poeta das ilhas. O traço comum da poesia e a simpatia acolhedora de Pessoa iniciaram uma amizade cada vez mais última, durante cinco anos de convívio. 
Todos os dias me encontrava com Pessoa sempre depois das aulas e à noite depois das aulas, a princípio na Brasileira do Chiado e depois no Rossio.
        Pessoa tinha um grupo de amigos e admiradores que abancavam à mesma mesa do café. Dessas conversas nasceu o movimento do Orpheu e a possibilidade daquela revista, da qual saíram apenas dois números."

Manuscrito de Armando Côrtes-Rodrigues escrito em Ponta Delgada por altura do 30ºAniversário da publicação da Revista Orpheu. Junho 1945. 

quinta-feira, 5 de novembro de 2015

Uma Epístola de Janeiro Alves no Cair da Cacimba....

Caro Dr. Mara,

       Os meus dias mais recentes têm-se revestido de uma certa e determinada preocupação. Preocupação com o estado das coisas, e preocupação com o facto de não saber de si para as resolver. Nem de si nem do seu paradeiro. A única pista relevante foi-me dada por um transeunte comum e incaracterístico que me confidenciou ter visto o seu paradeiro de soslaio numa chafarica urbana.
       Essa sua ausência certamente catártica tem-me causado algum transtorno, pois como sabe há muito que conto com a sua diligência e até esperteza na aplicação de métodos de trabalho com vista à implementação do nosso projecto futurista. Confiei nas suas mãos os mais engenhosos, invulgares e até pouco ortodoxos planos de instalação de novas consciências para a transformação colectiva. Trouxe até si toda a filosofia reformadora que o subtraiu ao mundo das trevas onde estava afundado há anos e lhe permitiu vislumbrar o brilho cintilante e cristalino da luz do conhecimento. Fui tantas vezes assistência da sua oratória ensaísta, aplaudindo-o e aclamando-o de pé à boa maneira Vienense, depois de horas e horas de retórica sobre ideias ainda pouco consistentes. Apliquei-lhe os mais diversos correctivos de índole estética, estilística, formal e etílica, em longas noites de trabalho objectivando o seu crescimento intelectual. E agora desaparece do mapa, sem dizer ai nem ui, e quando o país mais precisa de si.
       Estou renitente quanto à sua saúde mental, sendo certo que o isolamento forçado potencialmente contribui para a sua debilidade. Pretendo portanto marcar uma reunião urgente consigo, em que a ordem dos trabalhos será a seguinte: a) Fazer um balanço das conferências da Fajã; b) Escarnecer e censurar sem piedade alguns acontecimentos contemporâneos; c) Agendar o nosso habitual jantar de Natal com os nossos colaboradores internacionais; d) Jogar à moeda para ver quem paga a conta.
       É de toda a conveniência que esta reunião se mantenha secreta, pois desconfio que neste momento ando a ser alvo de escutas por parte de ouvintes profissionais ao serviço d’Eles. Proponho então que a mesma se concretize na cave do Alfa Pendular, junto à Via do Mississípi X, quarta cavalariça. A data e hora serão a combinar, de preferência antes da reunião para que a mesma possa suceder.
       Ainda que se mantenha no seu refúgio, e ainda que esse refúgio possa ser imaginário, e ainda que a sua imaginação lhe forneça a sensação ilusória de felicidade momentânea, estou certo que ao responder a esta carta que lhe envio, encetará um movimento que poderá vir a dar o contributo decisivo para a afirmação do seu palmarés.
Janeiro Alves
Lisboa, 4 de Novembro de 2015

terça-feira, 3 de novembro de 2015

FAZENDO 103

     
      António Pinto Ribeiro aquando da sua presença numa conferência organizada pelo FAZENDO (https://issuu.com/fazendofazendo) na celebração da centésima edição do Boletim Cultural, em Maio último, comentou em público que aquilo que mais o tinha impressionado nesta publicação insular era “a capacidade de todos os anos mudar de figurino, a ousadia de alterar completamente o seu visual, o seu grafismo”. E é assim que o FAZENDO entra no oitavo ano de actividade com a mesma postura, de “cara lavada e renovada” e com a máxima curiosidade e inventividade para continuar a surpreender o público leitor. Nesta nova apresentação gráfica do jornal, desta feita com a assinatura gráfica de Raquel Vila Arisa,  paginação de Góel e também da Raquel, a direcção continu a ser do Tomás Melo e da Aurora Ribeiro. O FAZENDO dedicará a mesma atenção à actividade cultural existente no arquipélago, bem como continuará a apresentar rubricas ligadas à ciência, insistindo (e bem!) no seu Fazendinho, para além do REBUS e outros assuntos e temáticas. Deu-se, entretanto, o desaparecimento da entrevista do Morcego, mas permanecerá a entrevista feita pela Sara Soares a pessoas que habitam por esse mundo fora sobre a geografia e costumes do arquipélago. Boas leituras!

José Fonseca e Costa (1933-2015)

      À semelhança de Fernando Lopes, José Fonseca e Costa foi dos cineastas portugueses da sua geração que agregou um grande número de amantes e entusiastas à volta dos seus filmes. Recorde-se assim o poético “O Recado” (1972), o hilariante “Kilas, o Mau da Fita” ou o fraterno “Cinco Dias, Cinco Noites”. E onde é que se pode hoje vê-los?

sábado, 31 de outubro de 2015

"Superfície" de Rui Xavier

   
"À Superfície" de Rui Xavier
       Agora que mergulhamos nas profundezas daquilo que julgamos ser os abrolhos da nossa humanidade – "quantos seres humanos é que morrerão ainda à entrada da velha Europa?" – conviria assistir, isto é, ver com olhos de ver, a curta metragem “Superfície”(2008), do realizador Rui Xavier. O pequeno filme, com a duração de uns curtíssimos treze minutos, parte de uma ideia bastante simples: um homem de meia idade chega a uma praia para dar um mergulho no mar! E a partir daí é como se todo um mundo se concentrasse naquela força e presença de um actor, sobejamente expressivo e tenaz, como é neste caso, Marcelo Urgeghe. "Superfície” é, sem qualquer dúvida, um filme que continua a interrogar-nos, não perdeu actualidade pois continua a revelar a sua enorme sensibilidade perante a nossa frágil humanidade, emergindo como vitalidade e resistência, condensando na sua poesia toda a sua força e o lirismo, ali bem espelhados naquela deriva pessoal, humana e estética. É, certamente, muitas vezes na ficção e…num determinado tipo de cinema que encontramos, de forma substancial e profunda, as imagens e a poesia que necessitamos para sossegar esta nossa conturbada condição humana! 

sexta-feira, 30 de outubro de 2015

"4´33"

Evocação de John Cage a partir de Nils Frahm

Aguentas em silêncio?
As tuas mãos 
entre uma nota e a outra
espera mais um pouco
nem uma vulgar medida
ou gesto eloquente ainda
o teu piano em diante
vibra a melodia irregular
Escuta
a virtude e a ascese 
nos teus dedos foragidos. 

Uma Ida ao Louvre…Michaelense!

      A Louvre Michalense é já uma lojas representativas do revitalizado centro de Ponta Delgada, na Ilha de São Miguel. Com o seu estilo tido como antigo ou clássico não deixando, por isso, de ser visitada com um misto de novidade e curiosidade, perante um passado que é agora motivo de delicados e saborosos encantamentos. Este renovado espaço centenário, que já foi chapelaria e loja de tecidos, ocupou o lugar da primeira exposição do pintor Domingos Rebelo no século passado. Agora é também local de encontro para pequenos-almoços, lanches e compra de presentes e iguarias de natureza insular. Há também algo que chama a atenção em cima das mesas: os cadernos Albo. O nome vem com uma fita escrito como se de um presente se tratasse: Albo Açores. Está associado ao nascimento do dia, ao começar da vida, inspiração, certamente, pois são pequenos cadernos cozidos à mão e com a vantagem de serem todos eles reciclados. Apresentam-se aos nossos olhos com desenhos de pássaros (tentilhões, estorninhos, garças, etc.). Homenageiam com o seu traço as aves que frequentam o ar e os céus açorianos bem como os peixes, essencialmente, chicharros, que se avistam nos mares profundo do Atlântico. Há também cracas desenhadas para lembrar sabores e mergulhos salinos até ao fundo do mar. Estes cadernos podem ser avistados, tacteados e levados para casa. Um regalo para os olhos. 

quinta-feira, 29 de outubro de 2015

Black Gold


Who Knows Where the Time Goes é cantado neste Black Gold pela Nina Simone. Que voz, que fio de luz aqui vai, parece vir de um túnel que pretendemos nosso...com a saída um pouco mais à frente. É uma canção ao vento, cantada com toda a urgência, talvez com uma dolência maior do que o original de Sandy Denny. E lembro essa indefinição permanente daquilo que é o tempo, esse poder desavindo dos relógios, os desencontros e encontros que o tempo, a passagem deste provoca, o fresco cintilar e pulsar das estações a cada momento que passa. Até que o tempo nos encontre. Ou não. 

Forte combustível é o Fogo



Do natural calor, invariável pressão
o gás
a confluência e os elementos
há-de resultar energia 
fonte de vida.
Forte combustível é o fogo
A liga metálica conjuga
ferro e carbono,
inevitável fusão, 
o aço.
Ativos agentes da resistência,
por subterrânea matéria armazenada,
em forma de bolhas, espasmos,
lava vulcânica acumulada
decorrentes da combustão
e...queimam!

terça-feira, 27 de outubro de 2015

I Never Saw a Philco Fridge

Tu podias viajar comigo na noite
ver como se propaga o ar
não se pode negar a indiferença
enfiaram-te o amor na cabeça
os filmes, os livros e os poemas que leste
agora vai-te embora com as grafonolas
desampara a loja dos fantasmas da infância
e não voltes desconfiado
o gelo não se parte,
solidifica ainda mais
conserva-se para a eternidade
um coração despedaçado não sobrevive
fica desarmado com tanta frieza

Hás-de saber guardar para ti o medo e o cuidado
a leveza com que desapareces da fotografia
não sei muito bem onde aprendeste esse orgulho
esse pequeno ritual do desprendimento
vale o que vale a saúde e desatinas
uma casa em ruínas e o desapego
quando sofres devagar e logo adormeces

Repetes o frente a frente
sem nada conseguir expressar
madrugada adentro
até deitar tudo a perder 
antes da alba nascer

Âmbula chega às Livrarias

O Leonardo, que também já foi Leonardo Sousa, apresentará amanhã na Livraria Solmar,  Ponta Delgada, pelas 18h30, o seu segundo livro de poemas intitulado Âmbula. Este livro, com fotografia de capa de Fernando Resendes, tem a chancela da Companhia das Ilhas e surge depois de “Há-de flutuar uma cidade no crepúsculo da vida”, editado pelas Letras Lavadas, em 2013.Pelo que já foi possível avistar em momentos de leitura improvisada, não é uma súmula de poemas fácil de digerir, tão pouco se gasta numa só leitura, pois à semelhança do que escreve o poeta: (…)“enfim/é isto que escrevo sussurradamente/ sentado em sítios que não me pertencem/sabendo/ que se não me levantar destas estações sensíveis/ toda a minha vida irrefutável e inútil vida será/ ver os outros partir. 

segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Um ARQUIPÉLAGO na Ribeira Grande

     
    O Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas inaugurou no passado dia 16 de Outubro uma exposição intitulada “Um Horizonte de Proximidades”, permanecendo aberta ao público até ao dia 28 de Fevereiro. No seu interior e nos diversos espaços expositivos do Centro é possível efectuar o percurso de trinta oito artistas bem como apreciar as suas respectivas obras pertencentes à colecção António Cachola. Para além da diversidade e riqueza de perspectivas artísticas aqui expostas, é possível percorrer um edifício de rara beleza, com a imponência de uma estrutura sóbria e os seus diferentes dispositivos bem codificados, abertos assim para receber diferentes tipos e modalidades da arte contemporânea. Estamos, pois, na presença de um espaço pluridisciplinar, com múltiplas valências, um serviço educativo em funcionamento, espaço de livraria e biblioteca, e espaços propensos à ocorrência de residências artísticas. Curiosa também é a  proximidade do edifício com o mar e a sua interacção com a luz. 

sábado, 24 de outubro de 2015

Da Curiosidade

"Inventamos histórias para dar forma às nossas perguntas; lemos ou ouvimos histórias para perceber o que queremos saber. Nos dois lados da folha, somos levados pelo mesmo impulso questionador, pelas perguntas de quem fez o quê, e porquê, e como, para que possamos, por nossa voz, perguntar a nós próprios o que é que fazemos, e como e porquê, o que aconteceu quando se faz ou não faz alguma coisa. Neste sentido, todas as histórias são espelhos do que julgamos ainda não saber. Se for boa, uma história suscita no seu público tanto o desejo de saber o que acontece a seguir como o desejo contraditório de que a história nunca acabe: este duplo vínculo justifica o impulso de contar histórias e mantém a curiosidade viva."  

in Uma História da Curiosidade, Alberto Manguel, edições Tinta da China, 2015. 

Postal de Inverno para Miriam Manaia

Querida Miriam Manaia,

Amanhã retoma o horário de Inverno e eu sinto por mim adentro uma rara e obtusa melancolia, aquela coisa acintosa que me faz cair vertiginosamente no silêncio, afastando-me assim da voragem dos dias e do tempo, impondo deste modo um recolhimento interior que só terá ecos de si no relançar das folhas e das flores lá para os finais de Março com o advento da Primavera e da claridade dos dias. O meu ser quedará sombrio e triste, eu sei, nada a fazer.  
Curiosamente, amiga Miriam, encontro-me na sua cidade, habitando bem perto do solar dos Manaias, por isso não tardarei a bater-lhe à porta numa destas tardes da invernia onde farei tensões de me juntar a si  enquanto pinta ou escreve. Ou quem sabe ler os diários do Outono que tenho escrito por aqui.   
 Deste seu amigo, a frequentar novamente lugares de pendor natural e bucólico.

Atenciosamente seu,  

Doutor Mara

Da Injustiça

As nossas organizações sociais, no entanto, ainda existem rótulos, requerem catálogos e estes tornam-se inevitavelmente, hierarquias e sistemas de classe em que alguns assumem o poder e outros ficam excluídos. Toda a biblioteca tem a sua sombra: as infindáveis estantes de livros que ninguém escolheu, que ninguém leu, livros rejeitados, esquecidos, proibidos. E, no entanto, a exclusão de qualquer assunto da literatura, quer por arbítrio do leitor quer do escritor, é uma forma de censura inadmissível que degrada a humanidade de todos. Os grupos ostracizados pelo preconceito podem ser, e geralmente são, postos de parte, mas não para sempre. A injustiça, como já devíamos ter aprendido, tem um efeito curioso nas vozes das pessoas. Empresta-lhes potência e clareza, recursos e originalidade, que são todas elas boas coisas para se ter, se o que se pretende dor a criação de uma literatura. 
in "No Bosque do Espelho", Alberto Manguel, Tinta da China, 2013.

sexta-feira, 23 de outubro de 2015

Ontem escrito numa parede da cidade...

I never saw a Philco Frige!

A Biblioteca Pública e Arquivo de PDL


       A recuperação do antigo Colégio Jesuíta para Biblioteca Pública e Arquivo de Ponta Delgada (projecto desde 1989, e obra desenvolvida longamente entre 1992 e 2001), é de Carlos Duarte (1926 -). Embora obtendo uma imagem com pouca visibilidade desde o exterior urbano, o programa conseguiu incluir uma vasta série de novos espaços e a recuperação de outros, entre os volumes, as galerias e os pátios existentes.
        Este edifício articula-se com o da igreja, cuja fachada religiosa de expressão  barroca, é a mais impressiva e original da cidade, dentro do gosto afirmativo e monumentalizante da Ordem. A nave e espaços internos anexos foram recuperados recentemente para instalação do Museu de Arte Sacra (projecto de José Cid e Isabel Cid (concluído cerca de 2005). 


in Arquitectura Contemporânea dos Açores, de José Manuel Fernandes e Ana Janeiro.

quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Ainda estranhamente te espero

Ainda estranhamente te espero
depois do clima, da chuva e do verbo
a ilha, porventura, aguarda o momento
sei que amanhã é já outro dia
virás vestida de azul em demasia

Desse anunciado reencontro
divertida volta na passada
nada de ajuda ou alimento
difícil acreditar no milagre
provável regresso à origem

Sobre “Espelhos Naturais” de António Garcia Guerreiro

     
Exposição na Biblioteca e Arquivo de Ponta Delgada
   António Garcia Guerreiro apresenta um conjunto de fotografias à volta do arquipélago açoriano intitulado “Espelhos Naturais”. O visitante desta curiosa exposição, patente num pequeno compartimento da Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada até Janeiro do próximo ano, poderá ser surpreendido com fotografias facilmente reconhecíveis - são fotografias realizadas em quase todas as ilhas açorianas - mas expostas de forma singular e estimulante aos nossos olhos, exigindo tempo e compreensão à nossa experiência sensorial.


     As fotografias de “Espelhos Naturais” revelam assim um fotógrafo sensível, fascinado pelos cambiantes da paisagem e entusiasmado pela policromia da natureza das ilhas atlânticas. Neste jogo implícito de luz e contrastes, já que são fotografias que usam e abusam do reflexo da água, o jovem fotógrafo – sim, esta é a sua primeira exposição!!! – apresenta imagens de cima para baixo, fazendo-as rodar os 180 graus, tendo por objectivo propor e revelar novos detalhes ou outros efeitos pretendidos, abarcando desta feita as dicotomias: real/irreal, céu/terra, vida/sonho. Relembrando ainda um literato argentino, Alberto Manguel, este escreveu em “No Bosque do Espelho”: “Somos criaturas arrumadas. Desconfiamos do caos. As experiências chegam-nos sem um sistema reconhecível, sem qualquer razão inteligível, com uma generosidade livre e cega. E, no entanto, perante todas as provas em contrário, acreditamos na lei e na ordem.” António Garcia Guerreiro contraria em “Espelhos Naturais” essa mesma lei e ordem, propondo deste modo um presente para os nossos sentidos, arriscando-se assim a encontrar beleza no caos e na miríade de reflexos e estímulos que a natureza em redor nos proporciona. Afinal, o belo pode ser caótico e desordenado, e, para que isso aconteça, basta estar aberto e, com absoluta clareza, atento.  

Oh as casas as casas as casas

Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
Elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atravessei as estações
Respirei – ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas

Ruy Belo in Todos os Poemas, Lisboa, Assírio & Alvim, 2000

Espelhos Naturais de António Garcia Guerrero

Fotografia de António Garcia Guerrero